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Dez histórias e muitas perguntas sobre o violento século XXI

Livro do jornalista Jamil Chade e da advogada Ruth Manus propõe reflexões sobre as desigualdades insustentáveis escancaradas pela pandemia

Ativistas protestam em Madri em 25 de setembro, Dia Global da Ação pelo Clima. No cartaz, lê-se: "Somos a espécie em perigo de extinguir tudo".
Ativistas protestam em Madri em 25 de setembro, Dia Global da Ação pelo Clima. No cartaz, lê-se: "Somos a espécie em perigo de extinguir tudo".Óscar J.Barroso (Europa Press)

Uma obra para promover diálogos. Essa é a motivação principal do recém-lançado 10 histórias para tentar entender um mundo caótico (Editora Sextante), livro do jornalista Jamil Chade e da advogada Ruth Manus, que propõe reflexões sobre a vida contemporânea e seus desafios. Amor, felicidade, corrupção, desigualdades e pobreza são alguns dos temas que norteiam os capítulos da obra, que, nas palavras de Chade, “é uma tentativa de romper com a surdez coletiva, que está muito presente hoje”.

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Durante três meses da quarentena imposta pela pandemia do novo coronavírus, os autores trocaram reflexões que vão desde as muitas brechas de gênero na sociedade até o ataque à biodiversidade, com desmatamentos e queimadas, passando pelo peso que a contemporaneidade traz à saúde mental dos indivíduos. Organizados na forma de conversas descontraídas —mas que sempre apresentam evidências, fatos e números—, os 10 capítulos do livro partem de histórias pessoais de Chade ou Manus em diversos países do mundo, do México à Tanzânia, e levantam mais questionamentos do que deixam respostas. Não à toa, muitos dos capítulos da obra terminam com uma interrogação.

“Fazer perguntas é outro dos objetivos do livro. Não queremos dar uma receita sobre como viver no mundo atual, queremos mostrar: Essa é a realidade, vamos enfrentá-la ou camuflá-la com ideologias ou qualquer outro tipo de bandeira?”, diz Chade por telefone. O colunista do EL PAÍS afirma que inspirou-se em reflexões apresentadas em alguns artigos que escreveu para o jornal e que ganharam maior relevância nas trocas com a amiga advogada. Ambos tinham começado o projeto da obra antes da pandemia de covid-19, mas esse novo contexto reforçou algumas das ideias que já tinham, conta o jornalista. “A pandemia deu uma dimensão ainda mais explícita para questões de desigualdade e Justiça. Se antes as pessoas apenas não queriam vê-las e olhavam para o outro lado, a pandemia transformou-as em questões inevitáveis”.

Chade faz questão de destacar, no entanto, que o livro não é sobre a pandemia, mas sobre as “encruzilhadas" de um mundo que vive desigualdades insustentáveis. Ele não é do time dos otimistas que acreditam que, quando tudo passar, a humanidade estará reformada e transformada. “Acho que essa situação mostra o melhor e o pior da humanidade. Tenho a impressão de que, no futuro, quando contarmos essa história, será a história de como até as máscaras foram politizadas. Não é a história de um mundo unido para derrotar o vírus”, lamenta.

O jornalista lembra que a crise financeira de 2008 e 2009 gerou uma coordenação internacional “muito maior” do que a que existe hoje frente à crise sanitária. "O que o coronavírus faz é zombar das nossas fronteiras, das nossa bandeiras e dos nossos nacionalismos. Ele é um despertar no sentido de dizer que esse caminho que alguns insistem em tomar é suicida. O sistema fracassou”, acrescenta.

Chade vê esperança, no entanto, na geração que dá seus primeiros passos rumo à vida adulta e está disposta a mudar seu estilo de vida para preservar aquilo que deveria ser mais caro à humanidade. É a geração de Greta Thunberg e de outros que defendem o planeta. “Essa é a construção de uma insurreição de consciências que precisa acontecer. Não é só sobre construir um prédio com uma nova tecnologia, é ter uma população capaz de entender que o mundo é finito, que um gesto individual tem consequências, que o consumo individual também tem um impacto do outro lado e que a caridade não é a solução”, diz ele. “Criar base para que uma geração venha consciente disso tudo é a maior revolução que pode haver. Essa seria a revolução imparável”, acrescenta.

Leia, abaixo, um trecho de '10 histórias para tentar entender um mundo caótico':

Jamil: Assim como crescemos com histórias de bandidos e mocinhos, será que não existe uma forma de educar uma sociedade em que a Justiça não seja apenas uma revanche? Não se trata de abandonar a vítima. Jamais. Mas, pelo amor, não haveria um modelo mais sustentável de construir um sistema em que possamos evitar novas vítimas?

