_
_
_
_
_

O calvário de Jackie Shane, a cantora trans de voz prodigiosa que disse “não” à Motown e desapareceu

Ela sumiu da noite para o dia e ficou 40 anos esquecida, mas um documentário a resgatou e lhe permitiu recuperar o amor dos fãs do melhor R&B, antes de sua morte, em 2019

Jackie Shane num show em Toronto, em 1967.
Jackie Shane num show em Toronto, em 1967.GETTY
Mais informações
Robin Williams en una imagen promocional tomada en 2013, un año antes de su fallecimiento.
“Já não sou eu”: os últimos dias de Robin Williams, um gênio que estava se quebrando por dentro
Cartaz do documentário 'Libelu'.
Uma faísca chamada Libelu tomava as ruas de 1977
Eugene Levy y Catherine O'Hara, en un capítulo de la quinta temporada de 'Schitt's Creek'.
‘Schitt’s Creek’: como uma pequena comédia canadense fez história no Emmy

Ninguém nasce antes do seu tempo, nem se antecipa à sua época. Essa expressão não faz sentido. Só que, às vezes, parece que certas pessoas nasceram para corrigir uma realidade estúpida e obstinada. Esse é o caso de Jackie Shane, uma das vozes mais fascinantes dos anos 1960, dona de uma personalidade única, cheia de energia vulcânica e sensibilidade extrema. Cantava sobre a liberdade, sobre os sentimentos em seu estado mais bruto e sobre o poder de reivindicar seu próprio espaço no mundo. Foi a primeira mulher trans a entrar nas paradas de sucesso, mas seu nome nunca passou de uma nota de rodapé dentro da história canônica do soul. Entretanto, o processo de correção começou. Jackie Shane ― recordem o nome desta mulher, porque ele não deve mais ser escrito com letras pequenas, e sim ao lado dos grandes.

Sua vida nunca refletiu os estereótipos e preconceitos associados à transexualidade. Jackie Shane parecia sempre gritar: “Não ache que me conhece pelas roupas que visto!”. Não havia lugares comuns no seu caminho. Nasceu em 1940 em Nashville, no sul profundo dos Estados Unidos, e, embora isto pareça a primeira frase de uma história triste, uma biografia que começa com uma infância cheia de humilhações, rejeição e dor, o fato é que Shane sempre viveu alheia a problemas. Teve sorte e teve descaramento. Por quê? Sua mãe e seus avós sempre a defenderam. Isso faz diferença. Aos cinco anos, calçava salto alto, botava um vestido e saía com sua enorme bolsa sendo a menina mais feliz do bairro, e ninguém lhe dizia nada, porque se não teria que se ver com a mãe dela, e ninguém era tão valente.

Aos 13 anos começou a cantar no coro da igreja, mas sua voz extraordinária fez que já fosse direto para o grupo dos adultos, sem passar pelo coro infantil. Sua voz era sincera, poderosa, honesta, mas capaz de brincar, de se divertir e de despertar vontades, e aquela cidade logo ficou pequena para demonstrar todo seu talento. Entrou para uma banda itinerante e começou a viajar até que, chegando ao Canadá, começou a viver como sempre quis. “Todo o meu enfoque sempre foi enfrentar o mal. Não me curvo, não me ajoelho. O mais baixo que chegarei é à parte de cima da minha cabeça. Esta é a Jackie!”, afirmava essa autêntica força da natureza.

Jackie Shane
GETTY

Uma vez no Canadá, conhece Frank Motley em Montreal e entra para a banda dele, chamada Motley Crew (não confundir com o Mötley Crüe, heróis do glam metal), mesmo que Vince Neill estivesse disposto a pagar milhões para ter a voz e o carisma de Jackie. Logo será sua voz solo e sua imagem, com um look único, vestindo calças, paletó de cores pastel e maquiagem carregada. “Muitos achavam que era uma lésbica”, recordaria. Nessa formação chegaria a fazer um relativo sucesso com Any Other Way, a célebre canção de William Bell que ela transforma em libelo LGTBI+. “Diga-lhe que sou feliz, diga-lhe que sou gay, diga que eu não queria de outro jeito”, canta, aproveitando-se do duplo sentido em inglês da palavra gay, que pode significar “alegre” ou “homossexual”.

