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“Os Beatles eram como irmãos; os Stones, uma empresa”

O livro ‘BeatleStones. Um duelo, um vencedor’, de Yves Delmas e Charles Gancel, traça paralelismos e diferenças entre as duas bandas mais influentes do século XX

Mick Jagger e John Lennon, em uma cerimônia de premiação do American Film Institute na Califórnia, em 13 de março de 1974. No vídeo, entrevista com os autores de 'Beatlestones. Um duelo, um vencedor'. Vídeo: RON GALELLA (GETTY) / EPV
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Diz o clichê que os Beatles eram garotos comportados, burgueses e conservadores, enquanto os Rolling Stones eram uns rebeldes desenfreados, com os quais ninguém gostaria de ver sua filha casar. Eram os slogans de uma imagem bem desenhada, que os londrinos adotaram em contraposição aos rapazes de Liverpool: o cabelo mais comprido, o som mais sujo, a pose mais insolente. Na verdade, os Beatles tinham origens mais humildes, e em termos de radicalismo político ninguém ganhava de John Lennon. É verdade que os primeiros cantavam o amor, e os outros falavam de sexo; que uns tiveram mais ambição artística, e os outros, mais energia; e que, quando a busca espiritual levou os Beatles ao hinduísmo, os Stones se aproximaram do satanismo, mais do que nada para provocar. Em dado momento de suas carreiras, uns se trancaram no estúdio durante alguns anos para inovar com autênticas obras-primas, enquanto os outros viravam a mais azeitada máquina da história do rock and roll, ainda em funcionamento.

Eram rivais e eram muito amigos: os Beatles tinham começado antes, ajudaram os Stones a dar seus primeiros passos —Jagger e Richards são três anos mais jovens que Lennon e McCartney— e lhes abriram muitas portas. Colaboraram frequentemente: Lennon era o beatle mais próximo dos Stones; Brian Jones foi o mais beatle dos cinco stones. Compartilharam festas, substâncias, canções, viagens, ciúmes, conflitos. Os Fab Four evoluíram com muita rapidez, queimando etapas, e viraram poeira em 1970; os Stones passaram décadas sendo fiéis ao seu estilo, ancorado no blues.

O livro BeatleStones – Un duel, un vainqueur (BeatleStones, um duelo, um vencedor, inédito no Brasil) busca detalhar as coincidências e diferenças entre as duas bandas fundamentais da segunda metade do século XX. Uma obra singular, pois seus autores são dois empresários e fanáticos por música franceses: Yves Delmas é o presidente da empresa de entregas Seur, e Charles Gancel é músico e romancista. Escreveram o livro de forma “preguiçosa”, ao longo de 10 anos, passando cada capítulo para que o outro o concluísse. Delmas domina bem as biografias e o contexto cultural daquela época; Gancel, além disso, sabe escrutinar acordes, harmonias e compassos, e chama a atenção sobre detalhes aptos apenas para ouvidos bem treinados.

“Não havia um livro de referência sobre a maior polêmica da história do rock. Queríamos resolver essas discussões de salão sobre quem é melhor, se Messi ou Cristiano Ronaldo, se os Beatles ou os Stones”, diz Delmas em uma conversa a três, por videoconferência. “Queríamos acabar com as ideias preconcebidas, torná-lo divertido e o menos subjetivo possível. Mas tinha que haver um ganhador.”

O leitor atento não demora a perceber quem é. O duelo é desigual porque, nos anos em que coincidiram, os quatro de Liverpool sempre estiveram à frente. “Os Beatles foram a maior fonte de inspiração para os Stones. Sem eles, não teriam sido a banda que foram. Os Beatles nunca tomaram nada dos Stones. Foi uma influência unilateral”, argumenta Delmas. Até o logotipo dos londrinos, a célebre boca carnuda com a língua de fora, saiu de um desenho de Alan Aldridge para um livro ilustrado de canções dos Beatles inspirado em Day Tripper. Já a carreira do quarteto de Liverpool apresenta mais marcas de Bob Dylan e dos Beach Boys.

