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Livro
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

A vida invisível

Leia a introdução do livro ‘Nós Mulheres’ da escritora e jornalista espanhola Rosa Montero, lançado neste ano no Brasil pela Todavia

Rosa Montero
A pintura 'Lady Lilith', de Dante Gabriel Rossetti.
A pintura 'Lady Lilith', de Dante Gabriel Rossetti.

Há alguns séculos, nós, seres humanos, começamos a nos perguntar por que as sociedades diferenciavam de tal modo homens e mulheres quanto a hierarquias e funções. Alguma fêmea especialmente intrépida já se fizera essas perguntas an­tes, a exemplo da francesa Christine de Pisan, que escreveu em 1405 La Cité des dames [A cidade das damas]; mas foi pre­ciso que viessem o positivismo e a morte definitiva dos deuses para que os habitantes do mundo ocidental passassem a rejeitar a imutabilidade da ordem natural e começassem a se perguntar massivamente o porquê das coisas, curiosidade in­telectual que incluiu, forçosamente, e apesar da resistência de muitos e muitas, os numerosos questionamentos relativos à condição da mulher: diferente, distante, subjugada.

E ainda não há, na verdade, resposta clara para essas per­guntas: como se estabeleceram as hierarquias, quando isso aconteceu, se sempre foi assim. Cunharam-se teorias, ne­nhuma delas suficientemente demonstrada, que falam de uma primeira etapa de matriarcado na humanidade. De grandes deusas onipotentes, como a Deusa Branca mediterrânea des­crita por Robert Graves. Talvez não fosse uma etapa do ma­triarcado, mas simplesmente de igualdade social entre os se­xos, com domínios específicos para umas e outros. A mulher paria, e essa impressionante capacidade deve tê-la tornado muito poderosa. Expressam esse poder as vênus da fertilidade vindas da pré-história (como a de Willendorf: gorda, roliça, deliciosa), bem como as múltiplas figuras femininas posterio­res, as fortes deusas de pedra do Neolítico.

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Engels sustentava que a subordinação da mulher se ori­ginou ao mesmo tempo que a propriedade privada e a famí­lia, quando os seres humanos deixaram de ser nômades e se assentaram em povoações agricultoras; o homem, diz Engels, precisava assegurar filhos próprios a quem transmitir suas pos­ses, daí que passasse a controlar a mulher. Fico pensando que talvez o dom procriador das fêmeas assustasse demais os va­rões, sobretudo quando eles viraram camponeses. Antes, na vida errante e caçadora, o valor de ambos os sexos estava clara­mente estabelecido: elas pariam, amamentavam, criavam; eles caçavam, defendiam. Funções de valor intercambiável, funda­mentais. Mas depois, na vida agrícola, o que os homens faziam de específico? As mulheres podiam cuidar da terra como eles ou, quem sabe, de um ponto de vista mágico, ainda melhor, porque a fertilidade era seu reino, seu domínio. Sim, é razoá­vel pensar que eles deviam vê-las como demasiado poderosas. Talvez o impulso masculino de controle tenha nascido desse medo (e da vantagem de eles serem mais fortes fisicamente).

Esse receio do poder das mulheres é perceptível já nos mitos inaugurais de nossa cultura, nos relatos da criação do mundo, que, por um lado, se esforçam para definir o papel sub­sidiário das fêmeas, mas ao mesmo tempo nos conferem uma capacidade de causar prejuízo muito acima de nossa posição secundária. Eva leva Adão e toda a humanidade à perdição por se deixar tentar pela serpente, o que é feito também por Pan­dora, a primeira mulher, segundo a mitologia grega, criada por Zeus para castigar os homens: o deus dá a Pandora uma ânfora cheia de desgraças, jarra que a mulher destapa movida por sua irrefreável curiosidade feminina, libertando assim todos os ma­les. Esses dois relatos primordiais apresentam a fêmea como um ser fraco, avoado e sem juízo. Por outro lado, a curiosidade é um ingrediente básico da inteligência, e é a mulher que tem, nesses mitos, a ousadia de se perguntar o que há além, a von­tade de descobrir o que está oculto. Além disso, os males que Eva e Pandora trazem ao mundo são a mortalidade, a doença, o tempo, condições que formam a própria substância do humano, de modo que, na verdade, a lenda lhes atribui um papel —agri­doce mas imenso— enquanto criadoras da humanidade.

