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Tribuna
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Zygmunt Bauman, do ‘bullying’ antissemita ao estrelato intelectual

Leia a introdução de ‘Bauman: uma biografia’, escrita por Izabela Wagner e publicada no Brasil pela editora Zahar, na tradução de Carlos Alberto Medeiros

Izabela Wagner
O filósofo polonês Zygmunt Bauman, em Barcelona.
O filósofo polonês Zygmunt Bauman, em Barcelona.CARLES RIBAS
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22 de junho de 2013: Breslávia

O local é um salão de conferências de seiscentos lugares em Breslávia, cidade pitoresca construída sobre doze ilhas do sinuoso rio Oder que recuperou plenamente sua glória depois de sofrer uma destruição quase absoluta durante a Segunda Guerra Mundial. O salão está lotado de estudantes e professores universitários, com jovens se amontoando nas escadas ou de pé, encostados nas paredes, do lado de câmeras de TV que cobrem a palestra. O notável palestrante de hoje é Zygmunt Bauman, um intelectual globalmente reconhecido. Esse homem magro, de 88 anos, está sentado no palco entre o organizador do evento e o prefeito de Breslávia, Rafał Dudkiewicz. Dois guarda-costas contratados pela universidade estão de pé perto de Bauman. A tensão é grande. Dois meses antes, o político esquerdista franco-germânico Daniel Cohn-Bendit cancelou uma palestra que seria realizada ali em função de ameaças de morte. Hoje, mais uma vez, os organizadores temem a ocorrência de distúrbios provocados por grupos nacionalistas xenofóbicos. Bauman é um excelente orador. Vários de seus livros (entre os mais de cinquenta que publicou) são best-sellers, escritos num estilo acessível ao grande público. Sua visão de mundo é uma inspiração para jovens engajados e movimentos sociais. Bauman é um raro intelectual que se tornou celebridade, e suas palestras atraem milhares de pessoas, da Itália ao Brasil e da Grécia a Portugal. Ele também tem, é claro, um público na Polônia. O tema da palestra de hoje são os ideais da esquerda, a velha e a nova, e os desafios enfrentados pelos movimentos com esse viés na atual configuração do capitalismo.

Quando o prefeito assume o microfone para dizer algumas palavras, é atacado pelo público que está na parte de trás do salão, que entrou no último minuto, assim como por outras pessoas misturadas à plateia — cerca de cem, no total. Eles gritam palavras ofensivas, agitam os braços, cerram os punhos e ameaçam os que estão no palco. “Dudkiewicz, por que você o convidou?”, gritam. “Abaixo o comunismo! Nuremberg para os comunistas!” “Os comunistas serão enforcados!” Alguns manifestantes “erguem as mãos na saudação nazista”, lembrará depois Adam Chmielewski, organizador do evento. Bauman observa com preocupação — nervoso, mas não em pânico. O público universitário, atônito, parece incapaz de acreditar no que está vendo com seus próprios olhos.

Uma das palavras de ordem que os manifestantes proclamam, aos gritos, é “NSZ!” (Narodowe Siły Zbrojne, ou Forças Armadas Nacionais). Eles se referem ao grupo nacionalista militar clandestino que enfrentou os nazistas e a esquerda polonesa durante e após a Segunda Guerra Mundial. Quando jovem, imediatamente após a guerra, Bauman foi oficial do KBW (Korpus Bezpieczeństwa Wewnętrznego, ou Corpo de Segurança Interna), uma unidade de inteligência do Exército polonês que perseguia os remanescentes das NSZ. A história é velha — tem mais de sessenta anos —, mas esses radicais de direita agem como se tivesse acontecido ontem. Eles retomaram o bastão das NSZ e seu antissemitismo nacionalista radical e xenofóbico. Alguns usam camisetas com as iniciais do NOP (Narodowe Odrodzenie Polski, ou Renascimento Nacional da Polônia), o partido que organizou a manifestação junto como ONR (Obóz Narodowo-Radykalny, ou Acampamento Nacional Radical). Ambos usam o símbolo da falange que grupos fascistas e antissemitas ostentaram em suas bandeiras no período entreguerras. Eles portam bandeirolas — pequenas flâmulas do tipo usado por grupos que organizaram distúrbios antissemitas em universidades polonesas na década de 1930.

