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Pandemias letais estão entre as quatro rupturas violentas com efeitos sobre a desigualdade

Leia um trecho do livro ‘Violência e a história da desigualdade - Da Idade da Pedra ao século XXI’, do historiador Walter Scheidel, lançado pela Zahar, do grupo Companhia das Letras

Moradores caminham entre o lixo na região de Educandos, em Manaus, no último 19 de maio.
Moradores caminham entre o lixo na região de Educandos, em Manaus, no último 19 de maio.BRUNO KELLY (Reuters)
Walter Scheidel

Os Quatro Cavaleiros

Durante milhares de anos, a civilização não se prestou a uma igualação pacífica. Numa vasta gama de sociedades e em diferentes níveis de desenvolvimento, a estabilidade favoreceu a desigualdade econômica. Isso se aplicou tanto ao Egito faraônico quanto à Inglaterra vitoriana, tanto ao Império Romano quanto aos Estados Unidos. Os choques violentos tiveram suprema importância na perturbação da ordem estabelecida, na compressão da distribuição da renda e da riqueza e na redução do abismo entre ricos e pobres. Ao longo de toda a história registrada, o nivelamento mais poderoso resultou, invariavelmente, dos choques mais poderosos. Quatro tipos diferentes de rupturas violentas nivelaram a desigualdade: as guerras com mobilização em massa, as revoluções transformadoras, as falências do Estado e as pandemias letais. Eu os chamo de Quatro Cavaleiros do Nivelamento. Tal como seus equivalentes bíblicos, eles avançaram para “tirar a paz da terra” e “matar pela espada, pela fome, por meio de pragas e dos animais selvagens da terra”. Ora agindo individualmente, ora em conjunto, eles produziram resultados que, aos olhos dos contemporâneos, muitas vezes se afiguraram nada menos que apocalípticos. Centenas de milhões de pessoas pereceram em sua esteira. E, quando a poeira baixou, o abismo entre os abastados e os despossuídos havia encolhido, às vezes drasticamente.

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Somente alguns tipos específicos de violência forçaram sistematicamente uma redução da desigualdade. A maioria das guerras não surtiu nenhum efeito sistemático na distribuição dos recursos: embora certas formas arcaicas de conflito, que prosperavam com a conquista e a pilhagem, tendessem a enriquecer as elites vitoriosas e a empobrecer os derrotados, finais menos definidos não chegavam a ter consequências previsíveis. Para que a guerra nivelasse as disparidades de renda e riqueza, ela precisava penetrar na sociedade como um todo, mobilizar pessoas e recursos numa escala que, não raro, só era viável em Estados nacionais modernos. Isso explica por que as duas guerras mundiais figuraram entre os maiores niveladores da história. A destruição física acarretada pela guerra em escala industrial, a tributação no nível do confisco, a intervenção governamental na economia, a inflação, a perturbação dos fluxos globais de bens e de capital e outros fatores, tudo isso se combinou para acabar com a riqueza das elites e redistribuir recursos. Serviu também como um singular catalisador de poder para equalizar a mudança das políticas, dando um poderoso impulso às extensões de marcas, à sindicalização e à expansão do Estado de bem-estar social. Os choques das guerras mundiais levaram ao que é conhecido como a “Grande Compressão” ―a atenuação maciça das desigualdades de renda e riqueza em todos os países desenvolvidos. Predominantemente concentrada no período de 1914 a 1945, em geral ela levou várias outras décadas para seguir plenamente o seu curso. Repercussões similarmente amplas haviam faltado às guerras anteriores com mobilização em massa. As guerras da era napoleônica ou a Guerra de Secessão norte-americana haviam produzido efeitos distributivos ambíguos, e, quanto mais recuamos no tempo, menos pertinentes são as provas. Pode-se dizer que a cultura das antigas cidades-Estado gregas, representada por Atenas e Esparta, fornece-nos os mais remotos exemplos de como a intensa mobilização militar popular e as instituições igualitárias ajudaram a cercear a desigualdade material, ainda que com um sucesso duvidoso.