Ainda mais fascinante é a história de Lilith. A tradição ju­daica diz que Eva não foi a primeira mulher de Adão, que an­tes dela existiu Lilith. E essa Lilith quis ser igual ao homem: in­dignava-a, por exemplo, que fosse forçada a ficar por baixo de Adão ao fazer amor, pois essa posição lhe parecia humilhante, e reivindicava os mesmos direitos do macho. Adão, valendo­-se de sua maior força física, quis obrigá-la a obedecer, e en­tão Lilith o abandonou. Foi a primeira feminista da Criação, mas suas modestas reivindicações eram, é claro, inadmissíveis para o deus patriarcal da época, que transformou Lilith numa diaba matadora de crianças e a condenou a sofrer a morte de cem de seus filhos a cada dia, castigo horrendo que simboliza com perfeição o poder do macho sobre a fêmea. O que subjaz, talvez, ao mito de Lilith é a memória esquecida desse possí­vel trânsito entre um mundo antigo não sexista (com mulhe­res tão fortes e independentes como os homens) e a nova or­dem masculina que se instaurou depois.

Livro Rosa Montero
Divulgação (Divulgação)

Enfim, o fato é que durante milênios as mulheres foram ci­dadãos de segunda classe, tanto no Oriente como no Ocidente, tanto no norte como no sul. O infanticídio por sexo (matar as meninas recém-nascidas porque são um peso não desejado, ao contrário do cobiçado filho varão) foi uma prática muito di­fundida e habitual em toda a história, dos romanos aos chine­ses ou aos egípcios, e ainda hoje é mais ou menos abertamente realizada em muitos países do chamado Terceiro Mundo. Isso dá uma ideia do escasso valor que se conferia à mulher, que já vinha ao mundo com o desconsolo fundamental de não ter sido ao menos desejada.

Filhos que somos, ainda, das ideias de perfectibilidade e de progresso dos séculos XVIII e XIX, tendemos a acreditar que a sociedade em que hoje vivemos é melhor em tudo que a de ontem, mas pior que a de amanhã, como se as coisas, com o tempo, inexoravelmente se ajeitassem, uma falsidade tão óbvia, aliás, que nem vale a pena discuti-la. E assim, no caso da mulher, costumamos pensar que a igualdade foi sendo con­quistada pouco a pouco, até chegar ao máximo de hoje, o que não é totalmente verdadeiro. Pois a situação da mulher oci­dental parece agora ser melhor do que nunca, só que o trajeto não foi linear: houve momentos de maior liberdade, segui­dos por épocas de reação.

Ocasionalmente, a repressão alcan­çou níveis assustadores, como a caça às bruxas no século XV e no início do XVI, que talvez tenha sido uma resposta à efer­vescência humanista e liberal do Renascimento. Houve mi­lhares de execuções na Alemanha, na Itália, na Inglaterra e na França; 85% dos réus queimados vivos por bruxaria eram mu­lheres de todas as idades, inclusive meninas. Em alguns po­voados alemães havia seiscentas execuções anuais. Em Tou­louse, quatrocentas mulheres foram levadas à fogueira num único dia. Alguns autores falam em milhões de mortes. Elas eram condenadas e queimadas com acusações por vezes de­lirantes (ter relações com o diabo, beber sangue de crianças), mas também pelos pecados de ministrar contraceptivos a ou­tras mulheres, fazer abortos ou dar remédios contra a dor do parto. Ou seja, por demonstrarem controle sobre sua vida, co­nhecimentos médicos que lhes eram vetados (as mulheres não podiam estudar) e certa independência.

Foi com a Revolução Francesa e seus ideais de justiça e fra­ternidade que um punhado de homens e mulheres começou a compreender que a igualdade era para todos os indivíduos ou não era para ninguém: “Ou nenhum membro da espécie humana tem verdadeiros direitos, ou todos têm os mesmos; aquele que vota contra os direitos do outro, quaisquer que se­jam sua religião, sua cor ou seu sexo, está, desse modo, ab­jurando os seus”. São palavras que Condorcet, o admirável filósofo francês que participou da redação da Constituição re­volucionária, escreveu em 1790 em seu ensaio Sobre a admissão das mulheres no direito da cidade. Condorcet foi um feminista fervoroso; ele e outros poucos cavalheiros sensíveis começa­ram a denunciar a situação da mulher. Esses primeiros discur­sos de homens não sexistas foram muito importantes, pois para assumir uma atitude crítica era preciso ser cultivado, e as mu­lheres da época eram quase inteiramente carentes de educação.

