Augusto de Campos, 90 anos de vanguardismo radical: “Nunca parou de experimentar. Até hoje”

Poeta, ensaísta e ícone do concretismo no Brasil faz aniversário celebrado por nomes como Tom Zé e Caetano Veloso. “Em desalento” com a situação política do país, foge das comemorações em sua homenagem: “Brasil deve livrar-se da covid-19 e do Bolsonavírus-22″

O poeta Augusto de Campos.
O poeta Augusto de Campos.Fernando Laszlo (Other)
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Alguma coisa acontece na fachada da Biblioteca Mário de Andrade, na rua da Consolação, região central da capital paulista. A arquitetura do prédio foi modificada, com a instalação de um painel de LED com 10 metros de comprimento, que reproduz sem intervalos o poema Cidade/City/Cité. Tirar do papel o texto publicado originalmente em 1963 e jogá-lo na dura poesia concreta das esquinas da metrópole parece fazer jus ao legado de Augusto de Campos, que completou 90 anos neste domingo, 14 de fevereiro.

Ocupar a cidade, invariavelmente submersa na feia fumaça que sobe apagando as estrelas, sempre foi um objetivo de Augusto, mesmo quando o projeto da poesia concreta formulado com seu irmão Haroldo e pelo também poeta Décio Pignatari, no início dos anos 1950, era ainda embrionário. Em paralelo, Augusto produziu não só poesia, mas também ensaios sobre música, arte e cultura de maneira geral, assim como a tradução de escritores que serviram de esteio para as formulações teóricas do concretismo no Brasil.

Nos últimos 70 anos, Augusto publicou livros como Viva Vaia (1979), Despoesia (1994), Não (2003) e Outro (2015), que reúnem boa parte de sua produção poética, e traduziu autores pouco acessíveis no Brasil, como o norte-americano Ezra Pound e o francês Mallarmé. Além disso, escreveu ensaios e estudos críticos sobre literatura e música, analisando movimentos como a Bossa Nova e a Tropicália, com destaque para Balanço da bossa e outras bossas (1968), Música de invenção (1998) e Poesia antipoesia antropofagia (2015).

Para celebrar os 90 anos, eventos, poemas e traduções inéditas estão sendo lançados. A editora Laranja Original publicou traduções do concretista de poetas trovadores como Arnaut Daniel e Rimbaud. O brasileiro também organizou uma antologia com as traduções de Pound, um dos escritores mais influentes do século 20, para o selo Demônio Negro. Por fim, poemas inéditos de Augusto foram publicados pela Galileu Edições no início do mês. Além da intervenção na fachada, a Mário de Andrade abriga ainda uma exposição até meados de maio com cartazes inéditos produzidos pelo concretista entre 1974 e 1985.

Apesar das homenagens, o poeta, vencedor dos prêmios Pablo Neruda (2015) e Janus Pannonius (2018), não vê motivo para comemorações. Cada vez mais recluso e avesso a entrevistas e aparições públicas, Augusto fez uma espécie de desabafo ao EL PAÍS para justificar seu aparente silêncio. “Estou assoberbado dos mais diversos pedidos. Mas meu silêncio também é resultado de uma espécie de desalento diante da deplorável situação em que o país se encontra”, afirmou por email.

“A palavra dos poetas vem-se tornando cada vez menos considerada no contexto de consumo de massa em que vivem os cultores da poesia, onde nos situamos ‘à margem da margem’. Tivesse a palavra dos poetas alguma ressonância não seriam tão escassas as manifestações quando alertei em Brasília, ao receber a Ordem do Mérito Cultural (em 2015), para a conspiração contra o mandato da presidenta Dilma Rousseff (PT), posteriormente deposta num processo de impeachment grotesco e vergonhoso, sob o signo do elogio a um notório torturador da ditadura”, criticou.

O multiartista, agora nonagenário, arremata. “Com tais premissas, não me sinto disposto a comemorar o que quer que seja, vendo o meu país entregue a incompetentes, oportunistas e reacionários de toda a sorte, num conluio paramilitar. Tudo o que tem o Brasil a fazer hoje é livrar-se da covid-19 e do Bolsonavírus-22 (e por este último entendo toda a corja que acompanha o nosso ‘presidemente’). Um vírus mata. O outro imbeciliza.”

