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Declínio profissional ou necessidade financeira: por que Robert de Niro continua fazendo comédias ruins?

É considerado uma lenda da interpretação, mas há muitos anos se concentra em produtos que prejudicam seu legado. Culpa de De Niro ou da indústria, que não oferece outros papéis para veteranos?

Robert De Niro na estreia londrina de ‘O Irlandês’, de Martin Scorsese. Em 2019 este filme devolveu o brilho à carreira de um ator lendário, mas em 2020 voltou com uma comédia infantil chamada ‘Em Guerra com o Vovô’.
Robert De Niro na estreia londrina de ‘O Irlandês’, de Martin Scorsese. Em 2019 este filme devolveu o brilho à carreira de um ator lendário, mas em 2020 voltou com uma comédia infantil chamada ‘Em Guerra com o Vovô’.Dave J Hogan (Getty)
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Quando Robert De Niro e Al Pacino viajaram para a Europa para apresentar o thriller As Duas Faces da Lei em 2008, De Niro disse a Pacino durante uma entrevista para a revista GQ britânica: “Está tudo bem, Al, esperamos que um dia possamos nos reunir para promover um filme de que nos sintamos orgulhosos”. Pacino respondeu: “Caramba, isso seria ótimo”. O projeto seguinte dos dois juntos foi O Irlandês.

Tanto Coringa quanto O Irlandês, ambos de 2019, devolveram a Robert De Niro o prestígio e a relevância de seus melhores anos. Ambos os papéis evocavam seu passado glorioso (O Rei da Comédia e Os Bons Companheiros, respectivamente) e foram dois dos filmes mais assistidos, comentados e indicados a prêmios do ano passado. Mas agora De Niro retorna com Em Guerra com o Vovô, uma comédia familiar na qual interpreta um septuagenário que se envolve em uma ladainha de travessuras contra seu próprio neto para não ter de dividir o quarto com ele. Assim, aquele que é considerado o melhor ator de sua geração continua cavando a sepultura de seu legado: rodou 27 filmes na última década e 19 foram ridicularizados pela crítica e/ou ignorados pelo público. Que diabo aconteceu com a carreira de Robert De Niro?

Não que De Niro fosse apenas um bom ator, era a unidade de medida do talento dramático: todo grande ator que surgiu depois dos anos setenta foi apelidado “o novo Robert De Niro”, de Daniel Day-Lewis a Leonardo DiCaprio, Edward Norton ou Christian Bale. De Niro liderou a revolução artística da Nova Hollywood, uma fase em que segundo o ator Randy Quaid “deixaram as chaves do manicômio nas mãos dos loucos” e em que uma nova geração de atores e cineastas encheu a tela com uma energia vulcânica. De Niro enfileirou trabalhos com Francis Ford Coppola (O Poderoso Chefão Parte II), Scorsese (Taxi Driver), Bertolucci (Novecento), Kazan (O Último Magnata), Cimino (O Franco-Atirador), Leone (Era uma Vez na América), Gilliam (Brazil, o Filme), Joffé (A Missão), De Palma (Os Intocáveis), Mann (Fogo contra Fogo) e Tarantino (Jackie Brown). Robert De Niro, em resumo, escreveu páginas inteiras da história do cinema.

Os perigos de rir de si mesmo

Mas em 1999 quis relaxar e brincar com sua própria imagem: na comédia Uma Terapia Perigosa interpretava um mafioso que ia ao psicólogo depois de sofrer ataques de pânico. No ano seguinte voltou a parodiar a masculinidade briguenta em Entrando numa Fria, no qual interpretava um sogro que intimidava o marido da filha. Foi o filme de maior bilheteria de sua carreira. E a primeira pedra da lápide de seu legado. Na comédia infantil As Aventuras de Alceu e Dentinho, De Niro emulou sua cena icônica de Taxi Driver olhando-se no espelho e perguntando: “Você está falando comigo?”. Começava assim uma piada recorrente em sua filmografia recente: referências paródicas a seus papéis mais celebrados, como a cena de Em Guerra com o Vovô na qual o neto coloca uma cobra na cama (como aquela cabeça de cavalo de O Poderoso Chefão). Em A Máfia Volta ao Divã trabalhava como assessor em filmes de mafiosos. Na comédia A Família interpretava um mafioso em um sistema de proteção a testemunhas que acabava participando de um colóquio de um cineclube sobre a filmografia de Scorsese. Como Adam Markoviz sugeriu em Entertainment Weekly, “os filmes nos quais De Niro ri de seu legado artístico já são um subgênero cinematográfico em si mesmos.”