Com o ardor da Revolução começaram a aparecer por toda a França (e logo por toda a Europa) clubes e associações de mulheres, e houve revolucionárias feministas famosas, como Olympe de Gouges e Théroigne de Méricourt. Mas esse sonho de justiça e liberdade durou pouco: com a chegada do Terror a mulher foi novamente encerrada em casa. Em junho de 1793, Théroigne foi atacada por um grupo de cidadãs e golpeada com pedras na cabeça; não morreu, mas perdeu a razão e passou o resto da vida num manicômio. Olympe foi guilhotinada em novembro de 1793 e os clubes de mulheres foram proibidos. Quanto a Condorcet, Robespierre o condenou à morte, e o filósofo preferiu tomar veneno em sua primeira noite no cár­cere, no mês de setembro desse mesmo ano. As águas quietas do preconceito sexista se fecharam novamente.

Todavia, algumas décadas depois, em meados do século XIX, criou-se a questão da mulher, ou seja, pela primeira vez a mulher foi entendida como um problema social. Isso foi resul­tado da Revolução Industrial, que havia acabado com a vida fa­miliar tradicional. Antes as donas de casa estavam subordina­das ao varão, mas carregavam nas costas um bom número de atividades cotidianas. Faziam conservas, salgavam pescados, confeccionavam a roupa da família, cuidavam da horta e dos animais, fabricavam sabão, velas, sapatos, conheciam ervas me­dicinais e tratavam da saúde de toda a família. Eram persona­gens ativos e importantes no ambiente doméstico. No entanto, a Revolução Industrial lhes suprimiu pouco a pouco todas as atribuições: agora o sabão era comprado nas lojas, a população urbana crescia e havia cada vez menos hortas e menos animais, a saúde passou a ser domínio dos médicos. Enfim, a mulher fi­cou sem um lugar próprio no mundo.

Além disso, vivia-se o auge do positivismo, do cientificismo. Deus agonizava, a ordem imutável e natural já não era aceita como resposta absoluta para os enigmas, era preciso definir novamente o universo inteiro. A mulher era mais uma incóg­nita da existência, um mistério que devia ser elucidado em termos científicos. Pois na época, final do século XIX, os seres humanos chegaram a acreditar que poderiam organizar e iluminar todas as trevas da idade por meio da palavra defini­dora do sábio, da classificação do erudito.

Assim, as mulheres se transformaram em objeto de es­tudo dos homens, que as comparavam com o normal, isto é, com os valores e as características do varão. “De modo geral, admite-se que na mulher os poderes da intuição, da percep­ção e talvez da imitação sejam mais destacados que no homem, mas pelo menos algumas dessas faculdades são característi­cas das raças inferiores, e, por conseguinte, de um estado de civilização passado e menos desenvolvido”, dizia Darwin. Da perspectiva masculina, a mulher começou a ser vista como uma anomalia, um ser doente sujeito a menstruações e dores. A moda insana e torturante dos espartilhos (chegavam a en­tortar as costelas e a provocar deslocamentos de útero e de fí­gado) fomentava as asfixias e os desmaios, e a falta de um lugar no mundo e de perspectiva de vida ampliava as depressões e as angústias.

Por conseguinte, a mulher era tida como um ser doente, e de fato adoecia: no final do século XIX e início do XX, houve uma epidemia de anoréxicas, de pacientes acometidas por estranhas patologias crônicas, até chegar às histéricas de Freud. O romancista Henry James soube desenhar em seus li­vros o protótipo da mulher de sua época, inteligente e apaixo­nada mas aprisionada pelas circunstâncias sociais: ele provavelmente se inspirou na vida de sua própria irmã, Alice James, uma mulher criativa e sensível que gostava de escrever (seus diários foram publicados recentemente), mas que não pôde ir à universidade nem recebeu o apoio necessário para dedicar­-se, como Henry, à literatura. Alice foi uma doente crônica: seu enigmático mal a transformou numa inválida desde os de­zenove anos, e aos 43, quando adoeceu de um câncer fulmi­nante, alegrou-se com a morte.

