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Paula Gaitán, a cineasta que se desafia a esculpir o tempo

Ao transitar entre linguagens e formatos para falar de memória e eternos retornos, a diretora franco-colombiana faz um cinema livre e de rara ambição autoral

A cineasta Paula Gaitán.
A cineasta Paula Gaitán.Arquivo Pessoal

Paula Gaitán (Paris, 66 anos) sempre gostou das imagens em movimento. Formada em artes plásticas (ou artes visuais, como ela prefere), ela fazia fotografias, instalações e vídeo-arte, mas o cinema só passou a ocupar um lugar importante em sua vida no final dos anos 1970, quando trabalhou com Glauber Rocha, seu parceiro de arte e de vida, no filme A idade da Terra, em que ela assinou a direção de arte. “Aí descobri o cinema como esse espaço rico em que se abrem todas as possibilidades, como se fossem vários rios que correm em paralelo e se encontram em determinado momento para desembocar no mar. A confluência de várias artes sempre me interessou”, diz ao EL PAÍS a cineasta, que foi a homenageada da 24ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes, ocorrida no mês de janeiro.

A diretora franco-colombiana (deve à mãe a nacionalidade do país latino-americano em que cresceu) soma nove longas-metragens no currículo. Dos curtas que fez, já perdeu a conta. Seu cinema é como a própria experimentação da vida: Gaitán transita de uma linguagem a outra, faz poesia em imagens, mistura documentário e ficção e se permite todas as liberdades formais e estéticas para construir seus filmes. E a escolha do verbo não é à toa: ela concebe a feitura de uma obra como algo similar à arquitetura. “A montagem é determinante no cinema, ela é a coluna vertebral de qualquer narrativa”, diz, taxativa, ela própria uma montadora de vasta experiência.

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Foi, inclusive, na ilha de edição e montagem de sua casa, rodeada de gatos, que Gaitán se isolou antes mesmo de que começasse a pandemia de covid-19. Estava finalizando projetos em andamento e criou outros, três dos quais apresentou ao público durante a Mostra de Tiradentes: Ostinato, que ela não define como documentário, mas como “uma conversa, um encontro” com o músico e compositor Arrigo Barnabé; e os curtas Ópera dos cachorros (um passeio da cineasta pelas ruas de São Paulo, registrando os muitos sons da cidade) e Se hace camino al andar, este baseado no poema homônimo do espanhol Antonio Machado, que fala do processo de refazer caminhos.

O eterno retorno e o resgate da memória são temas recorrentes no cinema de Gaitán. Em Diário de Sintra (2008), ela faz o testemunho dos últimos momentos do marido, mas também da vida no exílio durante a ditadura militar brasileira, e mergulha no mistério de como se forma a memória. É uma carta de amor a Glauber. “Vê-lo trabalhar era muito instigante, muito inspirador”, diz ela, deixando claro o quanto esse afeto influenciou na construção das imagens com sentimento que caracterizam sua própria obra.

O seu também é um cinema atravessado pelo materialismo histórico, no qual ela reflete sobre seu lugar de mulher latino-americana, as relações com seu país de origem, a Colômbia, e com o Brasil, e sobre as formas de produção. Gaitán já fez filmes com muito dinheiro, com pouco dinheiro e com quase nenhum. Após o decreto do Governo de Fernando Collor de Mello que extinguiu as instituições federais de apoio ao audiovisual brasileiro, ela se mudou com a família de volta para a Colômbia, onde trabalhou na televisão pública do país, produzindo entre 50 e 60 documentários. “Tínhamos que levar ao ar quase um filme por mês. Aí aprendi a trabalhar com equipes reduzidas, um cinema mais precário, mas, ao mesmo tempo, muito dinâmico”, lembra.