Robert de Niro em ‘Taxi Driver’.
Robert de Niro em ‘Taxi Driver’.

O fiasco da carreira de Robert De Niro tem sido motivo de preocupação entre a comunidade cinéfila. A Qartz elaborou um gráfico mostrando a queda de qualidade de seus filmes e um usuário do Twitter postou uma análise apontando “o momento exato em que Robert De Niro parou de se importar com sua carreira”. O próprio ator brincou sobre essa queda quando, ao receber um Globo de Ouro honorário em 2011, agradeceu que o prêmio havia sido anunciado antes que os eleitores pudessem assistir Entrando numa Fria Maior Ainda com a Família. Nos últimos anos De Niro acumulou fracassos (Profissão de Risco, Bus 657, Temporada de Caça, Poder Paranormal e A Família Flynn) que mal arrecadaram alguns milhares de dólares nas bilheterias ou foram lançados diretamente em formato doméstico.

Além de fazer piadas sobre seus papéis mais emblemáticos, as últimas comédias de De Niro parecem empenhadas em criar humor em torno do pênis do ator. Em A Máfia Volta ao Divã passeava por um velório com o roupão aberto, arejando a entreperna. Em Entrando numa Fria Maior Ainda com a Família, De Niro ingeria acidentalmente comprimidos para disfunção erétil e a gag culminava com seu neto ficando traumatizado para o resto da vida ao encontrar o pai (Ben Stiller) dando uma injeção no pênis do avô (De Niro). Em Um Senhor Estagiário, René Russo fazia-lhe uma massagem que lhe provocava uma ereção inoportuna. E o roteiro de Tirando o Atraso ―cujo título original é parecido com o do recente Em Guerra com o Vovô, mas aquele é de 2016― foi totalmente concebido em torno do grande apetite sexual de seu personagem.

Tirando o Atraso: quando uma glória chega ao fundo do poço

Considerado o ponto mais baixo de sua filmografia, em Tirando o Atraso De Niro interpretava um homem recém-viúvo que convence o neto (Zac Efron) a fazerem uma farra com garotas explicando que está sem sexo há 15 anos e só pensa “em foder, foder, foder”. Em dado momento o neto explica seus casos bem-sucedidos como advogado e De Niro responde: “Pois eu preferiria que Queen Latifa cagasse na minha boca desde um balão de ar quente do que ter esse emprego.” A campanha promocional Tirando o Atraso satirizava o colapso da carreira de seu protagonista: De Niro aparecia no cartaz sentado em uma poltrona em frente à televisão, com um frasco de lubrificante de um lado e uma caixa de lenços do outro, e o slogan era: “Um dos atores mais respeitados e lendários da nossa geração... E agora isso.”

Robert de Niro e Zac Efron em ‘Tirando o Atraso’, para muitos o pior filme de De Niro.
Robert de Niro e Zac Efron em ‘Tirando o Atraso’, para muitos o pior filme de De Niro.DIRTY GRANPA

A comédia funcionou nas bilheterias, mas as críticas atacaram o que consideraram um papel humilhante para De Niro. A revista Deadline chamou Tirando o Atraso de “o pior filme da carreira de Robert De Niro (ou de qualquer ator)”, o Yahoo lamentou que o ator tivesse chegado ao fundo do poço com um humor racista e homofóbico, o crítico do portal Uproxx escreveu que era “o pior filme que jamais vi no cinema, que o queimem”, Mark Kermode explicou que ao vê-lo sentiu necessidade de tomar uma ducha e Darragh McKiernan considerou o filme “um grito de socorro” do ator. The Guardian observou que Tirando o Atraso “introduz os admiradores de De Niro em uma nova fase emocional que só pode ser chamada de pós-desesperança, uma vez passado o estupor e o horror, só nos resta a resignação, entorpecidos diante de um grande homem que faz coisas como essa”.