Aqueles devem ter sido tempos muito angustiantes e difí­ceis para as mulheres: as da classe baixa se arrebentavam de trabalhar com turnos fabris de dezesseis horas, tendo, além disso, que parir e cuidar da casa, e as da classe média e alta es­tavam presas num cárcere de ouro. As heroínas literárias do século XIX (Anna Kariênina, Madame Bovary, Ana Ozores/a Regente) falam da tragédia de mulheres sensíveis, inteligen­tes e capazes que levavam uma vida sem sentido, que tenta­vam escapar do vazio por meio do amor romântico e que pa­gavam muito caro por transgredir as rígidas normas. Salvo exceções (o escritor Mark Twain, por exemplo, que sempre foi deliciosamente feminista), o entorno masculino devia ser tão hostil naquela época, e tão grande a incompreensão do fe­minino, que muitas mulheres começaram a escolher a solteirice e a estabelecer relações de convivência com outras mulheres pelo resto da vida. Na América, isso era então chamado de ca­samento bostoniano (o romance de Henry James As bostonia­nas fala justamente desse mundo feminino) e não tinha de ter, necessariamente, um componente lésbico, sendo, em mui­tos casos, uma união emocional e cúmplice diante da vida, por parte de mulheres ativas, independentes e intelectualmente inquietas, que não queriam se resignar à prisão social.

Contudo, o mais espantoso é comprovar que sempre houve mulheres capazes de superar as mais penosas circunstân­cias; mulheres criadoras, guerreiras, aventureiras, políticas, cientistas, que tiveram a habilidade e a coragem de escapar, não se sabe como, de destinos tão estreitos como uma tumba. Sempre foram poucas, é claro, em comparação com a grande massa de fêmeas anônimas e submetidas aos limites que o mundo lhes impôs, mas foram, sem sombra de dúvida, muitís­simas mais que as que hoje conhecemos e lembramos. O que acontece, como diz a escritora italiana Dacia Maraini, é que quando as mulheres morrem, elas morrem para sempre, sub­metidas ao duplo fim da carne e do esquecimento. Os historiadores, os enciclopedistas, os acadêmicos, os guardiães da cultura oficial e da memória pública sempre foram homens, e os atos e as obras das mulheres raramente passaram para os anais. Porém, hoje essa amnésia sexista por fim está mudando: a crescente presença feminina nos níveis acadêmicos e erudi­tos começa a normalizar a situação, e abriu-se todo um campo de novas pesquisas, feitas majoritariamente por mulheres, que tentam resgatar nossas antepassadas da bruma.

Antepassadas capazes de levar a cabo proezas anônimas tão imensas como a invenção, na província chinesa de Hunan, de uma linguagem secreta. Ou melhor, de uma caligrafia só para mulheres, uma forma de escrita críptica chamada nushu, que conta com 2.000 caracteres e foi criada há, no mínimo, mil anos (alguns especialistas chegam a falar em 6.000), ainda que hoje em dia só meia dúzia de anciãs octogenárias a conheçam. Dizem que o nushu foi inventado pela concubina de um impe­rador chinês (e se foi isso mesmo, que gênio o dela, capaz de conceber todo um sistema de escrita!) para poder falar com suas amigas sobre sua vida íntima, suas queixas e seus senti­mentos sem correr o risco de ser descoberta e castigada. Mui­tas das mulheres que aprenderam essa caligrafia não sabiam es­crever o han, o idioma chinês oficial, porque as mulheres eram mantidas analfabetas e cuidadosamente à margem da vida in­telectual, de modo que, clandestino, o nushu lhes outorgou o poder da palavra escrita, uma força solidária com a qual orga­nizar certa resistência. “Devemos estabelecer relações de ir­mãs desde a juventude e nos comunicar por meio da escrita secreta”, diz um dos textos milenares conservados. E outro acrescenta: “Os homens se atrevem a sair de casa para enfren­tar o mundo exterior, mas as mulheres não são menos corajo­sas ao criar uma linguagem que eles não conseguem entender”.

Corajosas e anônimas, sim, assim foram milhões de mu­lheres do passado. Segundo as últimas teorias acadêmicas, tal­vez os textos anônimos da história da literatura tenham justa­mente saído, em sua maioria, de penas femininas. Em outros casos, as mulheres escreviam obras que depois seus cônjuges (ou seus homens: pais, irmãos, filhos) publicavam, como é o caso da espanhola María Martínez Sierra (1874-1974), socialista e feminista, deputada da Segunda República e importante dra­maturga, cujos trabalhos foram publicados, no entanto, sob o nome de seu marido, Gregorio. Já se disse, além do mais, que as obras das mulheres sempre foram propensas a ser extravia­das ou esquecidas; está perdido, por exemplo, o poema épico A guerra de Troia, da grega Helena, em quem Homero se inspi­rou para fazer a Ilíada. Enfim, como diz Virginia Woolf, o que aconteceu com Judith Shakespeare, a irmã imaginária, ambi­ciosa e cheia de talento de Shakespeare?

