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A carta aberta de intelectuais que causou uma tempestade

Texto assinado por 150 personalidades contra a “intolerância” do ativismo progressista acende um ácido debate, sobretudo nas redes sociais

Manifestante perto da Casa Branca numa passeata contra a brutalidade policial, em 4 de julho, Dia da Independência dos EUA.
Manifestante perto da Casa Branca numa passeata contra a brutalidade policial, em 4 de julho, Dia da Independência dos EUA.Probal Rashid
Amanda Mars

Alguns signatários se retrataram. Outros defendem orgulhosamente o que assinaram. Jornalistas denunciaram colegas. Uma avalanche de críticas tomou conta das redes sociais. Uma carta aberta assinada por mais de 150 intelectuais —incluindo figuras de primeira grandeza como Noam Chomsky, Gloria Steinem, Ian Buruma e Margaret Atwood— e divulgada na terça-feira na revista Harper’s avivou uma intensa polêmica.

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Chomsky, Rushdie, Steinem e outros 150 intelectuais reivindicam o direito de discordar nos EUA
People look on as an image of Harriet Tubman is projected on the statue of Confederate General Robert E. Lee in Richmond, Virginia, U.S. June 20, 2020. REUTERS/Jay Paul
Quando as estátuas caem do pedestal

O texto alertava para uma crescente “intolerância” do ativismo progressista no debate público, embora expressasse seu apoio aos protestos e denúncias que tomaram as ruas e as redes desde a morte do afro-americano George Floyd por policiais de Minnesota. Entre as reações ao texto houve réplicas agudas, mas também recriminações espalhafatosas que acabam por justamente corroborar o que o manifesto denunciava.

O episódio em si reflete o que se debate atualmente no país mais poderoso do mundo: onde acaba a liberdade de expressão e começa a incitação ao ódio; qual é o limite entre censura e tolerância zero a abusos. As demissões no mundo acadêmico e editorial e o assédio nas redes eram, aparentemente, os alvos que os 150 signatários queriam denunciar, e de alguma forma fomentaram. Também ilustra o duelo travado entre as vozes anônimas ou alternativas e os alto-falantes acadêmicos e culturais tradicionais, que na era das redes sociais se deparam com detratores estrondosos.

“Não assinei a carta quando me pediram, há nove dias, porque pude ver em 90 segundos que era arrogante, uma bobagem vaidosa que simplesmente irritaria as pessoas a quem supostamente queria apelar”, escreveu Richard Kim, diretor-executivo do Huffpost. Linda Holmes, escritora e apresentadora de um programa cultural da rádio pública NPR, comentou que o texto “é de pessoas infelizes por não dominarem mais a conversação e está dirigida a pessoas que elas acreditam estarem também infelizes por não a dominarem”.

Boa companhia

O caso da escritora Jennifer Finney Boylan, uma das signatárias, foi um dos mais surpreendentes, já que se retratou depois do alvoroço gerado pelo escrito. “Não sabia quem mais assinaria aquela carta. Achei que significava respaldar uma mensagem bem-intencionada, embora vaga, contra a perseguição na Internet. Sabia que Chomsky, Steinem e Atwood estavam lá e pensei: ‘Boa companhia’. Terei que arcar com as consequências. Sinto muito”, declarou. Muitos dos signatários foram confrontados com o fato de terem aceitado se somar a determinadas personalidades que constam ali, e outros simplesmente por sua posição de “privilégio”. A escritora e colunista Meghan Daum se defendeu esclarecendo que “é dever das pessoas com uma tribuna se posicionarem e denunciarem o que está acontecendo”.

A historiadora Kerri Greenidge, afro-americana, tuitou pela manhã que tinha pedido à Harper's que retirasse seu nome. A revista respondeu que tinha confirmado cada assinatura, incluída a dela, mas que atenderia à solicitação. Por volta do meio-dia, Greenidge restringiu a visibilidade de sua conta do Twitter, que passou a ser privada.

Que a maior parte dos quiproquós tenham lugar no Twitter não é só algo pitoresco. Esta rede é o agente decisivo numa mudança de paradigma, que democratizou o debate público, mas também deu asas a campanhas de boicote e perseguição. “O livre intercâmbio de informações e ideias, a seiva de uma sociedade liberal, está se tornando cada dia mais limitado”, dizia a carta aberta, citando como exemplo a demissão de editores, a retirada de livros e o veto a jornalistas e professores.

Entre os signatários há personalidades muito diversas, mas todas consolidadas e conhecidas. Uma voz da esquerda como Noam Chomsky coincide na lista com a histórica feminista Gloria Steinem e com o cientista político conservador Francis Fukuyama. Um dos promotores do manifesto, o escritor afro-americano Thomas Chatterton Williams, respondeu às recriminações dizendo que “alguns críticos dizem da carta coisas como ‘Isto é só gente assustada com as mudanças’. Não, isto é gente preocupada com o clima de intolerância, que acredita que a justiça e a liberdade estejam indissoluvelmente unidas. Gente assustada não assinou”, observou, embora acrescentando que muitos dos signatários assinaram com medo da repercussão.

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