Para aqueles que nasceram sendo amados, o amor como pauta ou agenda política pode parecer fora de lugar. Mas para aqueles que nasceram abandonados pela família, pelo Estado ou pela sociedade, o amor como política poderia ser a garantia de um futuro.

Ruth: Jamil, isso me lembra um episódio que vivi com a minha sobrinha mais velha quando ela tinha 6 anos. Eu era estagiária no Fórum do Jabaquara, em São Paulo, e um dia ela foi conhecer “o trabalho da tia”. Curiosa, ela ia me perguntando o que era cada uma das coisas que via e eu ia tentando, sem grande sucesso, explicar coisas como o distribuidor de processos ou a sala da associação dos advogados. Eis que ela aponta para a única coisa que eu não queria que ela apontasse: a carceragem.

Expliquei, então, que aquela era “a sala” onde pessoas que estavam presas aguardavam o momento de irem conversar com o juiz. De todas as reações que eu imaginava que a Rita pudesse ter, esta era a única que eu não tinha previsto: “Como assim, tia Ruth!? Ainda existem pessoas presas no mundo!?”

Eu perdi o rumo. Não consegui dizer nada melhor do que “Sim, querida, ainda existe muita gente presa no mundo”. A decepção que eu vi nos olhos dela me inundou. Acho que esse foi um desses momentos em que crianças começam a se tornar um pouco adultos. Ela se limitou a dizer, uns minutos depois: “Eu achei que os homens já fossem capazes de resolver as coisas na conversa.”

É muito difícil explicar o mundo para uma criança. Especialmente porque o mundo, na verdade, costuma ser a contradição de tudo que tentamos passar a elas na educação que lhes damos. “Resolva as coisas na conversa” – mas há pessoas presas. “Não se pode agredir ninguém” —mas existem guerras (e existe até um “direito de guerra”). “Divida suas coisas com os outros” —mas 1% da população mundial detém mais do dobro da riqueza possuída por 6,9 bilhões de pessoas. “Seja educado, não faça grosserias” —mas figuras como Trump e Bolsonaro, líderes de dois dos maiores países do mundo, apare- cem nos jornais e na TV representando a verdadeira antítese de tudo isso.

O amor acaba caindo nessa mesma cilada. Colocamos o amor, em todas as suas facetas, como referência central da vida das nossas crianças e, quando elas se deparam com o mundo fora de casa, descobrem uma sociedade pautada em regras muito diferentes. Mas não precisava ser assim.

Jamil: Ao mesmo tempo, é essa geração que me inspira confiança e esperança. Recusar o amor no centro do debate nos custará caro demais. O preço pago por um mundo sem esse amor é insustentável. A insistência em recusar tal conceito dentro da política ou da comunidade não apenas nos torna insensíveis, mas também tenho a convicção de que nos impede de tomar as decisões mais sustentáveis. Sem amor, nossos esforços para nos liberarmos da opressão —seja ela qual for— estão fadados ao fracasso.

Claro, o amor também pode ser um instrumento de dominação e exclusão. Um ato de violência e de ir- racionalidade. Esse risco se corre quando essa paixão é canalizada apenas para criar e proteger uma comunidade de semelhantes. A história nos mostra que o amor à raça, à nacionalidade, a uma ideologia pode ter consequências devastadoras.

Mas não é a esse amor que eu me refiro. Foi construída a noção de que o conceito de amor se refere apenas ao casal, à família ou a um grupo. O que eu pro- ponho é que o amor não seja um assunto privado, que não esteja acorrentado.

Confesso que nunca entendi por qual motivo Martin Luther King é sempre lembrado apenas por sua frase “Eu tive um sonho”. Tão inspiradora como tal citação é esta: “Eu decidi amar.” Em 1967, ele escreveria algo tão poderoso quanto atual:

“Eu me preocupo por um mundo melhor. Estou preocupado com a justiça; estou preocupado com a fraternidade; estou preocupado com a verdade. E, quando alguém está preocupado com isso, nunca pode defender a violência. Pois através da violência você pode assassinar um assassino, mas não pode assassinar o assassinato. Através da violência você pode matar um mentiroso, mas não pode estabelecer a verdade. Através da violência você pode matar uma pessoa que promove o ódio, mas não pode matar o ódio através da violência. A escuridão não pode apagar a escuridão; só a luz pode fazer isso. E eu digo a você: eu também decidi ficar com o amor, pois sei que o amor é, em última análise, a única resposta aos problemas da humanidade.”