Na onda do cinema de retomada dos anos 2000, ela voltou ao Brasil e começou a projetar o que hoje é sua obra-prima, Luz nos trópicos (2020), que estreou na Berlinale do ano passado. O longa de quatro horas e meia de duração se passa, em grande parte, nas memórias de Igor, um descendente da etnia Kuikuro (interpretado pelo ator paraense Begê Muniz), que está em busca de sua ancestralidade. Entre Nova York e o Xingu, o filme estabelece uma cartografia para recuperar um território perdido, em todos os sentidos. É um filme épico de rara ambição autoral, em que Gaitán mistura linguagens para construir uma rapsódia colonial sobre os povos nativos das Américas e suas travessias —simbólicas e literais, já que o espectador acompanha sensorialmente seus deslocamentos por rios, pântanos e florestas.

A diretora Paula Gaitán, durante a filmagem de 'Luz nos trópicos'.
A diretora Paula Gaitán, durante a filmagem de 'Luz nos trópicos'.Arquivo Pessoal

Foi graças a um edital de baixo orçamento (e é difícil acreditar que uma obra de tal magnitude, em tantos sentidos, pudesse ser feita com poucos recursos) que Luz dos trópicos começou a sair do papel. “O roteiro teve mais de 20 versões, mas foi sendo reescrito a partir da própria história do Brasil, não ficou congelado no tempo”, conta Gaitán, antecipando outro de seus talentos: o de esculpir o tempo. Ela mesma define esse épico como uma síntese de todas as suas obras anteriores, talvez porque nele ela tenha aperfeiçoado seu dom de agregar todos os movimentos, inclusive os da natureza, no ciclo vital do próprio filme. “Esse é o trabalho essencial da montagem, é ela que define a temporalidade da obra. É ela que catalisa o poder de síntese para esculpir, de certa maneira, o material bruto que se tem”, resume.

Mulheres do fim do mundo

Se para Glauber Rocha a essência do cinema era “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, para Gaitán é como se tudo fosse uma coisa só. “A caixa escura da câmera é o espaço da imaginação, o lugar em que essa imaginação capta o real”, diz ela, tão coerente com seu cinema expandido, de fluxo de consciência, que dialoga tão bem com a obra de Agnès Varda, pioneira do olhar feminino no cinema. Em outubro de 2014, as duas se encontraram na casa de Varda, em Paris, e registraram o momento em um documentário de 29 minutos, A chuva em meu jardim. A ficção de ambas se alimenta do documentário e talvez por isso elas se permitam a liberdade de construir e esculpir suas narrativas sem amarras.

As cineastas Paula Gaitán e Agnes Varda, em 2015, durante a filmagem de 'A chuva do meu jardim'.
As cineastas Paula Gaitán e Agnes Varda, em 2015, durante a filmagem de 'A chuva do meu jardim'.Arquivo Pessoal

Foi o mesmo exercício que Gaitán realizou ao trabalhar com outra gigante, mais recentemente. Em 2017, ela dirigiu e montou o primeiro videoclipe da carreira de Elza Soares, A mulher do fim do mundo. Em dois dias filmagem e com um orçamento “modesto”, a diretora, que foi escolhida pela própria Elza, plasmou em imagens o samba, a dor e o riso dessa mulher do devir, que, “apesar das dificuldades, se ergue e se reinventa”.

“O convite foi um desafio, porque eu tinha uma intuição da escala que ele poderia vir a tomar, no sentido de alcançar um público muito maior do que eu estava acostumada. Fiquei pensando em como construir esse curta —porque o videoclipe é um curta— a partir da minha experiência junto com a potência da Elza”, conta a cineasta que só tem uma palavra para referir-se à intérprete: “brilhante!”.

Gaitán (que é mãe da cantora Ava Rocha e do cineasta Eryck Rocha) gostou do formato “enxuto” e se prepara para lançar em fevereiro um clipe da cantora Ana Frango Elétrico. “Essas obras impõem um desafio para alguém que fez um longa de quatro horas e meia e porque têm uma linguagem definida. Os filmes que eu faço têm uma liberdade nesse sentido, eles vão nascendo com uma linguagem que eu nunca sei ao certo até onde pode chegar”, diz. Em momentos de terra arrasada, principalmente no campo audiovisual, essa liberdade é um alento para o tempo, a memória e o sentimento em imagens.








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