Depois de algum tempo, chega a polícia, recebida com aplausos pela plateia universitária. Os grupos agressivos abandonam o salão, prometendo voltar. Deixam Bauman sentado sozinho, completamente encolhido no palco. Ele fará sua palestra, mas ninguém irá se lembrar dela. O que ficará na memória serão os brutamontes que mostram que o fascismo ainda tem o poder de seduzir pessoas jovens e que ainda existe quem se recuse a aceitar o direito de pessoas como Zygmunt Bauman de se identificarem como polonesas.

Durante os anos que ainda viveu, Bauman jamais comentou o incidente em público. Mas as palavras e símbolos usados pelos manifestantes lhe eram familiares desde sua infância em Poznań, onde sofreu com o bullying antissemita e as leis raciais que o obrigavam, como os outros judeus, a se sentar no “banco do gueto” da escola. Talvez ele tenha sentido que sua vida completava um círculo, ou que as antigas forças estavam de volta. A utopia do século XX que ele havia desejado — o fim das guerras, o desaparecimento dos conflitos étnicos e raciais e a possibilidade de uma sociedade igualitária — parecia ter acabado. O mundo estava enfrentando um velho fantasma, o ódio xenofóbico do “outro”.

Por que Bauman era alvo desse ódio? Por que esses jovens queriam botá-lo na cadeia? O que ele teria feito para ser transformado num bode expiatório por parte da sociedade polonesa? E como uma mesma pessoa podia ser aclamada e admirada por milhões e odiada por outros?

Quem era Zygmunt Bauman?

Bauman, que morreu em 2017, foi um sociólogo, filósofo e intelectual. Tornou-se conhecido por outros sociólogos na década de 1960, quando, ainda jovem, fazia palestras em conferências internacionais. Mais tarde, passou a ser bastante conhecido entre a comunidade acadêmica mais ampla com a publicação de Modernidade e Holocausto (1989). O livro ganhou prêmios e foi reconhecido como uma contribuição significativa à compreensão da Shoá, bem como uma importante crítica da modernidade. Bauman, um intelectual e escritor notavelmente disciplinado que aprendeu sobre comunicação nas linhas de frente como um messias do socialismo para soldados poloneses analfabetos, veio depois a se tornar uma figura-chave no desenvolvimento da teoria pós-modernista; seu ecletismo e sua abordagem humanista fizeram com que os colegas o chamassem de “Simmel moderno” (em alusão ao eminente sociólogo alemão Georg Simmel).

Depois de aposentado, Bauman ultrapassou os limites da escrita acadêmica e buscou um público mais amplo, mais jovem. Foi um passo incomum para um intelectual com 75 anos, mas incrivelmente bem-sucedido. Professor britânico aposentado, judeu polonês por nascimento, foi abraçado por leitores de todo o mundo após a publicação de Modernidade líquida (2000), um livro inovador que se tornou best-seller quase que da noite para o dia. As obras que se seguiram popularizaram ainda mais a visão de Bauman, e sua análise das sociedades ocidentais contemporâneas tocou fundo em milhões de leitores, transformando-o num dos intelectuais mais prolíficos, influentes e lidos do século XXI. Bauman apresentava sua visão de mundo de uma forma que causava forte impressão nas pessoas. Foi citado por jornalistas, escritores, ativistas, artistas e também por acadêmicos e intelectuais. Captou a velocidade e as permanentes transformações do mundo e era visto como um oráculo, embora jamais tenha tido a pretensão de prever o futuro. Ele dizia que o mundo o enchia de pessimismo, mas que a admirável criatividade dos seres humanos proporcionava alguma reserva de otimismo. Essa era a voz de um intelectual idoso cujas experiências de guerra e fuga, discriminação e perseguição o tornaram particularmente atento aos processos que levavam à guerra e à ditadura.