'Poema bomba' (1987) em exposição na Mário de Andrade.
'Poema bomba' (1987) em exposição na Mário de Andrade.Divulgação (Other)

Poesia concreta, ontem e hoje

O grupo-base do concretismo liderado por Augusto, Haroldo e Décio aparece de maneira coesa em 1952, com a publicação da revista Noigrandes, palavra indecifrável, mas que em termos semânticos significaria algo como fugir do tédio. A revista marca o início da poesia concreta no país, com textos que já apontavam para uma radicalização da sintaxe, do verso, da busca pela sonoridade e do culto à forma, ratificado posteriormente em diversos manifestos, como o Plano-Piloto da Poesia Concreta, de 1958.

Outros escritores orbitaram o núcleo duro paulista, com maior ou menor intensidade, entre polêmicas e rusgas, como Pedro Xisto, José Paulo Paes, Mário da Silva Brito e Ferreira Gullar. Posteriormente, Gullar criou o “neoconcretismo”, como recusa ao modelo mais ortodoxo do trio paulistano, unindo em torno de si artistas como Lygia Pape, Hélio Oiticica e Lygia Clark, todos das artes visuais. Ao longo dos anos, a relação entre Augusto e Gullar foi marcada por discussões públicas, até a morte do autor de Luta corporal em 2016.

Desde o nascedouro, a poesia concreta dialogou com a cidade, o desenvolvimento industrial e tecnológico do Brasil de então. Não à toa, o título do manifesto publicado em 1958 faz referência aos traços modernos e à arquitetura futurista de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer na concepção de Brasília, inaugurada dois anos depois. Estruturalmente, o objetivo concretista é a comunicação-forma, “sem presentificação do objeto verbal, sem biombos de subjetivismos”, como definiu certa vez Haroldo de Campos. Seus desenhos, simetria e cálculos a respeito da forma engendram uma série de detalhes ao processo de criação, como uma “engenharia” do verso.

Outro aspecto importante para o surgimento do grupo concretista no início da década de 1950 foi “o crescimento de um setor de leitores cosmopolitas”, na definição do crítico argentino Gonzalo Aguilar, em uma metrópole pujante e que vira nascer pouco tempo antes o Museu de Arte de São Paulo (MASP) e o Museu de Arte Moderna (MAM). Esse fator contribuiu significativamente para que a influência de nomes como Pound, Mallarmé, Apollinaire, E.E. Cummings, Maiakovski e James Joyce ganhassem espaço nas discussões não só dentro do grupo paulista, mas também no público, a partir também das traduções empreendidas por Augusto, outra vertente importante em seu trabalho.

“A tradução-arte, modelo criado por Augusto e Haroldo, é uma das heranças do concretismo. Eles recriaram em língua portuguesa a poesia de invenção, dos gregos, passando por criadores de linguagem como Apollinaire e Joyce a contemporâneos como o norte-americano John Cage, vertendo som e sentido ao mesmo tempo que mantêm a forma. Isso não se resume apenas ao conhecimento da língua. Eles foram além ao recompor o poema em nossa língua na sua forma original”, comenta o editor e tradutor Vanderley Mendonça.

Há também a aproximação com João Cabral de Melo Neto e o resgate de Oswald de Andrade, tido como esteticamente mais radical entre os integrantes da Semana de Arte Moderna de 1922, um marco cultural na época. Posteriormente, o autor de Serafim Ponte Grande e do manifesto Antropófago, que Augusto defende como “a única filosofia original brasileira”, seria uma das peças na aproximação entre o grupo concretista e o movimento tropicalista, em meados da década de 1960.

A despeito da aceitação em alguns núcleos, a obra de Augusto, a poesia concreta, acabou rechaçada por parte da crítica. A proposta de ruptura defendida pelo grupo encontrou em parte do cânone literário brasileiro certa resistência. Ao mesmo tempo, serviu para “o surgimento de novas vertentes da crítica, que conseguissem responder às obras de invenção, despindo-se do automatismo da rejeição à novidade e sem a proteção imutável e sacra ao cânone”, como explica Raquel Campos, pós-doutorando em Estudos Literários pela Universidade Federal de São Carlos.

