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Quando Truman Capote foi pai

Documentário ‘The Capote tapes’ retrata a relação de proteção que o autor de ‘A sangue frio’, morto há 35 anos, manteve até o final da vida com Kathy Harrington, filha de um dos seus amantes

Truman Capote, no 10º aniversário da revista 'Interview', de Andy Warhol, no mítico Studio 54 nova-iorquino, em 1979. Em vídeo, o trailer de ‘The Capote tapes’. / FOTO: GETTY
Truman Capote, no 10º aniversário da revista 'Interview', de Andy Warhol, no mítico Studio 54 nova-iorquino, em 1979. Em vídeo, o trailer de ‘The Capote tapes’. / FOTO: GETTY
Andrea Aguilar
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Ele conhecia todo mundo, e todo mundo sabia quem era ele. Foi um dos escritores norte-americanos mais brilhantes e ímpares do século XX. Truman Capote (Nova Orleans, 1924 – Nova York, 1984) sempre teve claro que a literatura não tinha motivo nenhum para brigar com os holofotes. Desde sua brilhante estreia, aos 24 anos, deu muito que falar, e, como provam as biografias e filmes que foram saindo, o diálogo não terminou com sua morte, que completa agora 35 anos, quando ele estava prestes a fazer 60.

Ousado, provocador, fofoqueiro incorrigível, sua língua viperina e sua pena afiada eram capazes de dissecar com a mesma frieza um assassino e uma deslumbrante estrela de Hollywood. Mas há outras caras de Capote mais desconhecidas, como o papel protetor que exerceu para sua afilhada Kathy Harrington, filha de um de seus amantes. Esta história é narrada agora no documentário The Capote tapes, escrito por Holly Whiston e Ebs Burnough e dirigido por este último. O filme, apresentado no Festival de Toronto de 2019 e estreado há pouco mais de um mês no Reino Unido chegou nesta quarta-feira à plataforma europeia Filmin.

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Ebs Burnough, assessor da primeira-dama Michelle Obama e subsecretário do gabinete de relações externas da Casa Branca durante a administração de Barack Obama, compreendeu após ler uma biografia do fundador da rede CBS, William S. Paley, que a história que realmente lhe fascinava era a subtrama envolvendo Capote. “Voltei a ler os livros dele e comecei a entrevistar gente como a jornalista de fofocas Liz Smith, que o conheceu muito bem”, conta Burnough por videoconferência do Caribe, onde se encontra com seu marido, o financista belga Pierre Lagrange, e sua filha pequena.

Foto tirada no Studio 54 mostra Truman Capote rodeado por Gloria Swanson (à dir.) e Kate Harrington, filha de um amante dele que era protegida do escritor. / GETTY / EL PAÍS
Foto tirada no Studio 54 mostra Truman Capote rodeado por Gloria Swanson (à dir.) e Kate Harrington, filha de um amante dele que era protegida do escritor. / GETTY / EL PAÍS EL PAÍS

Burnough estava intrigado com a estreita amizade que uniu o escritor à mulher de Paley, a bela Barbara, ou Babe, mas sobretudo seu final abrupto. O corte radical com esse “cisne” (assim Capote se referia às mulheres da alta sociedade com quem compartilhava confidências) foi uma resposta à publicação na revista Esquire, em 1975, de um trecho de Súplicas atendidas, o romance no qual ele passou anos trabalhando e não conseguiu concluir.

O título do novo documentário faz referência às gravações com as entrevistas que o editor da The Paris Review, George Plimpton, fez com mais de uma centena de pessoas enquanto preparava uma história oral sobre Capote, afinal publicada em 1997, na qual “vários amigos, inimigos e detratores recordam sua turbulenta carreira”, como esclarecia o subtítulo. A equipe de Burnough transcreveu aqueles áudios. As vozes neles contidas incluem desde a atriz Lauren Bacall até o escritor Norman Mailer. “Sua atitude era exaustiva!”, ouve-se Mailer dizer, recordando a tensão que passou quando entraram juntos em uma cervejaria lotada de fornidos irlandeses e Capote ciscava entre aqueles sujeitos, enquanto Mailer só pensava que acabaria tendo que sair no soco com algum deles. Nada aconteceu. “Capote foi abandonado quando criança, passou por muita coisa e desenvolveu uma couraça que lhe permitiu sobreviver. De algum modo, suponho que isso o fazia ser cruel com os outros”, reflete Burnough.