Bauman era discreto sobre sua vida privada. Em nossas entrevistas para este livro, ele por vezes dizia que sua biografia era típica de sua geração e não tinha influenciado particularmente o seu trabalho. Mas, depois de conhecer os detalhes de sua vida, convenci-me do oposto — seu trabalho é profundamente baseado em sua experiência pessoal, sobretudo na série de eventos traumáticos que se iniciou em sua infância e se estendeu até os seus quarenta anos. Num ensaio inédito, dirigido a seus filhos e netos, ele revelou os interstícios de sua vida e, nesse processo, acabou reconhecendo o fato.

Bauman tentou construir um mundo melhor. Nas diferentes fases de sua vida adulta, nunca foi um observador passivo da sociedade, mas um ativista que vivia em função de seus ideais. Foi testemunha e participante de muitos eventos trágicos que transformaram fundamentalmente nosso mundo — vivenciando o antissemitismo em seus dias de juventude na Polônia, a fuga do nazismo, o exílio na Rússia soviética, a fome, a vida de combate de um soldado, a de um pregador do comunismo durante a implementação de um regime pró-soviético na Polônia, o colapso do stalinismo e a interação do autoritarismo com a democratização parcial na Polônia do pós-guerra. Bauman foi um refugiado duas vezes, em 1939-44 e em 1968. Não escolheu uma vida de nômade, mas ela lhe foi imposta. Durante a maior parte de sua existência, fez o possível para ser um bom polonês, mas a Polônia não o aceitou como tal. Sua identidade polonesa foi contestada pelas normas, pelas leis e pela perseguição antissemitas — a percepção de Bauman de sua identidade não era aceita por aqueles que a controlavam a partir de fora.

O sentimento de identidade (Quem sou eu?) e o master status (Como os outros me percebem?) são dois eixos que cortam este livro.

Aqui, sigo o pensamento de Everett Hughes (proeminente sociólogo de Chicago), que em 1945 apresentou o conceito de master status. Com essa expressão ele define a identidade social imposta por outros. Uma contradição de status ocorre quando alguém tenta desempenhar um papel social embora lhe faltem as características necessárias a que a sociedade está habituada. Essa situação costuma ocorrer quando pessoas de grupos discriminados ocupam posições de prestígio, ou tentam fazê-lo.

Ainda criança, Bauman não pôde ser aceito como o primeiro aluno de sua turma na escola, apesar de seus resultados superiores, porque era judeu e tal posição era reservada a um polonês que não pertencesse a esse grupo. O master status nesse caso era um dos principais fatores que determinavam e limitavam os papéis sociais que ele podia exercer. Isso prosseguiu por grande parte de sua vida na Polônia: a tensão entre sua autoidentificação — polonês — e o master status imposto pelas pessoas à sua volta — judeu. Sua experiência era comum no país. Bauman teve muitos outros papéis: estudante, soldado, oficial, acadêmico, pai, emigrante e imigrante. Mas o status que predominou foi sua origem étnico-cultural, que impôs percepções e influenciou fortemente suas interações com os outros.

No nível pessoal, ele aprendeu como o comportamento tribal de sociedades divide as pessoas entre “nós” e “eles” — o “conflito”, como Bauman escreveu, “sobre quem tem o sangue mais vermelho”. Ele muitas vezes abordou esse tema, vendo-o como a origem dos problemas da humanidade. Com certeza, sua própria vida nunca seria inteiramente livre dos tormentos do tribalismo.