Por outro lado, a lembrança que temos das mulheres e de seus atos está frequentemente matizada de valores sexistas. Por exemplo: não nos esquecemos de Messalina, esposa do imperador romano Cláudio I, que passou para a história trans­formada no símbolo da mulher infiel e ninfomaníaca. Ou en­tão de Catarina, a Grande, a famosa imperatriz da Rússia, lem­brada, sobretudo, como uma senhora boa de briga e que tinha muitos amantes. No entanto, essa mulher, que tomou as ré­deas do império de 1762 a 1796, foi uma/um dos grandes so­beranos do absolutismo ilustrado. Reformou a administração do Estado russo, fez o primeiro compêndio legislativo, lu­tou contra lituanos e turcos, anulou a autonomia da Ucrânia; como se não bastasse, protegeu as artes e as letras, manteve intensa correspondência com Voltaire, escreveu obras tea­trais e fundou o periódico Vsyákaya vsyáchina [Qualquer to­lice], importante suporte ideológico do absolutismo. Além disso, teve amantes, sim, como a imensa maioria dos sobe­ranos varões de todos os tempos, mas, diferente de muitos desses reis e imperadores, ela soube manter seus amantes no terreno apenas íntimo, sem se deixar influenciar politica­mente por eles.

Contudo, quando espiamos os bastidores da história, en­contramos mulheres surpreendentes: aparecem sob a monó­tona imagem tradicional da domesticidade feminina da mesma maneira que o mergulhador vislumbra as riquezas submari­nas (uma paisagem inesperada de peixes e corais) sob as águas quietas de um mar cálido. Lá estão, por exemplo, as fêmeas guerreiras, personagens fantasticamente extravagantes. Como María Pérez, uma heroína castelhana do século XII, que lu­tou, vestida de homem, contra os muçulmanos e os aragone­ses. María desafiou para um duelo o rei de Aragão Alfonso I, o Batalhador, a quem venceu e desarmou. Quando se descobriu que era uma mulher, ela foi batizada de La Varona, o que não a impediu de se casar mais tarde com um infante, deixando as guerras pela família. Ou como a fascinante Mary Read, aventu­reira inglesa do século XVIII, que também se vestiu de homem e se alistou como soldado no regimento de infantaria de Flan­dres. Depois de lutar durante alguns anos, ela deixou o exér­cito, casou-se e abriu uma taberna em Breda, mas ao enviu­var voltou a vestir roupas masculinas e, alistada na infantaria holandesa, embarcou rumo à América num navio que foi cap­turado pelos corsários, momento em que a irredutível Mary Read decidiu virar pirata. E como pirata viveu longos anos, apaixonando-se e casando-se, entrementes, com um mari­nheiro, até que em 1720 caiu nas mãos dos ingleses e foi en­cerrada na prisão jamaicana onde morreu.

Joana d’Arc também vestiu resplandecentes armaduras vi­ris quando se pôs à frente dos exércitos franceses, aos dezes­sete anos, comandando-os na guerra contra os ingleses, aos quais infligiu grandes derrotas até ser capturada pelo inimigo, aos dezenove anos, e queimada viva. Outra francesa, Louise Bréville, se fez passar por homem no final do século XVII; após ser expulsa do exército por matar outro soldado num duelo, Louise se alistou como marinheiro e chegou a ter o comando de uma fragata de combate. Morreu aos 25 anos numa batalha naval contra a Holanda, ferida no decurso de uma abordagem.

Não foram só guerreiras que se vestiram com roupas de homens e adotaram personalidades masculinas: muitas ou­tras mulheres viram-se obrigadas a utilizar o abrigo de uma identidade viril para se proteger da dureza misógina do en­torno. A famosa socióloga e pensadora galega Concepción Are­nal (1820-1893), por exemplo, teve de se disfarçar de homem para poder comparecer às aulas de Direito, porque as mulhe­res eram proibidas de frequentar a universidade. Algo parecido aconteceu com Henrietta Faber, que no início do século XIX se disfarçou de homem e trabalhou como médico em Havana durante anos, até que em 1820 se apaixonou, revelou que era mulher e quis se casar, momento em que foi detida, julgada e condenada a dez anos de prisão, porque em Cuba as mulheres eram proibidas de estudar e de praticar a medicina. Por outro lado, o uso de pseudônimos masculinos foi uma prática bas­tante comum entre as escritoras do século XIX, como George Eliot, George Sand, Víctor Catalá ou Fernán Caballero.