Em 1961, estabelecida em Toronto, começa a ganhar fãs. O conjunto logo é rebatizado como Jackie Shane, Frank Motley and the Hitchhickers. O interesse cresce e começam as turnês pelos Estados Unidos. Alguém sabe quem é essa aí?, perguntam-se, alucinados, os empresários musicais, produtores e promotores de shows ao vê-la sobre o palco. Até Barry Gordy, grande chefe da Motown, tentou contratá-la para o seu selo, mas ela não queria ser um produto, queria ser um sentimento, e disse que não. “Tinham toda uma série de baldes de gelo com garrafas de champanhe. Tinham me dito várias vezes que Gordy ficava com o dinheiro dos artistas, e eu não queria estar metida nisso”, admitiria. Depois, não terá pruridos em rejeitar o próprio George Clinton para os extraordinários Funkadelic. “Ali era um homem com uma fralda de bebê. Não era para mim”, contaria Jackie.

Sempre teve ideias claras sobre o que queria ou não, e seu desejo era que sua carreira se guiasse por um único motor, o de seus desejos. É curioso: quando você passa a vida toda ouvindo que o que você sente não faz sentido, o que é uma barbaridade, a única coisa que lhe resta é o que você sente e defende a todo custo. Assim foi Jackie Shane, cuja única aproximação com a realeza do soul foi quando aceitou sair em turnê com Etta James, outra grande artista, imortalizada no cinema por Beyoncé.

No começo da década de 1970 começa a se aborrecer com as intermináveis turnês e a vida na estrada. Como era a única responsável por sua carreira, decide mandar tudo ao diabo e retorna a Nashville sem nenhuma conta pendente nem arrependimento algum. A partir daí, cuidará da sua mãe doente com total dedicação, grata por ter sido ela quem lhe encheu o coração de coragem para ser como quisesse. “Minha mãe e meus avós foram os autênticos suportes de minha vida. Entendiam-me e me apoiavam”, reconheceu em uma de suas últimas entrevistas.

Em 2010 é feito I Got Mine: the Story of Jackie Shane, um documentário em sua homenagem, sem saber se estava viva ou morta, já que a cantora desapareceu por completo dos holofotes e sua vida virou um mistério, uma lenda. Assim como aconteceu com o filme Searching for Sugar Man, sobre a história do cantor Sixto Díaz Rodríguez, ao final, o talento de Shane é novamente reconhecido e celebrado antes dela morrer. Em 2017 é lançado Any Other Way, uma coletânea das suas melhores gravações. Em 2018, o trabalho é indicado a um Grammy como melhor álbum histórico.

Voltam as entrevistas e o interesse por sua vida, mas ela, vaidosa, sempre jogará com a ambiguidade. “Se alguma vez me virem em um restaurante ou caminhando pela rua e não ouvir sussurrarem, rirem ou me apontarem, acharei estranho e terei que ir correndo ao banheiro me olhar ao espelho. Mostrarei a língua para ver se não estou doente ou simplesmente terei perdido o toque”, afirma, deixando claro qual era seu caráter e sua força para enfrentar todas as más línguas do mundo. Sabe quem é, sabe o que quer ser, e sabe de sobra o que isto pode provocar nos outros. Não se surpreende, só levanta o rosto com orgulho e diz: “Sou linda, né?!”.

“Sabem qual é meu lema? Faça o que quiser, só pense no que faz”, afirma na gravação ao vivo em que interpreta a clássica Money, uma das faixas de Any Other Way. Outras maravilhas do disco são suas versões de Cruel Cruel World e I’ve Really Got the Blues. Porque ela se considera, sobretudo, uma cantora de blues. Nunca cantou em uma boate gay, porque não é uma cantora gay, é uma cantora de blues. “Acredito sinceramente que foi o destino, como se fosse algo que não se podia evitar. Realmente acredito que encontrei um lugar ao lado de pessoas maravilhosas. O que eu disse, o que fiz, sempre me dizem que tornou suas vidas melhores, e comemoro”, disse, quando seu nome voltou a ressurgir das cinzas.

A cantora morreu em 21 de fevereiro de 2019, aos 78 anos. O excelente Any Other Way ficou como testamento de um talento inigualável e de um carisma esmagador. O disco nem sequer contém canções, e sim eventos, maravilhas, efervescências. Sua voz é uma torrente, como um jorro de água fria que jogassem em cima de você e lhe obrigasse a sobreviver. Sim! Essa é Little Jackie Shane.

Jackie Shane (1940-2019) se apresenta no teatro Palais Royale, em Toronto, em 1967.
Jackie Shane (1940-2019) se apresenta no teatro Palais Royale, em Toronto, em 1967. GETTY

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_