Na primeira parte da vida, ele foi afetado por forças extremas que privavam os indivíduos de sua agência e de seu senso de empoderamento. Essa dinâmica provavelmente moldou sua convicção de que a vida consiste em situações arriscadas, de que o controle de uma pessoa sobre a própria existência é amplamente limitado e de que o caráter do indivíduo pode propiciar possibilidades de se ajustar a uma determinada situação, mas a situação é determinada pela história e pela política. Essa visão de seres humanos enredados em um mundo poderoso, fora de seu controle, é contrária à ideologia popular na segunda metade do século XX, que apresentava o indivíduo como artífice de seu próprio destino. Enquanto o mundo neoliberal proclamava que “Se você quiser, você consegue”, Bauman dizia o oposto, descrevendo uma sociedade cuja ideologia leva os cidadãos a acreditarem que sua agência é confirmada pelo consumo — a ilusão onipresente do poder do indivíduo.

Voltados para leitores da sociedade ocidental, seus livros afirmavam que, embora o capitalismo prometesse que a felicidade podia ser alcançada por meio das compras e do consumo, ele na verdade desestabilizava tudo aquilo que a civilização havia criado: as relações sociais, o amor, as regras, a moral, os valores — nos termos de Bauman, ele os “liquefazia”. Os processos e regras da era “moderna”, antes sólidos, com seu sentido de desenvolvimento e progresso constantes, agora eram líquidos, caracterizados por uma preferência pelas novas, próximas e melhores soluções, pela inovação em si. O sentimento de “liquidez” — sua temporalidade e falta de estabilidade — caracterizava os nossos tempos. O modo de vida antigo, percebido como sólido, fixo e claro, dava lugar a algo novo, ainda não estabelecido de fato — uma espécie de trabalho em andamento. Nossa época era um período intermediário no qual cada membro de uma sociedade desenvolvida precisava ser flexível, pois as estruturas, as regras e os valores precedentes não estavam mais disponíveis. A precariedade era a consequência das transformações de nossas sociedades.

No mundo líquido, tudo se transforma com tanta rapidez que somos levados a sentir que a vida é transitória. Os tempos líquidos são definidos pela incerteza. Se, nas gerações anteriores, muitas pessoas passavam a vida toda trabalhando no mesmo lugar, tendo a mesma ocupação, muitas vezes com o mesmo parceiro e a mesma família vivendo na mesma casa, os habitantes do mundo líquido são obrigados a mudar de local de trabalho e de ocupação, adaptando-se a um ambiente dinâmico. Essa instabilidade contextual está relacionada a um elevado grau de mobilidade geográfica. A dinâmica da liquidez modificou as relações sociais, que se tornaram frágeis. Os laços sociais se fragilizaram, aumentando a solidão das pessoas. A crença persistente de que comprar o último produto da moda nos faria felizes era uma poderosa ilusão. Essa é a desconstrução baumaniana de nossas sociedades ocidentais.

Bauman sabia muito sobre ilusões, crenças, pertencimento e engajamento. Foi um ex-missionário do socialismo que teve lições de engajamento ao procurar construir uma nova sociedade na primeira parte de sua vida, e então passou a segunda parte advertindo as pessoas sobre o perigo de engajamentos e crenças inumanos. Sua transformação foi diferente da dos colegas que, criticando seus sistemas de crenças iniciais, lançaram-se de cabeça em outros, novos e opostos (do comunismo ao capitalismo). Bauman manteve seus valores e sonhos sobre justiça social, mas analisou de forma crítica os sistemas que estavam sendo produzidos, supostamente para atingir objetivos nobres.

Este livro, a primeira biografia abrangente de Bauman, situa seu trabalho no contexto de sua vida. Espera-se que possibilite aos leitores de sua obra revisitá-la com uma percepção mais profunda de suas mensagens, que emanam não apenas da volumosa produção acadêmica e do pensamento de Bauman, mas também de suas icônicas experiências.

Introdução do livro Bauman: uma biografia (Zahar, 2020), de Izabela Wagner. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. 648 páginas

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