Truman Capote com Gloria Guinness. / FILMIN / EL PAÍS
Truman Capote com Gloria Guinness. / FILMIN / EL PAÍS EL PAÍS

The Capote tapes também inclui imagens novas e entrevistas com o historiador da arte John Richardson, o romancista Colm Tóibín, a crítica Sadie Stein, o jornalista de moda André Leon Talley e o editor Lewis Lapham. Mas a grande desconhecida que o filme apresenta é Kathy Harrington, filha de um dos últimos amantes de Capote, o corretor de valores Jack O’Shea. “Eu o conheci na sala da nossa casa”, conta essa mulher loira e franca, olhando para a câmera. Meses depois, seu pai tinha largado a família e ela escreveu a Capote, que a incentivou a viajar a Nova York e a apresentou ao fotógrafo Richard Avedon para que trabalhasse como modelo.

Tinha 13 anos quando foi morar com o autor de A sangue frio e, embora tenha saído do apartamento anos depois, acompanhou Capote até o final. “Foram uma dupla até a morte dele. Capote é conhecido como alguém malvado, um diabinho terrível [’tiny terror’], como o apelidavam, uma rainha perversa. E tudo isso é verdade, mas também é verdade que teve um extraordinário desejo de dar e receber amor”, observa Burnough. “Sua história com Kate demonstra que ele queria formar uma família em um momento em que um homossexual não podia tê-la. Porque outra das coisas que não se reconhecem nele é que foi um homem abertamente gay, quando isso era punido.”

O documentário ‘The Capote tapes’ homenageia o escritor no 35º aniversário da sua morte. / EL PAÍS
O documentário ‘The Capote tapes’ homenageia o escritor no 35º aniversário da sua morte. / EL PAÍS EL PAÍS

Capote foi corajoso e expôs sua homossexualidade sem disfarces desde o começo, e isto permeou em parte sua escrita. No filme se descreve seu primeiro livro, Outras vozes, outros lugares, como uma versão gay de As aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain, e também se menciona a intensa relação de Capote com Perry Smith, um dos dois assassinos de A sangue frio.

O trabalho de Capote é entendido melhor hoje do que na sua época? “Sim e não, porque seu mundo se baseava em uma hierarquia e em estruturas muito diferentes das que vigoram hoje”, diz Sadie Stein por e-mail. “A confiança e a discrição tinham que existir para poderem ser traídas. E na era da internet damos como certas muitas coisas que são escandalosas e temos integrados a não ficção narrativa e o true crime que Capote criou.”

John O’Shea, Kate Harrington e Truman Capote.
John O’Shea, Kate Harrington e Truman Capote.

Aos seis anos sua mãe deixou Truman a cargo de algumas tias no Alabama e mais tarde o levou com ela a Nova York, para que vivessem com o segundo marido dela, um empresário cubano que lhe deu o sobrenome Capote. No primeiro colégio onde aterrissou em Manhattan ficou amigo de Carol Marcus, Gloria Vanderbilt e Oona O’Neill. “De todas elas e de sua mãe tomou algo para sua personagem de Bonequinha de luxo”, comenta Burnough. “Esse livro conta uma história bastante dura de uma senhorita de companhia e um gigolô, mas é maravilhosamente escrito. Sua escrita era pessoal e reconhecível, mas o álcool e as drogas acabaram por cegá-lo. Os vícios podem consumir um talento tão grande como o dele.”

Calculou mal o efeito de contar as intimidades de suas amigas ricas e famosas? “Capote precisava estar conectado e o deixaram de fora. Perdeu sua família, as pessoas com quem tinha passado os últimos 20 anos da sua vida”, relembra Burnough. Foi então quando se voltou para Warhol, a Factory e a casa noturna Studio 54, que frequentava com Kate, sua afilhada. Também mostrava sua franca decadência nos estúdios de televisão. Será que a história de Capote esconde alguma mensagem moral a levar em conta para não se perder no glamour? “Bom, o brilho é muito divertido, mas há trabalho por trás”, conclui Burnough.

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