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Personagem não binária estrela comédia dramática da HBO que retrata ‘santa ceciliers’

Produção brasileira da HBO, que questiona padrões de gênero e linguagem, estreou no dia 22 e é dirigida por Vera Egito

Imagem da série brasileira 'Todxs Nós', uma produção da HBO.
Imagem da série brasileira 'Todxs Nós', uma produção da HBO.HBO/Divulgação

Depois de Pico da Neblina, que mostra as desigualdades sociais em um Brasil onde a maconha foi legalizada, a nova produção nacional da HBO conta a história de três jovens de 20 e poucos anos e seu processo de autoconhecimento enquanto vivem e convivem em um apartamento de São Paulo. Eles são típicos santa ceciliers: vivem no centro da cidade, com direito a chão de taco e decoração com samambaias. Até aí, a sinopse poderia ser a de qualquer série juvenil, mas Todxs Nós (lê-se Todes Nós), que estreou em 22 de março, é protagonizada por uma personagem não binária (não se identifica nem como homem nem como mulher).

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Rafa (Clara Gallo) muda-se do interior de São Paulo para a capital e vai dividir apartamento com o primo gay, Vini (vivido por Kelner Macêdo), e a amiga dele Maia (Julianna Gerais). Rafa chega apresentando-se como prime, para anular o valor de gênero da palavra, e estabelece, desde o primeiro momento, um leve estranhamento e confusão tanto para os outros personagens quanto para o telespectador. Esse questionamento dos padrões de gênero e da própria linguagem é um dos objetivos de Vera Egito, criadora da série, e do diretor Daniel Ribeiro (que fez o premiado longa Hoje eu quero voltar sozinho).

“Essa inquietação em relação às diferentes identidades de gênero e diferentes sexualidades sempre existiu em mim. Eu estudava em uma escola de padre, muito careta, no Brooklin [bairro de São Paulo, e me sentia muito excluída. Lembro da primeira vez que fui ao Mercado Mundo Mix, aos 13 anos, um reduto GLS, como se falava na época, com feiras e shows, e lembro de me sentir acolhida ali”, conta Egito em conversa com o EL PAÍS, após o lançamento da série. Apesar de ser uma mulher cis, ela afirma que não faltam mulheres trans na equipe de roteiristas e pessoas não binárias no time de atuação. “A gente tem que parar para pensar quem é a cota de homem hétero cis na equipe”, brinca.

Todxs Nós chega ao público poucos meses depois de o Governo ultraconservador de Jair Bolsonaro suspender um edital de financiamento para séries com temática LGBTQ nas televisões públicas. “A gente não depende de recursos públicos para esse projeto. A história é Rafa chegando em São Paulo, mudando a vida do primo e de sua colega de quarto, além de mudar sua própria vida”, explica Ribeiro. A criadora é mais taxativa: “A gente realmente não se importa com o que o Governo acha”, afirma Egito.

O desafio da equipe foi outro: trabalhar a linguagem inclusiva, com pronomes neutros, em uma produção audiovisual. “Além de ter pessoas que se identificam com linguagem neutra e inclusiva na equipe da série, o que muda tudo, contamos com consultoria durante todo o processo, que fizeram palestras de sensibilização. O pronome neutro existe em um monte de idiomas, não estamos inventando a roda, é uma coisa possível", diz a criadora.

“A linguagem é o elemento fundamental da cultura humana. Nós transformamos a linguagem e ela transforma a gente, é algo dinâmico. As palavras vão mudando, então, viabilizar uma forma de comunicação que inclua a todes é muito bonito”, acrescenta Roberto Rios, vice-presidente de produções originais da HBO na América Latina.

O elenco admite que dá “derrapadas” em alguns momentos, mas celebra o esforço da série por familiarizar o público com a linguagem inclusiva. “A gente tem que parar para pensar antes de falar, o que é um exercício muito bom, já que nunca fazemos isso. É muito natural errar também, mas o importante é tentar”, diz Clara Gallo. "É essa coisa de bugar a língua mesmo”, complementa Julianna Gerais.

A HBO espera que Todxs Nós repita o secesso de Euphoria, série norte-americana centrada nas experiências de um grupo de jovens de 17 anos com drogas, autodescobertas, sexo, ansiedade e problemas de identidade. Mas a semelhança entre ambas produções é só a vivência LGBT. Se Euphoria é claramente um drama, Todxs Nós é uma comédia dramática, uma grande celebração da vida. “Em um lugar do high school norte-americano que diz muito daquela cultura, enquanto aqui a gente diz muito da cultura latino-americana, da vivência da juventude em uma grande cidade latino-americana. Todxs Nós tem um tom mais leve, tem uma autoironia”, diz a criadora.

“São sutis os momentos de racismo e transfobia que aparecem na série, o que é bem próximo da realidade. Eu, por exemplo, não sou chamada de macaca todo dia, mas sofro racismo todo dia”, explica Julianna Gerais. Afastando-se do exemplo de tramas onde personagens LGBTQ são marcados pelo preconceito que sofrem ou pelas dificuldades de saída do armário, Todxs Nós não reforça estereótipos de sofrimento. "Queremos criar um outro imaginário, mostrar que essas pessoas têm trajetórias, famílias, sonhos, desejos, outras questões”, diz o ator Kelner Macêdo.

“A gente sofre ataques racistas, LGBTfóbicos, só que a gente vive nossa vida, né? A gente ama, namora, vai à festa, briga com a mãe... A vida existe”, conclui o diretor Daniel Ribeiro.

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