Outro tipo de travestismo mais comum e admitido socialmente, ao qual as mulheres recorreram durante muitos séculos, foi o re­ligioso, isto é: virar freira. O convento foi, amiúde, uma obriga­ção social, um enclausuramento e um castigo, mas para muitas mulheres foi também o lugar em que se podia ser independente da tutela varonil, e ler, e escrever, e assumir responsabilidades, e ter poder, e desenvolver, enfim, uma carreira. Houve freiras ma­ravilhosas por seu nível intelectual ou por sua capacidade artís­tica, como Santa Teresa, sor Juana Inés de la Cruz ou Herrade de Landsberg, abadessa de Hohenburg, que no século XII fez a pri­meira enciclopédia da história confeccionada por uma mulher (o fato de que pudesse conceber uma obra tão ambiciosa dá bem a medida do mundo amplo que o convento abria para as senho­ras), intitulada Hortus deliciarum ou Jardim das delícias, belissima­mente ilustrada e destinada à formação de suas religiosas.

Outras freiras foram ardorosas e carnais, como sor Mariana Alcoforado, uma religiosa portuguesa do século XVII que teve o azar (ou talvez a sorte) de se apaixonar por um conde francês, a quem dirigiu cartas belas e febris que ele teve a desfaçatez de publicar em Paris (claro que graças a isso elas foram conser­vadas) em 1669. E houve também, por fim, as trânsfugas e bri­guentas, como a freira alferes Catalina de Erauso, que fugiu do convento com apenas onze anos, embarcou como grumete dis­farçada de menino e se alistou como soldado na América, sob o nome de Alonso Díaz. Por outro lado, houve mulheres desejo­sas de independência que, em vez de optarem por ser boas, isto é, freiras, optaram por ser más: as cortesãs, das cultas hetairas gregas até Montespan ou Pompadour, amantes dos reis france­ses, sempre tiveram notável influência na vida pública.

Fora do convento e da vida fácil só houve para as mulheres outra grande rota de fuga da tutela masculina, e foi a viuvez. Sobretudo no que se refere às responsabilidades de comando: por trás da quase absoluta totalidade de mulheres que chega­ram ao poder antes do século XX, há um marido morto. Em ocasiões excepcionais o morto era o pai, e frequentemente havia também um filho ou um irmão pequeno de quem elas eram representantes ou tutoras, pelo menos num primeiro momento, até eles conseguirem consolidar seu próprio poder. É fascinante ver como mulheres que mesmo sem terem sido preparadas intelectual e politicamente, e tendo, ainda por cima, de suportar um absoluto entorno dissuasivo, eram capazes de lutar, assumir e manter o poder, transformando-se, com fre­quência, em governantes de grande envergadura. Um exem­plo perfeito das dificuldades que essas damas enfrentavam é a pobre e brava Margarida da Áustria, que se casou em 1599 com Felipe III, aos catorze anos, e aterrissou na corte espanhola sem saber outro idioma além do alemão. Para não perder seu poder sobre o rei, o duque de Lerma isolou a recém-chegada Margarida: despediu toda sua criadagem alemã e a cercou de gente espanhola de sua confiança. Dá para imaginar o calvário dessa adolescente, tão sozinha e presa numa corte hostil e num idioma incompreensível, parindo um filho atrás do outro para a Coroa. No entanto, passados sete anos, ela já aprendera o sufi­ciente da língua e da política para enfrentar o duque de Lerma e conseguir que o processassem. Com o apoio do confessor do rei, frei Luis de Aliaga, tentou processar também o duque de Uceda, mas dessa vez perdeu. Morreu aos 27 anos ao dar à luz seu oitavo filho; houve complicações pós-parto, e, ao que pa­rece, o duque de Uceda impediu que ela fosse atendida por um médico. Todo um trágico destino de mulher.

No entanto, e apesar do ambiente adverso, a história eu­ropeia está repleta de numerosas Leonores, Marias, Isabéis, Joanas, Luísas ou Margaridas que regeram, em uma ou outra ocasião, o destino de seu povo, frequentemente com sabedoria e prudência. Claro que houve no mundo mulheres menos pru­dentes, como Semíramis, rainha da Assíria no século IX A.C., que mandou assassinar seu marido, o rei Nino, para ficar com o poder (essa era outra forma de enviuvar), e que, em seus 42 anos de reinado, fundou a Babilônia e conquistou o Egito e a Etiópia. Outra mulher decidida foi a rainha egípcia Hatshepsut (século XV A.C.), que se proclamou faraó (não existia a possi­bilidade de ser “faraona”) e se manteve no poder por mais de vinte frutíferos anos. Era sempre representada como homem, e seu enteado Tutemés III, quando subiu ao trono, riscou-a da lista de faraós.