Trinta anos antes, Freud escreveu O mal-estar na civilização. Não vou entrar aqui nos detalhes de sua obra nem ousar debater o sentido que ele pretendia passar. Mas quero reter apenas uma ideia que ele traz ali: o amor como uma energia das mais subversivas e poderosas. Certamente ele pode ser destrutivo. Mas e se ensinássemos a usar esse fenômeno de uma maneira revolucionária? E se a unidade não fosse nem o casal, nem a tribo, nem a raça, mas sim o sentimento universalista?

Já sabemos de uma forma explícita que a era do mundo infinito terminou. Se a emergência climática era um sinal claro disso, a pandemia veio confirmar nossa irrelevância, nossa vulnerabilidade. São fenô- menos que zombam de nossas fronteiras, de nossas bandeiras.

Não estou propondo nem uma nova religião nem uma nova ideologia. Já temos bastante de ambas. O amor como prática revolucionária não é apenas sentimento, mas um plano de ação. Insisto: não acredito que isso seja algo inédito. O que é a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 senão uma carta de amor à humanidade?

A ideia é simples. Mas nos exige inverter uma lógica. Temos de abandonar a percepção que tanto ouvimos: que mundo deixaremos aos nossos filhos? Nada disso. O real desafio é nos fazermos uma pergunta muito mais desafiadora que essa: que geração vamos deixar ao mundo? Ou seja, que filhos estamos criando e de que forma eles vão assumir suas responsabilidades para não cometer os mesmos erros de outras gerações.

Eu vejo três princípios fundamentais na base dessa insurgência das consciências. O primeiro deles é o de educar com a finalidade de formar pessoas que se interessem por cuidar. Cuidar do cachorro, do irmão, dos avós, do vizinho, de um desconhecido, de um estrangeiro, da cidade, do país e de seus bosques, do planeta e de suas maravilhas. Um sistema que incentive a trocar o ego pelo eco.

O segundo é transformar a educação numa eterna busca da tolerância. Entender o que várias culturas dizem, descobrir novos significados para gestos, compreender por qual motivo uma religião dita certos dogmas, conhecer a história. Isso passa necessariamente pela humildade, não por criar mais canais de YouTube. Exige uma educação multidisciplinar, jamais unidimensional.

Será essa tolerância que permitirá que um indivíduo se sinta seguro e confortável diante do outro, dificultando o ódio, o medo e, portanto, o tribalismo como opção.

E o terceiro princípio é incentivar novas formas de justiça. Não se trata de ensinar a entregar roupas usadas para instituições de caridade alguns dias antes do Natal. Mas ensinar a não se conformar, a se indignar, a acreditar que se pode mudar o mundo, a sair às ruas pela liberdade, a se mobilizar, a saber que uma pessoa que dorme numa praça significa um crime, que uma pessoa faminta não é uma fatalidade e que a morte de um desconhecido é a morte da humanidade.

O eixo, no fundo, sofre um abalo. Paradoxal, a unidade passa a ser a humanidade em sua diversidade. Cada um de nós se define como humano. Mas, curiosamente, precisamos dos demais para comprovar que o somos. Ou seja, só existimos como força coletiva.

Quando Yuri Gagarin, em 1961, se tornou o primeiro homem a entrar em órbita, levava consigo o sonho e a loucura de séculos. Quando ele retornou, confessou que sua maior surpresa não foi ver a vastidão do universo, mas a beleza do planeta. Ele estava apaixonado pela Terra.

Ele não foi o único a entender que, ainda que sua missão fosse desbravar o cosmo, a maior descoberta que estava fazendo era de nossa própria casa, do “errante navegante”. Com base nos relatos dos astronautas, anos mais tarde, o filósofo Frank White cunharia o termo “overview effect”, uma reflexão sobre a visão do mundo de uma posição privilegiada e única.

Não estou sugerindo o fim do Estado-nação nem evocando John Lennon. Mas será que não existe nada maior? Será que nossa lealdade se limita a uma bandeira e a uma vida organizada na base de identidades construídas? O nacionalismo é o instrumento adequado? Será mesmo que nossa maior defesa como espécie é a fronteira? Ou seria ela nossa limitação?

Talvez o vírus invisível tenha nos dado uma última chance de despertar. Um último alerta antes de enfrentar um desafio existencial que nos é apresentado no século XXI. Se Gagarin foi ao espaço para entender que somos um só, agora foram o confinamento, o medo, o reconhecimento da vulnerabilidade que nos proporcionaram um daqueles momentos históricos de mudança cognitiva da consciência.

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