As guerras mundiais geraram a segunda grande força niveladora: as revoluções transformadoras. Normalmente, os conflitos internos não reduziram a desigualdade: as revoltas de camponeses e as insurgências urbanas foram comuns na história pré-moderna, mas fracassaram, de modo geral, e a guerra civil nos países em desenvolvimento tendeu a tornar mais desigual a distribuição da renda, não menos. A reestruturação social violenta precisa ser excepcionalmente intensa para reconfigurar o acesso aos recursos materiais. À semelhança das guerras equalizadoras com mobilização em massa, esse foi sobretudo um fenômeno do século XX. Os comunistas, que expropriaram, redistribuíram e não raro coletivizaram os recursos, nivelaram a desigualdade em escala dramática. As mais transformadoras dessas revoluções foram acompanhadas por uma violência extraordinária, acabando por se equiparar às guerras mundiais, em termos de contagem de vítimas fatais e do sofrimento humano. Rupturas muito menos sangrentas, como a Revolução Francesa, promoveram o nivelamento numa escala correspondentemente menor.

A violência pode destruir completamente os Estados. O fracasso estatal ou o colapso dos sistemas foi um meio de nivelamento particularmente confiável. Durante a maior parte da história, os ricos estiveram posicionados no topo ou perto do topo da hierarquia do poder político, ou ligados aos que se encontravam nesse lugar. Além disso, os Estados forneciam certa medida de proteção ―por mais modesta que fosse, pelos padrões modernos― à atividade econômica, para além do nível de subsistência. Quando os Estados se desintegravam, essas posições, ligações e proteções ficavam sob pressão ou eram totalmente perdidas. Embora todos pudessem sofrer com a desestruturação dos Estados, os ricos simplesmente tinham muito mais a perder: a renda e a riqueza da elite, decrescentes ou em colapso, comprimiam a distribuição total dos recursos. Isso aconteceu desde que passaram a existir Estados. Os mais antigos exemplos conhecidos remontam a 4 mil anos, ao fim do Império Antigo do Egito e ao Império Acadiano da Mesopotâmia. Mesmo hoje, a experiência da Somália sugere que essa força igualadora, outrora poderosa, não desapareceu por completo.

A falência do Estado leva o princípio do nivelamento por meios violentos a seus extremos lógicos: em vez de chegar à redistribuição e ao reequilíbrio através da reforma e da reestruturação das sociedades organizadas existentes, ele recomeça do zero, de um modo mais abrangente. Os três primeiros cavaleiros representam etapas diferentes, não no sentido de tenderem a aparecer em sequência ―embora as maiores revoluções tenham sido desencadeadas pelas maiores guerras, o desmoronamento do Estado não costuma exigir pressões similarmente fortes―, mas em termos de intensidade. O que todos têm em comum é que dependem da violência para refazer a distribuição da renda e da riqueza, ao mesmo tempo que refazem a ordem política e social.

A violência causada pelos seres humanos tem uma concorrência de longa data. No passado, a peste, a varíola e o sarampo devastaram continentes inteiros, com mais força até do que os maiores exércitos ou os mais fervorosos revolucionários teriam esperança de fazer. Nas sociedades agrárias, a perda de parcelas consideráveis da população para os micróbios, que às vezes matavam um terço dela, ou até mais, fazia escassear a mão de obra e elevava seu preço em relação ao dos ativos fixos e outras formas de capital não humano, que em geral permaneciam intactas. Como resultado, os trabalhadores ganhavam e os proprietários de terras e os empregadores perdiam, conforme se elevavam os salários reais e caíam os rendimentos. As instituições mediavam a escala dessas mudanças: era comum as elites tentarem preservar os arranjos existentes, arbitrariamente e pela força; com frequência, porém, não conseguiam deter as forças de mercado equalizadoras.