“Acredito que o concretismo foi o último grande movimento de vanguarda da literatura brasileira, por conta de sua repercussão, não apenas nacional, como internacional. Além disso, as mudanças propostas por Augusto, Haroldo e Décio ainda estão sendo exploradas por diferentes poetas e radicalizadas a partir das inúmeras possibilidades tecnológicas atuais”, disse a pesquisadora em entrevista. Na atualidade, nomes André Vallias, Arnaldo Antunes e Marcelo Sahea têm feito trabalhos influenciados pela poesia concreta.

Os limites do papel e a tecnologia

Em uma entrevista publicada no portal de artes visuais New City Brazil em 2016, Augusto comentou que não manifestou na infância nenhuma predisposição para escrever. “Eu gostava de desenhar. Só considerei escrever poesia por volta de dezesseis anos, influenciado pelo meu irmão Haroldo, um ano e meio mais velho que eu e também atraído por esse campo”. É curioso pensar que o poeta poderia nem sequer ter escrito. De três formadores da poesia concreta no Brasil, Augusto foi o menos verbal deles.

Poema 'Xeque mate' (inédito).
Poema 'Xeque mate' (inédito).Divulgação (Other)

“Augusto começou sua trajetória como poeta, mas foi se aproximando cada vez mais das artes visuais. Não é raro encontrar em suas obras poemas concretos transformados em obras totalmente visuais, como no caso de Código (1973) ou Viva vaia (1972). Para mim e para outros professores que estudaram sua obra, sobretudo no exterior, ele é mais conhecido na comunidade das artes do que na da poesia”, disse Marjorie Perloff, professora emérita de Inglês na Universidade de Stanford.

São vários os trabalhos que romperam os limites do livro, alguns em parceria com o artista intermídia espanhol Julio Plaza. Em 1987, por exemplo, Plaza instalou em grandes letras de madeira pintadas em vermelho, por cerca de 80m, na fachada do edifício da Bienal de São Paulo, o poema “Cidade/City/Cité”. Ambos já haviam testado os limites do papel com a série Poemóbiles (1974), livro com doze poemas visuais, tridimensionais e interativos, fazendo com que o leitor precise “manipular” as folhas soltas para ler o livro.

Em 1991, poemas como Rever e Poesia é risco foram projetados em laser na Av. Paulista. Dez anos depois, o poema Tudo está dito também apareceu na fachada de prédios do Rio de Janeiro. No ano passado, um outdoor com o poema Viva vaia foi exposto nas ruas de Vitória. “Não vejo o livro como um limite e tenho muito apreço pelo veículo impresso. Mas entendo que a comunicação visual abre enormes áreas de informação e difusão que complementam e ampliam a veiculação da matéria literária”, disse Augusto em entrevista recente a um site alemão.

Em paralelo ao apreço pelo visual, Augusto sempre manifestou interesse pelo tecnológico. Isso se acentuou a partir dos anos 1980, com maior abertura aos computadores, e na década seguinte, com a evolução da internet no país. “O percurso poético de Augusto operou dois deslocamentos básicos desde a década de 1950: de um lado o poeta vem transpondo ou aclimatando seus poemas e experimentos intersemióticos, antes contidos nos suportes papel ou analógico (livros, registros fonográficos, vídeo-arte etc) para os dispositivos e plataformas digitais da atualidade”, explica o crítico e ensaísta Ronald Augusto.

Do ponto de vista estético, Ronald salienta que “a maturidade incutiu em Augusto uma faceta mais política em suas intervenções do que o Augusto mais jovem”, afirma. “Não estou apostando num passado alienado do poeta, e suas traduções de Maiakovski servem de prova de que a crítica às condições sociais e políticas de nosso país sempre estiveram em sua alça de mira. Mas, me parece apenas que Augusto hoje vive mais intensamente o espírito da época com uma posição crítica frente à onda conservadora que se projeta no país”, completa.

A música. E os tropicalistas

Surgido em meados da década de 1960, o grupo tropicalista, formado por artistas Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Gal Costa, Torquato Neto, José Carlos Capinam, Nara Leão, Rita Lee e os irmãos Arnaldo e Sérgio Baptista, era constantemente atacado sob a ótica de que a música produzida em comunhão com as novidades daquele período, como a sonoridade da guitarra elétrica, eram nocivas para a músicas popular brasileira.