Há também as mães vingativas, como Tomíris, rainha dos citas no século VI A.C., que teve um filho morto por Ciro, o cé­lebre e cruel rei dos persas. Por isso, quando Tomíris venceu Ciro, mandou cortar-lhe o pescoço e meteu sua cabeça num balde de sangue, para que saciasse sua sede. Ou como Gaitana, cacique (ou cacica) de uma tribo colombiana na época da con­quista; seu filho se opôs à repartição de índios que o conquis­tador Añasco se propunha fazer, e por isso foi queimado vivo diante dela. Então Gaitana fez os índios todos se sublevarem contra Añasco, venceu-o e ordenou que o torturassem lenta­mente até a morte.

Há mulheres governantes cegas pela paixão, como nossa Joana, a Louca, que desfilou durante três anos por toda a Es­panha o cadáver de seu marido, Filipe, o Belo. Ou Artemísia II, rainha de Halicarnasso (século IV A.C.), que, ao ficar viúva de seu amado Mausolo, mandou construir em sua memória um monumento que foi uma das sete maravilhas do mundo antigo e que ainda hoje nos deixou o uso da palavra mausoléu. Uma antepassada dessa desconsolada viúva, Artemísia I, também rainha de Halicarnasso, porém um século antes, foi menos delicada em sua paixão: enamorou-se de Dardano e, ao ser re­jeitada, mandou arrancar-lhe os olhos e depois se suicidou.

Todos esses relatos de soberanas fortes e ferozes indicam que a mulher também pode ser malvada, o que, de certa forma, é um alívio, porque reafirma nossa humanidade cabal e com­pleta: somos capazes, como qualquer pessoa, de toda a exce­lência e de todo o abismo. A mais malvada de todas? É uma competição difícil, mas uma perversa clássica e emblemática, do mesmo modo que foi emblemática a maldade do marquês de Sade, é Elizabeth Bathory, a Condessa Sangrenta (1560-1614), uma viúva húngara que acreditava poder conservar a ju­ventude banhando-se em sangue de donzela. Dizem que tor­turou mais de seiscentas jovens camponesas, as quais acabava degolando e dessangrando. Ao ter seus crimes descobertos, Bathory foi emparedada viva em seu castelo.

Houve, enfim, mulheres de todo tipo. Empresárias im­portantes, como Marie Brizard (século XVIII) ou Nicole Clic­quot (século XIX), outra viúva, nesse caso célebre e espumante. Cientistas extraordinárias, como María Gaetana Agnesi, ma­temática italiana que publicou em 1748 o melhor tratado de cálculo diferencial que se fizera até o momento, ou aventu­reiras fogosas, como a conquistadora Mencía Calderón, que comandou, no século XVI, uma expedição ao Paraguai. De­sempenhando ofícios estranhos, houve até mesmo uma mu­lher carrasco na França do século XVII: quando descobriram seu sexo, depois de anos de trabalho, ela foi encarcerada por dez meses.

Por trás da insipidez de nossa amnésia coletiva se oculta, pois, uma paisagem matizada de mulheres extraordinárias, al­gumas admiráveis, outras infames. Em comum, todas têm uma traição, uma fuga, uma conquista: traíram as expectativas que a sociedade depositava nelas, fugiram de seu limitado destino feminino, conquistaram a liberdade pessoal. É preciso ter em conta que, na maioria dos casos, e durante milênios, ser mu­lher implicava não ter acesso à educação e nem sequer a uma mínima liberdade de movimento (sair à rua sozinha ou viajar sozinha). “O fato de que as mulheres eventualmente tiveram de superar imensos obstáculos para alcançar até mesmo um êxito moderado não as equipara a Donald Trump ou a Nelson Rockefeller”, diz sabiamente Linda Wagner-Martin, autora do livro Telling Women’s Lives [Contando vidas de mulheres]. En­fim, para além dessa base comum, cada vida é tão rica e tão di­versa como todas as outras. No substrato profundo compar­tilhamos, homens e mulheres, a mesma humanidade básica.