As pandemias completam o quarteto de cavaleiros da nivelação violenta. Mas será que também houve outros mecanismos mais pacíficos de redução da desigualdade? Se pensarmos no nivelamento em larga escala, a resposta tem que ser não. Em toda a longa extensão da história, cada uma das grandes compressões da desigualdade material que podemos observar nos registros que chegaram até nós foi movida por um ou mais desses quatro niveladores. Além disso, as guerras e revoluções em massa não agiram apenas nas sociedades diretamente envolvidas nesses acontecimentos: as guerras mundiais e a exposição aos comunistas também influenciaram as condições econômicas, as expectativas sociais e a formulação de políticas entre os espectadores. Esses efeitos em cascata ampliaram ainda mais os efeitos de nivelamento enraizados em conflitos violentos, o que torna difícil distinguir os acontecimentos posteriores a 1945, em boa parte do mundo, dos choques precedentes e suas reverberações contínuas. Embora a redução da desigualdade de renda na América Latina, no início da década de 2000, possa ser a candidata mais promissora a uma equalização não violenta, essa tendência manteve um alcance relativamente modesto e sua sustentabilidade é incerta.

Outros fatores têm um histórico ambíguo. Desde a Antiguidade até os dias atuais, a reforma agrária tendeu a ser mais redutora da desigualdade quando associada à violência ou à ameaça de violência, e menos quando estas não existiram. As crises macroeconômicas têm apenas efeitos de curta duração na distribuição da renda e da riqueza. A democracia, por si só, não mitiga a desigualdade. Embora não haja dúvida de que a interação da educação com a mudança tecnológica influencia a dispersão das rendas, os retornos sobre a educação e as qualificações têm se revelado, no plano histórico, altamente sensíveis aos choques violentos. Por fim, não há provas empíricas convincentes para corroborar a ideia de que o desenvolvimento econômico moderno, por si só, reduz as desigualdades. Não há repertório de meios benignos de compressão que já tenha alcançado resultados sequer remotamente comparáveis aos produzidos pelos Quatro Cavaleiros.

Mas os choques passam. Depois da derrocada de alguns Estados, outros tomaram o seu lugar, mais cedo ou mais tarde. As contrações demográficas foram revertidas após a cessação das pestes, e pouco a pouco o novo crescimento populacional devolveu o equilíbrio do trabalho e do capital a seus níveis anteriores. As guerras mundiais foram relativamente curtas e suas sequelas foram desaparecendo com o tempo: as altas alíquotas tributárias e a densidade sindical diminuíram, a globalização aumentou, o comunismo se foi, a Guerra Fria acabou e o risco de uma Terceira Guerra Mundial reduziu-se. Tudo isso torna mais fácil compreender o recente ressurgimento da desigualdade. No momento, os violentos niveladores tradicionais encontram-se adormecidos, e é improvável que retornem no futuro próximo. Não emergiu nenhum mecanismo alternativo de igualação simbolicamente potente.

Mesmo nas economias avançadas mais progressistas, a redistribuição e a educação já não conseguem absorver inteiramente a pressão da crescente desigualdade de renda antes da dedução de impostos e das transferências. Os frutos mais acessíveis constituem um atrativo nos países em desenvolvimento, porém as restrições fiscais continuam fortes. Não parece haver um modo fácil de aprovar, regulamentar ou ensinar o caminho para uma igualdade significativamente maior. Visto por uma perspectiva histórica mundial, isto não deve constituir surpresa. Ao que saibamos, os meios que estiveram livres de grandes choques violentos e de suas repercussões mais amplas raras vezes testemunharam grandes compressões da desigualdade. Acaso o futuro será diferente?

Trecho do livro ‘Violência e a história da desigualdade - Da Idade da Pedra ao século XXI’, do historiador Walter Scheidel, lançado pela Zahar, do grupo Companhia das Letras


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