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Pandemia deixa sem tango as noites de Buenos Aires

Setor, que movimenta cerca de 10,8 bilhões de reais por ano, enfrenta situação crítica após cinco meses com os salões de baile vazios. Somente na capital argentina são mais de 200 milongas que fecharam ao mesmo tempo. Campeonato mundial será virtual em 2020

Casal ensaia em sua casa de Buenos Aires para o Campeonato Mundial de Tango 2020.
Casal ensaia em sua casa de Buenos Aires para o Campeonato Mundial de Tango 2020.RONALDO SCHEMIDT (AFP)
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“Mi Buenos Aires querido, cuando yo te vuelva a ver, no habrá más penas ni olvido” (Minha Buenos Aires querida, quando voltar a vê-la, não haverá mais tristezas nem esquecimentos), canta Carlos Gardel num dos tangos mais nostálgicos dedicados à capital argentina. A pandemia da covid-19 impediu que dançarinos do mundo inteiro aterrissassem neste agosto na cidade para competir no Campeonato Mundial de Tango e participar do festival. Pela primeira vez na história, sua presença terá que ser virtual, como também têm sido, desde março, as aulas e os espetáculos de uma dança declarada patrimônio imaterial da humanidade. No silêncio das noites da Buenos Aires sem tango, os trabalhadores levantam a voz contra a precarização do setor e exigem ajuda do Governo, enquanto se unem para sobreviver e planejar o desejado regresso.

“O tango está chorando. Sofre do coração e terá um infarto”, adverte Julio Bassan, presidente da Associação de Organizadores de Milongas —como são conhecidas na Argentina as salas de bailes de tango. Apagaram as luzes em março, e ninguém sabe quando poderão acendê-las de novo. Pelo menos quatro já fecharam as portas. Outras resistem como podem, apoiadas pela comunidade tanguera, que sente saudades do ritual de abraçar o parceiro e se deixar levar pela música na pista até de madrugada.

“O tango representa tudo o que você não deve fazer atualmente. É estar num espaço fechado muito pequeno, com muita gente de vários países, todos muito próximos, abraçando-se, dançando”, diz Rafael Luna, um bailarino venezuelano de 32 anos que chegou pela primeira vez a Buenos Aires em 2011 para competir no campeonato de tango e voltou sempre que foi possível, até que tomou a decisão de se mudar há dois anos. “Buenos Aires é a maior vitrine de tango do mundo. Do mesmo jeito que você pensa em ir a Los Angeles se for ator ou atriz, para os dançarinos de tango o centro do mundo é aqui”, afirma.

O tango movimenta cerca de 2 bilhões de dólares (10,8 bilhões de reais) por ano, segundo Bassan. Somente na capital argentina existem 200 milongas, em sua maioria frequentadas por argentinos e residentes, e 14 casas de tango, destinadas ao turismo. Todas fecharam ao mesmo tempo, em 11 de março. “A única coisa que Buenos Aires tem é cultura. Como pode ser que o Governo não acompanhe?”, critica Bassan. Concordam com ele os dançarinos

Fernanda Grosso e Alejandro Ferreyra, que formam um casal dentro e fora do palco. “O futebol, asado e o tango são os grandes embaixadores de Buenos Aires. O tango atrai o turismo nos 365 dias do ano. Inclusive há pessoas que vêm só para dançar, mas depois, quando voltam, falam também dos vinhos, da carne. E alguns até abrem um lugar de tango em seu país. O Governo não leva isso em conta”, lamenta Grosso.

Com as fronteiras fechadas e os salões vazios, ficou evidente a vulnerabilidade e a precariedade de muitos de seus trabalhadores. “Há casas de tango que pagam formalmente 30% e o resto em dinheiro. Não existem feriados nem domingos, não existem dias livres nem férias remuneradas”, denuncia Bassan. Os dançarinos também não podem ir ao exterior para aumentar os ganhos que obtêm na Argentina.

Músicos como Diego Benbassat, que toca bandoneón na Orquestra Misteriosa Buenos Aires, foram obrigados a abandonar temporariamente seu ofício para poder pagar as contas. “Desde março nosso trabalho foi totalmente interrompido. Foram suspensos todos os projetos com a orquestra e com uma casa de tango”, afirma Benbassat. Outros profissionais sobrevivem graças a familiares, amigos e subsídios estatais como a Renda Familiar de Emergência.

Ninguém foi poupado do golpe, nem sequer figuras como a bailarina e coreógrafa Mora Godoy. “Estes cinco meses nos devastaram. Sem trabalho e com condições de trabalho difíceis, viu-se o desamparo sofrido por bailarinos, cantores e músicos de tango. É muito preocupante para nós”, diz Godoy, que em 2016 dançou com o então presidente norte-americano Barack Obama durante sua visita a Buenos Aires.

A insatisfação da comunidade tanguera com as autoridades de Buenos Aires explodiu no Festival e Campeonato Mundial de Tango, inaugurado na última quarta-feira. Diversos músicos e dançarinos se negaram a participar em sinal de protesto, ao saberem que alguns colegas tinham recebido a proposta de atuar grátis. O diretor artístico do festival, Gabriel Soria, nega essa acusação, mas admite que “alguns poucos artistas decidiram não participar” e respeita sua decisão.

Dançar de casa

A pandemia dizimou também o Campeonato Mundial. O número de casais participantes caiu de 744 em 2019 para 200 este ano. Em vez do mítico estádio Luna Park, eles se exibem através de um vídeo gravado em suas casas na Argentina, Japão, Colômbia, Suíça, Noruega e Itália.

“Muitos precisaram se adaptar às novas formas de comunicação com os meios tecnológicos”, diz Soria. Luna, Grosso e Ferreyra estão entre eles: conseguiram se manter graças às aulas que dão através do Zoom.

Todos sentem falta dos ensaios, do carinho do público e de voltar a cruzar a porta de uma milonga. Mas consideram que, pelo menos até que haja uma vacina, nada mais será como antes. “Eu dançava com pessoas de todas as partes, e o abraço era algo tão básico quanto respirar. Nem pensava nisso, era algo seguro. No primeiro momento, acredito que haverá uma reavaliação do que significa abraçar. As milongas serão em espaços abertos e teremos dois cenários: casais que irão juntos e só dançarão entre si e kamikazes que não se importarão com nada e mergulharão no tango com tudo”, diz Luna. “Acredito que não haverá meio termo, será branco ou preto. Teremos pessoas assustadas que não vão querer voltar, mas também outras desesperadas que estarão na milonga desde o primeiro dia”, diz Grosso.

Bassan prevê uma reabertura com protocolos, máscaras, álcool em gel e pouca ou nenhuma troca de casal ao longo da noite. Mas considera que a essência se manterá. “O tango é humanidade. Te abraça e não se importa se você é jovem, velho, alto, careca ou se tem essa ou aquela religião. Nunca perderemos o abraço, e por isso sofremos tanto. Porque não podemos nos abraçar.”

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