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Carlos Ruiz Zafón, um ermitão na cidade das estrelas

O escritor espanhol mais vendido deste século, que morreu na semana passada, viveu com extrema discrição durante 26 anos em Los Angeles, aonde se mudou para trabalhar em Hollywood

Carlos Ruiz Zafón em Guadalajara, no México, no final da Feira Literária de Guadalajara em 2016.
Carlos Ruiz Zafón em Guadalajara, no México, no final da Feira Literária de Guadalajara em 2016.lisbeth Salas
Pablo Ximénez de Sandoval

A casa em que morreu, de seis quartos, em um terreno de 1.400 metros, com vista para o mar de Santa Mônica do terraço do segundo andar, dá uma ideia do status de Ruiz Zafón na literatura espanhola das últimas duas décadas. Sua morte em decorrência de um câncer foi um choque para milhões de leitores e para a indústria editorial. E, no entanto, apenas alguns amigos podem contar histórias sobre ele. Era tão famoso quanto reservado. Seu distanciamento do mundo literário não era apenas físico. Em Los Angeles encontrou o melhor lugar para não ser ninguém.

Mudou-se para lá com a mulher, Mari Carmen Bellver, aos 29 anos, deixando para trás uma carreira na publicidade em Barcelona. Em 1994, caiu na cidade dos distúrbios raciais, uma crise econômica brutal e O. J. Simpson. Naquele janeiro, um terremoto havia deixado dezenas de mortos. Por quê?. Essa era a pergunta recorrente que sempre teria que responder anos depois. “Fui para Los Angeles porque desde pequenino sabia que tinha de ir para muito longe”, disse em entrevista ao EL PAÍS em 2004. “Não sabia o que estava fazendo em Barcelona, quando muitas coisas que me interessavam vinham fora e o que me interessava na minha cidade estava no passado. As pessoas de quem gostava haviam morrido há 100 anos. Não encontrava referências. E, por outro lado, encontrava tudo isso nas coisas que me chegavam da cultura imperial americana, como o jazz, a literatura, o cinema, o romance noir.”

Emili Rosales era em 2000 um editor recém-chegado à Editora Planeta. Trabalhou em A Sombra do Vento e se tornou amigo de Ruiz Zafón. “Ele foi morar em Los Angeles por causa de seu fascínio pelo cinema. Curiosamente, nenhum de seus romances foi levado às telas, e mesmo recebendo uma oferta a cada 15 dias. Sua obra estava concebida como uma homenagem aos livros, por isso nunca quis que suas histórias fossem contadas em uma linguagem que não a da escrita.” Adorava o cinema e vivia da escrita, mas nunca permitiu misturar as duas coisas.

Foi a Los Angeles para trabalhar em Hollywood. E assim fez. Mas nenhum de seus projetos foi concluído. “Nas reuniões eu sempre dizia o que não devia”, contou em entrevista ao The Washington Post. Pelo pouco que falou dessa época, não soube navegar na realidade cruel e pragmática de Hollywood. No final dos anos 90, havia escrito três romances naquela cidade, mas não havia colocado a cabeça no cinema.

O sucesso chegou em um apartamento na Franklin Avenue, bem perto de La Brea, na Hollywood mais clássica, a uma curta caminhada do teatro chinês e do escritório imaginário do detetive Philip Marlowe. Se via a si mesmo como um roteirista fracassado e um romancista em crise, esse era o lugar para viver a fundo o personagem. Com o sucesso mundial, Zafón e Bellver se mudaram para um apartamento enorme, de 1,8 milhão de dólares (9,6 milhões de reais), em Beverly Hills. Não tiveram filhos.

“Los Angeles é esse lugar onde quem é alguém se torna ninguém e quem não é ninguém se torna alguém”, disse em entrevista ao The Independent em 2012. Viveu as duas coisas. Nessa cidade ele se tornou alguém. E ali se recolheu para passar despercebido. Joan Didion dizia que a Califórnia sempre olha para o futuro porque ninguém se lembra do passado. Ruiz Zafón parecia enxergar a cidade da mesma maneira: “Em Los Angeles, às vezes você tem a sensação de que há uma patrulha misteriosa que passa à noite. Quando as ruas estão vazias e todo mundo está dormindo, passam apagando o passado. É como um conto ruim de Ray Bradbury”. Ruiz Zafón encontrou a chave para Los Angeles: não é o melhor lugar para se tornar famoso, é o melhor lugar para desaparecer quando você já for. Por isso, está cheia de celebridades.

Depois do sucesso, passava temporadas em Barcelona, mas sempre acabava fugindo. Nos últimos anos, pensou em procurar uma casa em Londres. Apesar de seu amor pelos Estados Unidos, confessava que Los Angeles não era a melhor base profissional para um escritor europeu. Assim falou a Marla Norman, ex-gerente de vendas da Planeta nos Estados Unidos, em uma carta em 2011. “Os Estados Unidos deixaram de ser uma cultura dos livros”, escreveu. “Quando se trata de livros, o lugar é a Europa. Estou ciente disso há muito tempo, e embora me entristeça ver a América se tornar um lugar sem livros, ainda há muitas coisas de que gosto e continua sendo a minha casa. Francamente, gostaria que fosse uma casa mais literária, mas ... "

No final, sempre que tinha que escolher, Los Angeles ganhava. Para viver, para desfrutar o sucesso e para esperar a morte. Disse Eduardo Mendoza em um obituário neste jornal: “Conseguiu fama e dinheiro, mas a sorte lhe deixou pouco tempo para apreciá-los”. Comprou com a mulher a mansão da costa de Los Angeles em 2019. O preço registrado nos portais imobiliários é de 13 milhões de dólares (69 milhões de reais). Depois de Hollywood e Beverly Hills, essa era sua casa definitiva, a casa dos seus sonhos, segundo confirmou uma fonte familiar que pediu privacidade no luto, poucas horas depois da notícia.

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“CARLOS ERA ‘NOIR’ ATÉ A MEDULA”

Anos depois de trabalharem juntos em 2004, na promoção norte-americana de A Sombra do Vento, a ex-gerente de vendas da Planeta nos Estados Unidos, Marla Norman, pediu a Carlos Ruiz Zafón que lhe enviasse seus filmes favoritos sobre Los Angeles para publicação em uma revista online de viagens. A lista diz algo sobre o personagem e seu fascínio pela 'LA Noir', o gênero que forjou a lenda da cidade das loiras perigosas e detetives ulcerativos. Citou Pacto de Sangue, À Beira do Abismo, Até a Vista, Querida, Crepúsculo dos Deuses, Chinatown, Blade Runner, Pulp Fiction e Los Angeles – Cidade Proibida.

Mas também comédias como 1941 – Uma Guerra Muito Louca, Um Romance Muito Perigoso e a série Entourage. Apesar de ser um angelino desde os 29 anos, duas décadas depois, Ruiz Zafón parecia continuar curtindo o lado mais mítico da cidade. “Eram filmes que o influenciaram”, diz Norman em uma conversa por telefone. “Era um grande fã de Raymond Chandler.” Mas também tinha uma certa conexão biológica com o gênero. “Carlos dormia durante o dia e escrevia à noite. É curioso, sempre falava como a luz da Califórnia o encantava, mas era uma criatura da noite.” Recorda que uma das vezes em que o viu mais contente foi em um evento promocional em Nova York, onde jantaram em um minúsculo restaurante turco ao ar livre e passearam pela cidade à noite durante horas. “Carlos era noir até a medula.”


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