“Não deixe o samba morrer no Ó do Borogodó”. A luta da casa dos sambistas para não fechar as portas

Reduto do samba e do choro na cidade de São Paulo, local histórico da Vila Madalena depende de uma campanha de arrecadação financeira para evitar ação de despejo

Roda de samba do grupo Inimigos do Batente no bar Ó do Borogodó, em São Paulo.
Roda de samba do grupo Inimigos do Batente no bar Ó do Borogodó, em São Paulo.Cortesia de Leonardo Gola

Na parede do fundo, dezenas de banquinhos de madeira se amontoam uns sobre os outros. O resto do espaço está quase vazio, mas a música ecoa de cada buraquinho de tijolo —não só pelas fotos de grandes músicos e cantores pendurados no local— e, ao da porta de entrada, as marcas de beijos vermelhos na parede branca são testemunhas do carinho e apego de quem frequentou por anos o Ó do Borogodó. O bar de samba e choro de São Paulo que, depois de duas décadas como principal casa de música da cidade, corre o risco de fechar as portas diante da pandemia. Os proprietários receberam uma ordem de despejo do imóvel por dívidas no dia 7 de março e têm até o próximo dia 25 para entregar as chaves. “Os próprios músicos da casa estavam cientes da situação. Nos enchemos de esperança para tentar um último tiro, uma campanha para arrecadar 300.000 reais, valor que pagaria as dívidas de aluguel e permitira a manutenção do bar durante mais um ano, de portas fechadas”, conta Stefânia Gola, dona do bar junto com o irmão, Leonardo Gola. A “campanha mais curta do universo”, como eles definem, durará apenas 10 dias, mas com o apoio de nomes de peso, como os das cantoras Fabiana Cozza, Railídia e Paula Sanches, recorrentes na programação do Ó, como o bar é carinhosamente chamado pelo público mais assíduo.

Reduto da boemia de classe média entre Pinheiros e a Vila Madalena, o Ó do Borogodó é famoso pelas filas na porta na rua, com entra e sai dos frequentadores que fumavam no intervalo da cantoria. Hoje, enfrenta a crise agravada pela pandemia de covid-19 que provocou o fechamento de outros estabelecimentos históricos na região, como os bares Genésio, Filial e Lá da Venda. “Não queremos abrir em meio à pandemia, com todas as restrições. No ano passado, abrimos no máximo para fazer algumas lives com os músicos, mas não temos cozinha estruturada, então não podemos nem fazer delivery”, explica Stefânia. A proprietária diz que, mesmo antes da quarentena em 2020, ela e o irmão não estavam “nadando de braçadas”, mas as contas do bar estavam em dia. “Puxávamos de um lado para cobrir do outro, uma situação bem brasileira nos últimos anos. Com a pandemia, tudo desabou, porque não temos reserva de dinheiro. Quando fechamos as portas, paramos de receber completamente. Estamos há um ano sem salário, mal temos para pagar os alugueis de nossas casas”, lamenta Stefânia. Ela e Leonardo afirmam que não são “empresários empreendedores, mas comerciantes trabalhadores” e, durante os primeiros meses de portas fechadas, ainda conseguiram pagar os músicos com o dinheiro arrecadado nas lives.

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Entre lágrimas, a proprietária afirma que “o Ó é um patrimônio de São Paulo” e que “seria uma tragédia para a cidade” o fechamento definitivo de suas portas. Ela e Leonardo —um percussionista que já tocava no bar quando ele era de outro dono— compraram o local, que fica em uma pequena rua atrás de um cemitério, em 2001. Em pouco tempo, o bar ficou isolado com mais dois pequenos comércios depois de resistir à pressão imobiliária da região, que demoliu imóveis como esses para construir grandes prédios residenciais ao lado.

Foram os irmãos que transformaram o Ó em um bar de música, por onde passavam semanalmente Dona Inah, que lançou seu primeiro álbum tardiamente, mas com êxito, aos 69 anos (hoje afastada da música por problemas de saúde), o histórico sambista João Borba (já falecido), além dos instrumentistas Alessandro Penezzi, Zé Barbeiro e Gian Correa (todos violinistas), o bandolinista Henrique Araújo, o flautista João Poleto, e o percussionista Douglas Alonso, só para citar alguns. O público, constituído principalmente por amantes do samba e do choro, ficava separado dos músicos apenas pelas caixas de retorno de som, porque nunca houve tablado para as rodas. No espaço pequeno, com poucas mesas e atendimento longe do padrão exigido pelos frequentadores de lugares “mais requintados” da Vila Madalena, a interação era inevitável. A música de excelente qualidade e a cerveja gelada —além da feijoada de seu Antônio, cozinheiro, aos sábados— compensavam qualquer coisa. Era ímã de turistas nacionais e estrangeiros que vinham ali conferir se paulista era mesmo bom de samba no pé.

