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Dez lampejos sobre John Lennon

Esta terça-feira marca os 40 anos do assassinato do ‘beatle’ mais polêmico. Hoje beatificado, o personagem ainda fascina por suas reviravoltas e resignações

Diego A. Manrique
Yoko Ono e John Lennon
Agustín Sciammarella

Após o fim dos Beatles, John Lennon publicou seis discos de composições próprias e algumas gravações ao vivo, além de uma coleção de clássicos do rock ‘n’ roll. Depois de sua morte, foram lançadas mais de 20 compilações, que raramente continham material inédito. Essa avalanche contribuiu para apagar sua evolução como músico e como pessoa.

Estes são meus poderes. A desvantagem de alçar John Lennon à categoria de símbolo é subestimar as virtudes que nos fizeram notá-lo. O carisma, por exemplo, que explica sua liderança durante os sete anos de obscuridade antes da eclosão dos Beatles em 1963. Lennon detestava a própria voz, mas, uma vez tratada pelo produtor George Martin, ela se revelou formidável ―tanto nas faixas suaves como nas selvagens. Como instrumentista, John era mais visceral do que técnico: sempre teve ao seu lado guitarristas de primeira, mas eles dificilmente podiam alcançar sua ferocidade.

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Transformando vivências em canções. Com seu habitual cinismo, Lennon descrevia o ofício de compor como uma bobagem extraordinariamente bem remunerada. “Hoje vamos escrever uma piscina”, ele brincava com Paul McCartney. Carecia da fantasia de seu companheiro, capaz de invocar um drama inteiro a partir de um nome (Eleanor Rigby). O assunto principal de John Lennon era... John Lennon. Suas angústias, suas conquistas, suas críticas ao mundo circundante. Algo atípico em seu gênero, onde os vocalistas dependiam de compositores profissionais ou, no máximo, faturavam quimeras sobre o mundo dos teenagers.

“John Lennon é o culpado por tudo.” Nem todos amam Lennon. Dominic Sandbrook, um dos mais perspicazes historiadores britânicos, critica-o duramente em seu último livro, The Great British Dream Factory, dedicado à “imaginação nacional”. O historiador denuncia, claro, a dissonância entre o materialismo de John e a proposição utópica de Imagine. E atribui a ele parte do êxito de Margaret Thatcher, ao difundir entre seus contemporâneos a cultura do individualismo e da gratificação instantânea. Acontece que a vida adulta de Lennon se desenvolveu diante dos meios de comunicação, o que tornava evidente suas (numerosas) incongruências. Sua vocação para a nudez o obrigava a reconhecer depois seus erros, reforçando assim sua reputação de sinceridade brutal.

Uma epopeia geracional. Lennon sempre teve uma vida agitada. Sua biografia se confunde com a evolução da contracultura ou, se preferem, com a aventura coletiva dos baby boomers. Atração pelas drogas, hippismo, misticismo oriental, pacifismo, radicalização política, terapias alternativas, hedonismo desenfreado, reclusão em sua privacidade. É particularmente cruel que o assassinato tenha coincidido com o momento em que ele decidiu sair de sua concha e apresentar outro Lennon, maduro e relaxado, menos competitivo e mais livre de pressões externas.

Revolução para vender tênis. Lennon desconfiava da abundância das palavras de ordem que brotavam após o Maio de 68 e da mitificação de líderes como Mao Tsé-tung. Retratou esse momento em diferentes versões da música Revolution, oscilando entre o “não contem comigo” e o “contem comigo”. Os militantes entenderam que John vacilava, mas que podia ser útil para encabeçar manifestações e, acima de tudo, preencher cheques. Quem mais acreditou no potencial revolucionário de Lennon foi o presidente Richard Nixon, que implementou mecanismos para expulsá-lo dos Estados Unidos. Não teve sucesso, mas conseguiu que rompesse laços com a Nova Esquerda mais turbulenta. Vinte anos depois de sua gravação, com a oposição dos outros Beatles, Yoko Ono cedeu Revolution a uma campanha da Nike.