Sempre tive grande simpatia por biografias, autobiografias, coleções epistolares e diários, sobretudo de personagens (tanto masculinos como femininos) do mundo das letras. Dessa an­tiga paixão nasceu a série de artigos reunidos neste livro: de­zesseis retratos de mulheres originalmente publicados no EL PAÍS Semanal. Quase todos aparecem aqui em versão am­pliada, livres que estão da estreita ditadura do espaço.

Não se trata, obviamente, de um trabalho acadêmico, nem mesmo de um trabalho jornalístico no sentido mais tradicio­nal da palavra. Não há, portanto, nenhuma intenção de cobrir campos, sejam eles geográficos, temporais ou profissionais: ou seja, não selecionei as biografadas para que representem a situação da mulher nas diversas etapas da história, nem para que haja um elenco adequado de culturas e países, e nem por serem as mais famosas. Para falar a verdade, mais do que eu as ter escolhido, foram elas que me escolheram: vou falar da­quelas mulheres que, em algum momento, falaram comigo. Aquelas cuja biografia ou diários me impactaram por algum motivo em especial, que me fizeram refletir, viver, sentir. Por­tanto, mais que uma visão horizontal e ordenadora, própria do jornalismo e do trabalho acadêmico, meu intento foi uma visão vertical e desordenada, própria daquela espécie de olhar tão especial com que às vezes (numa noite antes de dormir, num entardecer enquanto dirigimos de volta para casa) pen­samos vislumbrar, por um instante, a substância mesma do viver, o coração do caos.

E por que apenas mulheres? Justamente por essa sensação, que já mencionei, de abrir as águas quietas e extrair lá de baixo um monte de surpreendentes criaturas abissais. Além disso, ao ler biografias e diários de mulheres descobrimos perspec­tivas sociais inimagináveis, como se a vida real, a vida de cada dia, composta de homens e mulheres de carne e osso, tivesse seguido outros roteiros que não os da vida oficial, coligida com todos os preconceitos nos anais. Vejamos, por exemplo, o tema do amor da mulher mais velha por um homem jovem; dir-se-ia que essa relação, durante muito tempo considerada um fato extravagante e escandaloso, foi até agora (e em boa medida parece ser ainda hoje) uma completa exceção à norma­lidade. No entanto, nada como começar a mergulhar na vida das antepassadas para descobrir uma profusão espantosa de situações similares.

Para citar apenas alguns exemplos, lembremos que Aga­tha Christie se casou em segundas núpcias com Max Mallo­wan, um arqueólogo treze anos mais jovem, e viveram juntos durante 45 anos, até a morte dela. George Eliot se casou aos 61 com John Cross, vinte anos mais moço, e George Sand vi­veu com o gravurista Alexandre Manceau, catorze anos mais jovem, uma grande história de amor que durou três lustros e que só terminou com a morte do homem (anos depois, ela com 61, ele com quarenta, manteve uma breve mas intensa paixão sexual com o pintor Charles Marchal). Lady Ottoline Morrell, mecenas do grupo Bloomsbury, desfrutou da mais bela e intensa relação amorosa de sua vida aos cinquenta e tantos anos, quando se apaixonou por um jardineiro de vinte, que ela chamava de Tigre. Simone de Beauvoir manteve uma relação amorosa de sete anos de duração com o jornalista Claude Lanzmann, muito mais moço que ela (e ele não foi seu único amante mais jovem). A celebérrima Madame Curie, duas vezes prêmio Nobel, também viveu um amor pouco ha­bitual com o cientista Langevin: ele era apenas seis anos mais moço, mas era casado, o que aumentou o escândalo. Até a muito formal Eleanor Roosevelt, esposa do presidente norte­-americano Franklin Delano Roosevelt, teve um amante doze anos mais jovem, Miller, que foi a grande história secreta de sua vida: eram tão unidos que Miller escreveu uma carta por dia a Eleanor durante 34 anos.

Ou seja, metade da humanidade, a parte feminina, viveu durante milênios uma existência frequentemente clandestina (como foram clandestinos, muitas vezes, esses amantes jovens, ou como o era o nushu, a linguagem secreta), e em grande me­dida esquecida, mas sempre muito mais rica que o molde so­cial em que esteve presa, sempre acima dos preconceitos e dos estereótipos. Com este livro, só almejo, enfim, dar uma breve olhada nessas trevas. Porque há uma história que não está na história e que só pode ser resgatada aguçando-se o ouvido e escutando os sussurros das mulheres.

Rosa Montero é escritora e jornalista do EL PAÍS. Ela lançou neste ano no Brasil o livro Nós, mulheres (Todavia).

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