“É a casa de música mais importante de São Paulo, porque possibilitou a formação musical de muitos artistas com isso de tocar toda semana. Ao mesmo tempo que era o ganha pão deles, era quase um momento de ensaio, com a possibilidade de errar, de experimentar durante três horas uma vez por semana”, afirma, sem hesitar, Stefânia. O primeiro disco de Fabiana Cozza, hoje uma diva do samba, nasceu no Ó, onde ela testou seu repertório e “fez o que quis”.

Quem relembra toda a história é a própria Fabiana, sentada no mesmo banquinho em que começou a cantar na roda de samba, bem no centro do Ó, ao lado da grande janela que dá para a rua: “Comecei em 2003, na gafieira coordenada pelo João Poleto, mas a turma que vinha não gostou muito dessa coisa de não ter mesa para apoiar as coisas, então não deu certo, e era numa segunda-feira. Quando resolveram fazer uma roda de samba, eu me ofereci para cantar”.

A cantora Fabiana Cozza em uma roda de samba no bar Ó do Borogodó, em São Paulo, no começo de sua carreira.
A cantora Fabiana Cozza em uma roda de samba no bar Ó do Borogodó, em São Paulo, no começo de sua carreira.Cortesia de Leonardo Gola

A cantora lembra que, no início, o público era de 15 ou 10 pessoas. Às vezes, ela cantava só para os próprios músicos da roda. Até que jornalistas —muitos frequentadores do Ó— começaram a escrever sobre a voz potente de Fabiana e as filas começaram a se formar na porta do bar. Anos depois, já com a carreira consolidada, ela continuou a se apresentar no local, que paga a arrecadação da bilheteria. “Às vezes vinha cantar até de graça, por que o Ó é a minha casa”, afirma. Fabiana diz que seu empresário, por vezes era procurado por produtores de outras casas da Vila Madalena que reclamavam do seu “alto cachê” enquanto se apresentava gratuitamente no bar.

“Eu acredito que a gente pertence muito a alguns lugares. E o Ó é um templo da música. Vi grandes artistas aqui dentro, como Zé Barbeiro, Alexandre Ribeiro. Vi Iracema Monteiro cantando aqui, Dona Inah, isso até me arrepia”, lembra Fabiana. O que representa para São Paulo o fechamento de um espaço como o Ó? “A cidade perde em poesia, fica mais triste”, responde a cantora. “Os artistas são silenciados cada vez que uma casa de cultura se fecha. Uma cidade sem cultura é intelectualmente pobre, uma cidade que tem pouco a oferecer”, acrescenta.

Para o jornalista Pedro Venceslau, que começou a frequentar o Ó do Borogodó quando era estudante da PUC, o fechamento do local representaria “a perda de uma referência cultural para uma geração inteira”. “Conhecíamos primeiro no Ó os sambistas que depois faziam sucesso em outros espaços. Era um astral muito acolhedor, um bar que foi passando de geração em geração, um ambiente fraterno”, diz ele, que conheceu Leonardo Gola quando ambos militavam no movimento estudantil, nos anos 1990. Pedro foi um dos que se mobilizaram para ajudar o Ó durante a pandemia. O bar de samba e choro foi cenário de um dos momentos mais importantes de sua vida: “Eu conheci minha esposa lá, foi onde demos nosso primeiro beijo, há 20 anos”.

O economista André Perfeito, também egresso da PUC, era outro assíduo frequentador. “Cheguei a trabalhar lá como garçom de graça, quantas vezes carreguei caixa de cerveja... Tudo meio de brincadeira, não era para ganhar dinheiro, mas porque queria estar naquele ambiente. Às vezes eu ia sozinho só para ouvir boa música”, conta. André considera que, sem o Ó, São Paulo perderia “um lugar com autenticidade em um mundo de hiperprodução em que tudo é meio fake”. Hoje em dia os bares da cidade têm essa coisa de criar um ambiente e ali nunca aconteceu, porque era muito natural. O Ó nunca foi só um bar, tinha um sentimento de comunidade, era um local de culto à cultura popular, de celebração do Brasil em São Paulo”, acrescenta.

Agora, todos eles participam da corrida contra o tempo para permitir que o bar sobreviva naquele pequeno imóvel térreo, espremido ao lado de um grande condomínio, esperando o dia em que o Ó poderá voltar a abrir as portas para ecoar samba da melhor qualidade, ainda que as circunstâncias não sejam das mais favoráveis. “Seguiremos cantando”, afirma Fabiana Cozza, que lembra de uma pergunta que fizeram a Bertolt Brecht certa vez: “Em tempos de guerra se cantará também?” Ao que o dramaturgo respondeu: “Em tempos de guerra, cantaremos os tempos de guerra”.

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