Poema 'Viva vaia' em outdoor.
Lygia de Azeredo Campos

Augusto, no entanto, identificou no grupo, sobretudo em Caetano, um quê de vanguardista que os unia. Para o paulista, o baiano autor de Tropicália era responsável por dar continuidade às mudanças estéticas promovidas pela Bossa Nova no fim da década anterior, na produção de João Gilberto, Tom Jobim, entre outros. Essas considerações foram publicadas em 1968, no livro Balanço das bossas e outras bossas.

“Um artigo de Augusto sobre minha canção Boa palavra, que tinha entrado na competição do festival da Excelsior (o primeiro festival de música popular da TV brasileira), me foi mostrado por um amigo. Fiquei intrigado. Depois, já em São Paulo, Augusto me procurou e marcou um encontro. Dali passamos a nos ver, ele me apresentou a seu irmão Haroldo e a Décio Pignatari. E à obra de Oswald de Andrade, aos textos de Joyce, aos poemas de E.E.Cummings, ao Mallarmé de Um golpe de dados”, explica Caetano Veloso ao EL PAÍS.

“Augusto viu no que começávamos a fazer uma identificação de alguma sorte com o trabalho deles. Esse clima trouxe para perto de nós os maestros Júlio Medaglia, Rogério Duprat, Damiano Cozzella. Nós tínhamos um programa, um projeto, um plano. Os concretos viram ali algo que condizia com suas próprias aventuras expressivas”, ressalta Caetano. “Os papos com eles influíram muito no que aprontávamos. E os maestros deram cara a muito do nosso som.”

A defesa feita por Augusto das intenções tropicalistas representava a maneira como o escritor se relaciona com a música, um entusiasta de nomes de vanguarda, como Cage, o compositor alemão Stockhausen e o austríaco Webern, pouco difundidos no Brasil, mas que estavam no coluna vertebral das experimentações promovidas pela Tropicália. Duprat, maestro-arranjador do núcleo, autor da orquestração de Alegria, alegria foi aluno de Stockhausen na Alemanha, por exemplo. Batmacumba, de Gilberto Gil, e Geléia geral, de Torquato em parceria com Gil, são outros exemplos da influência concretista no movimento.

O desejo de ver seus poemas se expandirem do papel também fez com que algumas de suas obras tenham virado canções. Augusto musicou parte do seu trabalho em parceria com o filho, Cid Campos. Caetano gravou o poema Pulsar (1975) em seu disco Velô, de 1984. Outros artistas, como Tom Zé e Arnaldo Antunes também fizeram caminho semelhante, ao levar a poesia concreta para a canção popular.

O poeta Augusto de Campos,  ícone do concretismo brasileiro, em uma imagem de 2016.
O poeta Augusto de Campos, ícone do concretismo brasileiro, em uma imagem de 2016.Fernando Laszlo

“Augusto é meu parceiro em Cadê Mar. E a gravação de Senhor Cidadão começa com ele dizendo o poema Cidade/City/Cité. Em uma das músicas de maior sucesso, Menina, amanhã de manhã, uso o recurso de ir suprimindo letras no refrão final, até transformar-se num chiado constituído pelas últimas consoantes, que em acelerando leva para um contexto de sexualidade. Evidente prática concretista. São vários os recursos semelhantes dos quais os tropicalistas usam e abusam”, disse Tom Zé.

“Eles (concretistas) eram vanguardistas. Tinham uma atitude semelhante à dos criadores das vanguardas do começo do século 20. Para mim, Augusto foi um vanguardista radical. Buscou as letras de luzes coloridas no Poetamenos. Os poemas sem palavras na série de Pop-cretos. E nunca parou de experimentar. E buscar. Até hoje”, salienta Caetano.

Sobre o papel das vanguardas no Brasil contemporâneo, o rescaldo da produção de concretistas e tropicalistas, Caetano oscila entre a esperança e o temor. “Há muita produção horizontal e, com a internet (que confirma as intuições de Augusto), vemos favelados compondo peças eletrônicas em funks com poucas (e descaradas) palavras. O Brasil é um país de situações horrendas: prisões que são masmorras, onde 80 caras ocupam xadrezes que foram construídos para 15. Parece insalvável e ainda sonha em salvar o mundo.”

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