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Mark Lilla: “Há uma psicologia de intimidação e medo, uma covardia para a qual fomos arrastados”

Promotor da polêmica carta, assinada por 150 intelectuais, que denuncia a “intolerância” de certo ativismo progressista, o analista político e ensaísta norte-americano responde à onda de críticas

Andrea Aguilar
Mark Lilla em Madri em 2019.
Mark Lilla em Madri em 2019.Jaime Villanueva
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O analista político e ensaísta Mark Lilla (Detroit, 64 anos), professor de História das Ideias na Universidade de Columbia, em Nova York, e autor, entre outros livros, de The Once and Future Liberal: After Identity Politics (“o liberal de outrora e do futuro: depois da política de identidade”) e A Mente Imprudente: os Intelectuais na Atividade Política, não tem conta no Twitter, mas não está alheio à polêmica nas redes sociais. O artigo de opinião que ele publicou no The New York Times após a vitória de Donald Trump em 2016, no qual pedia que a esquerda nos EUA abandonasse a “era do liberalismo identitário” e buscasse a unidade diante da especificidade das minorias, foi seu batismo no mundo agitado das brigas nas redes. Nesta semana, voltou ao que chama de “esgoto” decido à já célebre carta aberta publicada na Harper’s.

Lilla foi um dos promotores desse texto, que denuncia a “intolerância” de um certo ativismo progressista que tem provocado a demissão de editores e o cancelamento da publicação de livros. Os 150 intelectuais que assinaram a carta, entre eles Noam Chomsky, Gloria Steinem, Martin Amis e Margaret Atwood, reivindicam o direito de discordar sem que isso ponha em perigo o emprego de ninguém, e rejeitam a autocensura que sentem prevalecer. No calor da batalha em defesa da carta, Lilla concorda em responder a algumas perguntas por videoconferência e se mostra um pouco agitado.

Pergunta. Qual foi a origem da carta?

Resposta. Após a demissão de James Bennet, editor de opinião do The New York Times, há algumas semanas [depois de publicar um artigo do senador republicano Tom Cotton que pedia a mobilização do Exército contra os manifestantes após a morte de George Floyd], começamos a escrever uns aos outros, e esse intercâmbio de ideias finalmente deu frutos.

P. Muitos críticos apontaram que os signatários gozam de amplo reconhecimento e espaço para expor suas opiniões.

R. Desde que existe o Twitter, ninguém está silenciado, todo mundo pode entrar em qualquer discussão, e esse diferencial de poder não é exato. Reduzem tudo a uma luta pelo poder e não falam sobre o que a carta expõe. Além disso, consideram que as pessoas de uma mesma raça ou gênero tenham os mesmos interesses e opiniões, e isto foi assinado por pessoas diversas.

P. Por que não mencionaram o caso que inspirou essa iniciativa?

R. Tratava-se de denunciar o clima geral, não um caso específico. O de Bennet tem a ver com brigas no The New York Times sobre os artigos, mas também com o fato de que ele não fez seu trabalho [não leu o texto antes que fosse publicado]. O que tentamos captar é o clima, o que é complicado, porque você pode sentir a pressão atmosférica, mas isso nem sempre significa que possa apontar o que está acontecendo. As pessoas pertencentes a minorias entendem isso muito bem quando denunciam que trabalham em um lugar em que há um ambiente hostil contra elas, é muito difícil falar de coisas concretas. Acredito que hoje há uma psicologia de intimidação e medo, uma covardia para a qual fomos arrastados.

P. Como sente que a política de identidade evoluiu desde que publicou seu artigo e seu livro?

R. Como Andrew Sullivan apontou, todos nós passamos a viver em um campus universitário. Nossos filhos são educados com uma consciência racial e dentro de uma narrativa específica sobre a história dos EUA. E isso tem aspectos positivos. O assassinato de George Floyd demonstrou que o país estava preparado para abordar a questão racial. Isso é muito bom. Mas também parece ter nos levado a um tipo de política histérica e de espetáculo.

P. Como ocorreu isso?

R. Nos EUA, o que está acontecendo não é algo tão novo. No final do século XX, o país, em vez de avançar para o século XXI, retornou, na verdade, ao século XIX. E aquele século foi de fervor religioso, denúncias, censura, indiferença às artes, ignorantes. Estamos em um novo século XIX.

P. Vocês quiseram aumentar o volume e gerar debate e polêmica com a carta?

R. Vimos que ninguém estava levantando a voz contra as campanhas de perseguição. Agora temos mais 100 pessoas que querem aderir. Também achávamos que a carta seria ignorada. E, por último, estimamos que poderia provocar uma terrível tempestade, e foi o que aconteceu.

P. Quais são suas primeiras conclusões sobre essa tempestade?

R. É muito cedo, estou no meio dela, apagando incêndios a cada meia hora. É deprimente ver o nível de discussão e rancor que existe na sociedade norte-americana. Este é um momento incrivelmente importante, com a covid-19, os protestos, Trump, as eleições. É isso que preocupa as pessoas progressista, não o resto. Não sou otimista.

P. Muitos apontam que a carta faz o jogo de Trump e dá munição à direita radical. O que responde a isso?

R. O mesmo que Orwell quando falou das pessoas que querem silenciar o intelecto e o debate. Sempre dirão que, ao falar e dizer a verdade, você está beneficiando o outro lado. Mas a verdade nunca é inimiga da causa.

P. Vocês tinham consciência de que incluir J. K. Rowling seria ainda mais polêmico do que a própria carta?

R. Fizemos, no começo, uma lista para ver com quem entraríamos em contato. Alguns queriam dizer a ela, porque sofreu parte do que a carta denuncia. Não previ que isso seria uma desculpa para que algumas pessoas dissessem que o texto é transfóbico. É uma loucura, porque não há nenhuma palavra sobre esse assunto, e há algumas pessoas trans que também assinaram e foram muito atacadas. Isso mostra o tipo de fanatismo e solipsismo que existe. Malcolm Gladwell escreveu que assinou precisamente porque havia outros signatários cujos pontos de vista sobre outros assuntos ele detesta. É isso que faz com que uma sociedade seja liberal.

P. Essa discussão revigorou a classe intelectual norte-americana?

R. Na verdade, revelou como as coisas estão ruins. Alguém escreveu que talvez a carta em si não se sustente muito bem a priori, mas a reação contra ela realmente demonstrou quanta razão ela tem.

A RESPOSTA DAS “VOZES SILENCIADAS”

Dois dias depois da publicação da carta na Harper’s, veio a réplica em theobjective.substack.com. Ela questiona diretamente um dos promotores, o escritor negro Thomas Chatterton Williams, e assinala que na carta original não há nenhuma menção “às vozes que foram silenciadas durante gerações no jornalismo e no mundo acadêmico”. Embora reconheça que alguns dos casos são reais e preocupantes, nega que seja uma tendência. “A carta não aborda o problema do poder, quem tem e quem não tem”, assinala.

 

Também procura analisar caso a caso e abordar a história de alguns dos signatários. Por último, uma nota de esclarecimento precede a lista de novos signatários, principalmente jornalistas, deixando claro que muitos não quiseram revelar seu nome e preferiram simplesmente mencionar o veículo de comunicação para o qual trabalham. Quem fez questão de se identificar e atacou aqueles que denunciam “a cultura do cancelamento” foi a congressista democrata Alexandria Ocasio-Cortez: “As pessoas que são realmente canceladas não publicam suas ideias na grande mídia”.

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