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‘Patria y vida’, a canção de rap que irrita o regime de Cuba

Grupo de músicos confronta o lema castrista ‘Pátria ou Morte’, viraliza e provoca a ira do Governo

En vídeo, o videoclipe de 'Patria y Vida’.Vídeo: YOUTUBE
Camila Osorio
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People pass by an image of late Cuban President Fidel Castro amid concerns about the spread of the coronavirus disease (COVID-19), in Havana, Cuba, July 19, 2020. REUTERS/Alexandre Meneghini
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Segundo a história oficial cubana, em meio à revolução dos anos 1950, um dos lemas de Fidel Castro e outros guerrilheiros durante a guerra foram estas três palavras: Pátria ou Morte. Um slogan repetido milhões de vezes em discursos, estátuas e na propaganda oficial, tão famoso como o Até a vitória sempre. Mas, quase seis décadas depois, um grupo de músicos se atreveu a insultar o lema oficial, e o Governo de Cuba, que não conseguiu impedir a difusão digital da canção, respondeu com profunda irritação. Tudo começou na semana passada, terça-feira, 16 de fevereiro, quando os músicos divulgaram em várias plataformas uma canção chamada Patria y vida.

“Somos a dignidade de um povo inteiro pisoteado; à ponta de pistola e de palavras que ainda não são nada”, diz a letra da canção dos rappers cubanos Maykel Osorbo e El Funky ―que vivem na ilha― e de outros músicos que vivem fora de Cuba, como Yotuel, Gente de Zona e Descemer Bueno. “Chega de mentiras, meu povo pede liberdade, chega de doutrinas/ Não vamos mais gritar Pátria ou Morte, mas Pátria e vida.

“Isto vai ser um hino de liberdade”, disse o rapper El Funky, de Havana, à CubaNet. “Fazer o vídeo foi bastante difícil porque na situação em que estamos as pessoas não querem correr riscos. Não querem te alugar iluminação, não querem alugar câmeras. Tudo foi corrido, sob um mistério tremendo em uma casa pudemos colocar panos de fundo pretos, aqueles, para poder fazer o vídeo, e graças a Deus saiu. Mas você já sabe, sob pressão. Tudo sob pressão.”

Embora os artistas cantem em uma sala escura, a edição do vídeo é tão crítica como a letra. Começa com a queima de um desenho do herói cubano José Martí, e as cinzas deixam ver atrás um dólar com a cara de George Washington (“Trocando Che Guevara e Martí pela moeda”, diz a canção sobre o poder do dólar). Na segunda metade do vídeo veem-se imagens da repressão policial contra o movimento de jovens de San Isidro, bem como uma imagem do líder do movimento, o artista Luis Manuel Otero Alcántara, abraçando a bandeira cubana: há três semanas, tanto Otero como o rapper Maykel foram detidos temporariamente pelas autoridades depois de se manifestarem diante do Parlamento para exigir a renúncia do ministro da Cultura.

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“E o mundo está ciente de que o movimento San Isidro continua”, diz a canção sobre as centenas de jovens que saíram às ruas em novembro para exigir liberdade de expressão na ilha, após a prisão do rapper Daniel Solís. Além de criticar o lema de Fidel, a canção fala da importância de tolerar as diferenças políticas (“Que não continue a correr sangue, por querer pensar diferente”), ou critica a opulência para estrangeiros nos balneários cubanos quando seus cidadãos continuam tentando emigrar para os Estados Unidos para escapar da pobreza extrema (“Publicidade de um paraíso em Varadero/ Enquanto as mães choram pelos filhos que se foram”).

A reação do Governo

Em menos de uma semana, a canção teve mais de um milhão e meio de visualizações no YouTube. Embora o Governo cubano tente há anos ter mais controle sobre o discurso político nas redes, não conseguiu impedir que a música se alastrasse como fogo. “Quiseram apagar nosso lema e Cuba o viralizou nas redes”, escreveu o presidente cubano, Miguel Díaz-Canel, em sua conta no Twitter, na sexta-feira, em defesa do Pátria ou Morte, quando a música da oposição já se havia espalhado.

Além disso, na noite de quinta-feira, o Governo conseguiu interromper a transmissão regular dos canais oficiais para a exibição do hino nacional às 21h, e os jornais oficiais também publicaram várias matérias criticando a música dos rappers. “Cheira a enxofre a ‘arte’ que nasce à mercê da vontade de quem paga ―a todo custo e a qualquer custo― para tentar irromper, na mais grosseira ingerência política, na soberania de uma nação”, escreveu o jornal oficial Granma, aludindo a uma suposta interferência estrangeira entre as vozes críticas na ilha. “O texto aposta sem dissimulação na restauração capitalista e a derrubada do poder revolucionário”, explica outro dos artigos oficiais.

O esforço para silenciar os rappers reforçou a música ao invés de censurá-la. “Na noite passada, dois ativistas independentes [Osmel Adrián Rubio e Anyell Valdés] escreveram Patria y vida na entrada de sua casa em Havana. Hoje, as forças de segurança do regime sitiaram a casa e cortaram sua Internet. O regime está nervoso com esta canção”, denunciou no Twitter José Miguel Vivanco, diretor da Human Rights Watch, divulgando o vídeo para seus 159.000 seguidores na América. A vice-presidenta do Parlamento Europeu, Dita Charanzová, também compartilhou o vídeo.

“Acho que essa música reflete o estado de orfandade em que o país se encontra. Eu dificilmente encontro qualquer referência, a não ser Donald Trump, em que um presidente responda aos artistas difamando-os. Em Cuba, não só Díaz-Canel faz isso, mas também todo o aparato do Estado”, disse o escritor cubano Carlos Manuel Álvarez ao El PAÍS. “Esta situação reflete a fragilidade ou o estado de medo que tem o Governo cubano, que pode sentir que uma canção composta por seis ou sete músicos põe em perigo sua estabilidade política.”

O episódio é um novo capítulo na apaixonante história política da música cubana, em que alguns cantores permaneceram próximos do regime (como o trovador Silvio Rodríguez), outros se tornaram símbolos do exílio cubano (como a rainha da salsa, Célia Cruz), e mais recentemente muitos jovens rappers que moravam na ilha enfrentaram o Governo com seus versos inspirados no hip-hop mais crítico dos Estados Unidos (como os rappers Los Aldeanos, agora em Miami, que falavam já fazia alguns anos da Havana que havia “trocado Che Guevara por dinheiro”).

A canção de Patria y vida tem como estrofe: “Acabou, vocês cinco nove, eu duplo dois; Acabou, sessenta anos trancando o dominó “. É uma charada: o famoso jogo do dominó na ilha tem o número 9, enquanto nos outros países caribenhos só vai até 6, e fica “trancado” quando não há mais uma peça para jogar. O cinco nove, ou 59, foi o ano glorioso de Fidel, quando venceu a guerra, e os rappers alegam que essa foi a ficha do Governo durante sessenta anos para só gritar Pátria ou Morte e parar o jogo. A ficha dos rappers nesta história, por sua vez, é o futuro: o duplo dois, ou seja, o 2020 em que se fortaleceu o movimento San Isidro, ou o 2022, em que esperam ver uma Cuba com muito mais vida que morte.

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