Um machista regenerado. A única causa que John Lennon nunca renegou foi o feminismo. O jovem Lennon recorria à violência, e é possível que sua esposa e namoradas fugazes a tenham sentido. No entanto, em seu currículo não encontramos a abundância de canções misóginas que caracterizavam Mick Jagger e Bob Dylan em meados dos anos sessenta. Na época, Yoko Ono não levantava a bandeira do feminismo da segunda onda, mas instruiu Lennon, que se confessou publicamente em Jealous Guy e admitiu a dependência das mulheres em sua infância (da qual seu pai esteve ausente). Yoko se tornou sua parceira de criação e esteve por trás de decisões tão suicidas quanto editar em single a canção Women Is The Nigger Of The World (o insulto nigger é uma palavra tabu), praticamente proibida nos EUA.

O “dono de casa”. Após seu caótico “fim de semana perdido” (na verdade, mais de um ano), John conseguiu a reconciliação com Yoko. Foi uma rendição incondicional, com definição de novos papéis: ela se ocuparia dos negócios enquanto ele cuidaria da casa, incluindo o pequeno Sean. Yoko conseguiu rentabilizar os tópicos que circulavam sobre sua pessoa: a dragon lady, a japonesa inescrutável. Lennon, por sua vez, contou com abundante ajuda doméstica. O inocente livro En casa de John Lennon, da cozinheira espanhola Rosaura López, revela que era desastroso quando ele se envolvia naquelas tarefas. Lennon conseguiu assar pão ―contou isso para todo mundo―, mas se sentiu desencantado ao ver que o fruto de seu trabalho desaparecia em questão de horas. Não como as canções.

Um músico em posição de descanso. Diz-se que John abandonou a música de 1975 a 1980. Não exatamente: Yoko vetou seus amigos roqueiros, com a exceção de uma ou outra visita de Paul, considerando-os ameaças para a estabilidade do casal. Lennon justificaria esse silêncio como uma ausência de inspiração. Na verdade, porém, durante esses cinco anos ele foi acumulando fragmentos de canções e diversas gravações caseiras. Desinteressou-se, isso sim, pela atualidade musical. Foi por acaso que escutou os discos que o levaram a voltar à ativa. No rádio do carro, descobriu o atrevimento funcky de Coming Up, revivendo sua eterna rivalidade com Paul. Quando estava numa discoteca de Bermudas, tocaram Rock Lobster, dos B-52. Ele telefonou entusiasmado para Yoko, dizendo que finalmente alguém estava imitando seus gritos.

Sob o signo do irracional. Não foi simples colocar em marcha a produção do que seria Double Fantasy. Yoko pedia a data e a hora de nascimento de cada possível colaborador, para que seu astrólogo determinasse se eram pessoas compatíveis. Meras aparências? Possivelmente. Entre os videntes empregados por Ono estava um “direcionalista”, que determinava o rumo das viagens que John devia empreender sozinho, que costumavam coincidir com as (toleradas) aventuras extraconjugais de sua esposa e com as ocasionais recaídas de Yoko com a heroína. Cabe ressaltar que Lennon compartilhava essa fascinação pelo cultismo. Seu natural ceticismo havia desembocado na desconfiança em relação à ciência. Por exemplo, ele adorava questionar a teoria da evolução.

Fatalismo contra paranoia. Ao longo de quase 20 anos de fama inimaginável, Lennon desenvolveu antenas especialmente sensíveis ao perigo. Mas não se preocupava que Nova York inteira soubesse onde residia. De fato, vários intrusos haviam entrado no edifício Dakota. No entanto, ele se negou a contar com um serviço de segurança, com exceção de um ex-agente do FBI contratado para proteger seu filho. Seu argumento: “Se alguém quer te matar, vai te matar.” Acertou.

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