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DÍAS CONTADOS
Opinião
Texto em que o autor defende ideias e chega a conclusões basadas na sua interpretação dos fatos e dados ao seu dispor

Obrigada, Pixar, por criar ‘Soul’ e mostrar que há vida além de um “propósito” para o mercado

Animação nos recorda que existem outros mundos e que eles são mais discretos, mais belos e mais importantes do que a ideologia de “uma missão” para dar sentido à existência

Nuria Labari
Imagem de 'Soul', da Pixar.
Imagem de 'Soul', da Pixar.Pixar/Disney (PIXAR)
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Rome, Italy. Columbian writer Gabriel Garcia Marquez sits at fashionable Caffe' Rosati in piazza del Popolo, in downtown Rome, September 9 1969. (Photo by Vittoriano Rastelli/Corbis via Getty Images)
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Há algum tempo existe uma tendência imparável no mercado de trabalho: a moda da missão. Todas as empresas sérias têm as suas em suas páginas da Internet. Assim, por exemplo, a missão de uma empresa como a Glovo, o Rappi da Europa, pode ser alcançar uma cidade mais verde. E a missão dessa mensagem é que seus trabalhadores entendam que pedalar na chuva sem contrato tem uma finalidade ecológica. O pior é que agora essa ideia de missão também está colando nos indivíduos e serve para diferenciar as vidas com sentido daquelas sem sentido. Então a Pixar chega e faz isso. Um filme de animação sobre a alma em que fica claro que a vida não tem sentido nenhum. Nem profissional, nem pessoal, nem romântico. Pixar 1, LinkedIn 0. Obrigado, Pete Docter, por esta nova joia.

Soul é o paraíso da melhor animação de uma vida ―é evidente a homenagem ao desenhista Jeff Smith e seu inesquecível Bone— e do maior virtuosismo técnico da atualidade. Deslumbrante do início ao fim, tanto pela técnica como pelo roteiro, que luta para explicar nada menos que o sentido da vida. E o faz de um jeito rebelde e, o que é mais raro nos desenhos animados, decente também.

Joe, o protagonista de Soul, é um homem fracassado: sem mulher, sem sucesso e sem dinheiro. E ele também é negro, o que significa que tem menos opções para melhorar as condições acima do que qualquer homem branco em sua situação. No entanto, sua vida tem um sentido: jazz. Admito que, quando Soul começou, pensei que a música ia acabar sendo o que a bicicleta era para os trabalhadores da Glovo e que eu não ia gostar nada disso. Mas acontece que Soul também se esforça para nos explicar por que o jazz também não serve para nada. Porque é melhor jogar no lixo qualquer ideia que relacione o significado da vida ao sucesso. Então, se Joe morre, o que acontece assim que o filme começa, nada acontece. O mundo está cheio de pesos-pesados com a determinada missão de nos deslumbrar com seu talento.

Com a morte de Joe, descobriu-se que, para voltar à vida e fazer seu grande show, ele precisa ajudar uma alma jovem ―que ainda não desceu à Terra― a ter uma alma completa para viver. Alguns críticos dizem que este filme é complicado para as crianças por trabalhar um tema abstrato como a alma. No entanto, as crianças transitam com muito mais naturalidade entre o mundo visível e o invisível do que os mais velhos, uma vez que ainda não foram esmagadas pelo trabalho, o dinheiro e as conquistas. Quanto ao resto, o filme é tão fácil como foi Procurando Nemo, só que aqui, em vez de um pai, procura-se uma alma. Pixar 2, Freud 0.

O fato é que a jovem alma está convencida de que não pode viver porque não conhece sua missão e o bobo do Joe tenta causar-lhe inveja com sua paixão musical. No plano “minha vida vale mais porque eu conheço minha paixão”. Ou o que já aceitamos no LinkedIn: “meu trabalho é valioso não pelo que vale ―cada vez menos―, mas porque me dá sentido”. Bem, tudo isso é pura ideologia. Na realidade, o sentido da vida nada mais é do que ser vivida. Uma ideia que se desdobra nos 107 minutos que dura Soul e que serve para nos lembrar o que já sabíamos: que existem outras vidas, que existem outros mundos e que são mais discretos, mais belos e mais importantes que a ideologia com o sentido do livre mercado.

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