Paul McCartney (à direita) e sua então mulher, Linda, no camarim dos Stones, com Mick Jagger e Bill Wyman, entre outros, em 19 de junho de 197, em Nova York.
Paul McCartney (à direita) e sua então mulher, Linda, no camarim dos Stones, com Mick Jagger e Bill Wyman, entre outros, em 19 de junho de 197, em Nova York. Michael Putland

Um ano muito revelador a esse respeito é 1967. Quando lançaram Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, o álbum mais célebre da contracultura dos anos sessenta, os Beatles estavam mordidos com os Beach Boys, um grupo vocal como eles, que acabavam de emplacar o monumental Pet Sounds. Entretanto, os Stones quiseram embarcar na onda psicodélica com Their Satanic Majesties Request, um fiasco do qual aprenderam uma lição que jamais esqueceriam: não tentar repetir os passos de seu grande concorrente. A partir daí os Beatles entram em decomposição (mantêm um alto nível, mas cada um vai para o seu lado), enquanto os Stones reafirmam sua identidade, de raiz norte-americana, e encadeiam quatro álbuns impressionantes, de longe os melhores de sua carreira: Beggars Banquet (1968), Let It Bleed (1969), Sticky Fingers (1971) e Exile in Main Street (1972).

O combate também tem ganhador no campo do ao vivo: os Stones, de lavada. Os Beatles, embora viessem muito curtidos pelos shows da juventude em Hamburgo e no Cavern Club, nunca alcançaram sobre o palco a mesma excelência que no estúdio. Eles foram os primeiros a tocar em um grande estádio, o Shea de Nova York, em 1966. “Mas não assumiam nenhum risco. Davam shows de 45 a 50 minutos, sem se afastar do som de seus discos. Não eram muito criativos sobre o palco”, admite Delmas. “Os Stones melhoravam suas canções ao vivo. Faziam versões alongadas, com improvisações, digamos, sublimadas”.

Mas os autores do livro observam que, nos shows dos Stones, só se ouvem canções que já têm mais de quatro décadas. A última música memorável de suas satânicas majestades, apontam, é Start Me Up, de 1981. Tanto é que, há muito tempo, não precisam ter um disco novo para justificar uma turnê. Jagger e Richards não mantiveram uma fecundidade criadora como de Lennon-McCartney (mais Harrison). Em menos de uma década, os Beatles compuseram 200 canções, frente a pouco mais de 300 dos Stones em 60 anos.

Paul McCartney e Mick Jagger no show ‘The Prince's Trust’, em Londres, em junho de 1986.
Paul McCartney e Mick Jagger no show ‘The Prince's Trust’, em Londres, em junho de 1986.Brian Cooke

Enquanto os Beatles saíam de cena —sua última apresentação, na Califórnia, data de agosto de 1966—, os Stones quiseram demonstrar seu poderio reunindo enormes multidões. O ponto de inflexão foi o caótico festival de Altamont, em 1969, que acabou com os Hells Angels [uma famosa gangue de motoqueiros], inexplicavelmente encarregados da segurança, matando um espectador a punhaladas e socos. A tragédia os fez acordar. “Os Stones perceberam no ato que aquilo tinha que ser administrado profissionalmente, como um negócio”, diz Gancel. Assim fizeram, enchendo grandes ginásios e estádios quase sem pausa até o ano passado, quando a pandemia os obrigou a parar.

Qual é a chave da longevidade dos Stones frente aos Beatles, uma banda que só esteve no primeiro plano entre 1963 a 1969? Responde Delmas: “Os Beatles eram como irmãos, um monstro de quatro cabeças. Juntos desde adolescentes, tiveram uma relação muito estreita e pura. Quando isso se rompeu, foi como um divórcio. Nunca foi possível recompor a banda. A história dos Stones é diferente. Nunca tiveram uma relação pessoal tão próxima. São uma comunidade de interesses, uma empresa. Por isso duram tanto”.

Veredicto final? Gancel responde virando o clichê pelo avesso. “Os Beatles foram os mais revolucionários no aspecto musical. Os Stones eram os conservadores, porque sempre estiveram apegados ao blues”. Claro que os velhos blueseiros, como B. B. King, nunca tiveram pressa em envelhecer sobre o palco. E aí estão Jagger, Richards, Watts e Wood, sem dissimular suas rugas e dando voltas ao mundo com suas catarses roqueiras. A carreira dos Beatles parou em 1970 para deixar uma coleção de discos perfeita. Dois gigantes, cada um à sua maneira. Por sorte, ninguém é obrigado a escolher um dos dois.

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