Mas essa queda em desgraça é um sintoma do novo modelo de negócios em Hollywood. Thrillers adultos como Estranha Obsessão, Ronin e A Cartada Final custaram cerca de 72 milhões de dólares (cerca de 376 milhões de reais), um orçamento insustentável no mercado atual. Quando a pirataria provocou uma polarização no consumo de cinema (os filmes pequenos sobreviviam graças aos cinéfilos, os filmes gigantes davam mais lucro do que nunca), os dramas de orçamento médio ficaram em um limbo comercial: o público decidiu que não eram “filmes de cinema”, mas para assistir em casa e, portanto, deixaram de ser economicamente viáveis. E esse é o cinema que fez de De Niro uma estrela.

Não é apenas De Niro: é a indústria

Hoje nenhum estúdio apostaria em um drama adulto com valores de produção tão altos quanto O Poderoso Chefão, O Franco-Atirador ou Cassino, um tipo de cinema que só sobrevive graças às plataformas digitais: Scorsese concordou em rodar O Irlandês para a Netflix porque, depois de mais de uma década tentando obter financiamento, a plataforma foi a única disposta a pagar os mais de 160 milhões de dólares de orçamento (quase tanto quanto uma superprodução da Marvel). Os salários das estrelas também se tornaram impossíveis de pagar. As continuações de Entrando numa Fria custam cerca de 120 milhões de dólares, dinheiro que não está na tela, mas nos cheques de De Niro, Ben Stiller, Dustin Hoffman e Barbra Streisand. Para manter seu padrão de vida, De Niro tem que trabalhar três vezes mais e aceitar tudo o que lhe oferecem.

Especulou-se muito sobre a situação financeira do ator. Há poucos meses se envolveu em uma disputa judicial com a ex-mulher, de quem se separou no ano passado após duas décadas de casamento, quando decidiu reduzir à metade o limite do cartão de crédito dela, que era de 100.000 dólares, sem avisá-la, alegando que a crise do coronavírus estava prejudicando seus múltiplos negócios. Segundo seu acordo de divórcio, De Niro é obrigado a dar à ex-mulher cerca de 1,2 milhão de dólares por ano se ganhar mais de 18 milhões. “Ele terá sorte se ganhar sete milhões este ano”, disse a advogada do ator.

O ator Robert De Niro e Grace Hightower, de quem se divorciou em 2018, durante o 64º Festival de Cannes, realizado na cidade costeira francesa em maio de 2011.
O ator Robert De Niro e Grace Hightower, de quem se divorciou em 2018, durante o 64º Festival de Cannes, realizado na cidade costeira francesa em maio de 2011.ANNE-CHRISTINE POUJOULAT (AFP)

De Niro também tem seis filhos (fruto de quatro relacionamentos diferentes) e quatro netos para sustentar. Seu biógrafo, James Ursini, considera que o ator está muito preocupado em deixar uma boa herança para seus descendentes e que desde o sucesso da trilogia Entrando numa Fria seu cachê na comédia é muito maior do que no drama. De Niro é dono de vários prédios no bairro nova-iorquino de Tribeca (onde também dirige um festival de cinema desde 2002), de um time de futebol americano, de uma marca de vodka, de uma linha de moda e de uma das redes de restaurantes e hotéis mais elegantes dos centros urbanos dos Estados Unidos, a Nobu, com 40 restaurantes e oito hotéis de luxo. Mas o padrão de vida de uma estrela do seu status (que deve contratar assistentes, representantes, publicitários, guarda-costas) exige uma renda milionária que De Niro só pode obter com comédias infames ou com alguma campanha publicitária ocasional: em 2016 recebeu 12 milhões de dólares para estrelar o anúncio de um cassino nas Filipinas dirigido por Scorsese e coestrelado por DiCaprio.

“Ele tem dois critérios principais na hora de escolher projetos: gostar do diretor ou dos atores, mesmo que o roteiro seja fraco, e o dinheiro. Sua situação econômica é confortável, mas tem muitas despesas fixas”, disse um de seus sócios ao New York Post. Em seus fracassos, De Niro trabalhou com estrelas como Sean Penn, Sigourney Weaver, Julianne Moore, Morgan Freeman, Diane Keaton, Michael Douglas, Susan Sarandon, Michelle Pfeiffer, Kevin Kline e John Travolta. Em 2008 o ator deixou sua agência de representação, a todo-poderosa CAA, entre outros motivos por causa de um e-mail interno da empresa que criticava que a ganância havia prejudicado sua carreira: um executivo da agência criticou o fato de o ator pedir mais dinheiro (cerca de 20 milhões) do que valia. “Poderia ter se dedicado a fazer bons filmes”, comentava o e-mail, “mas preferiu ganhar dinheiro para financiar seu pequeno império em Nova York.”

O maldito dinheiro

“Se tem outras prioridades agora, como seu festival de cinema, suas propriedades em Manhattan ou seu negócio de hotelaria, ótimo. Mas por que nos castiga com esses espetáculos deprimentes?”, perguntou Andrew O’Hehir na revista Salon. “Ele sequer consegue rastejar para que pareça que se importa com o papel”, lamentou Keith Phipps sobre É Hora do Show. “É a decadência mais profunda e mais triste de qualquer ator em toda a história de Hollywood”, disse Luke Buckmaster em uma reportagem intitulada De Grande Ator a Piada com Pernas, publicada em 2016, provavelmente seu momento mais baixo em termos de reputação. “Seu critério para aceitar projetos parece ser que o produtor tenha o número de telefone de seu agente”, brincou Reed Tucker. Até Anjelica Huston lamentou que De Niro tenha de trabalhar tanto para sustentar suas ex-mulheres e ficou feliz que Jack Nicholson tenha se aposentado: “Não quero ver Jack fazendo Entrando numa Fria Maior Ainda com a Família.”

Mas quando a imprensa fala da queda em desgraça de De Niro, apresenta uma armadilha perversa: lamenta que seu legado esteja apodrecendo, critica que não se aposente com dignidade e ridiculariza seus papéis recentes. As únicas opções possíveis para atores maduros parecem ser se aposentar a tempo para serem lembrados como mitos ou continuar trabalhando para acabar sendo motivo de chacota. No primeiro grupo estão Gene Hackman (seu último papel foi em 2004, aos 74 anos), Jack Nicholson (aposentado em 2010, aos 73) e Sean Connery (que morreu em 31 de outubro aos 90 anos, depois de 16 anos aposentado). E os veteranos que ainda estão ativos ―Robert Redford, Anthony Hopkins, Dustin Hoffman― trabalham apenas para preservar a dignidade de sua filmografia.

Os termos em que se fala da decadência de Robert De Niro dizem muito sobre como a sociedade percebe a velhice. O terror do declínio físico leva muitos a desejar que os idosos simplesmente desapareçam para não nos lembrarem da nossa própria mortalidade. De acordo com alguns espectadores, De Niro traiu a memória que tinham dele e, portanto, seu declínio profissional é uma afronta pessoal para eles. Andrew Barker definiu Ajuste de Contas (uma comédia de boxe com Sylvester Stallone) como “Dois velhos rabugentos com Rocky Balboa e Jake LaMotta”.

“Os papéis que lhe oferecem agora não são os mesmos de quando estava no auge”, esclareceu um sócio de De Niro. “Com a idade, os bons papéis se dissipam e ele não quer parar de trabalhar. Rodar filmes é sua vida e ele se recusa a passar anos esperando um roteiro de seus sonhos que talvez nunca chegue. Continuar trabalhando o mantém ocupado e relevante. Já não se importa com a crítica, sabe que demonstrou com sobras ser um ator formidável”. A única conclusão a ser tirada da trajetória recente de De Niro é a mais óbvia: se lhe oferecessem filmes melhores, ele os faria.

Seus próximos projetos provam isso: o prestígio recuperado com Coringa e O Irlandês devolveu-o ao círculo dos melhores e agora prepara filmagens com autores como Scorsese (a adaptação do romance Assassinos da Lua das Flores) e James Gray (Armageddon Time), que alternará com Wash Me In The River, um daqueles thrillers do subgênero “ator veterano correndo” que Liam Neeson fundou com Busca Implacável. No momento não tem prevista outra comédia para fazer o vovô. Muitos cinéfilos estão decepcionados com ele porque consideram que parte de sua filmografia recente não está à altura de sua própria lenda. Mas, na realidade, foi Hollywood quem falhou com Robert De Niro.

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