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Os segredos dos centenários contra o Alzheimer

Um estudo do Hospital Universitário de Amsterdã acompanha a evolução de 332 pessoas com mais de 100 anos que mantêm sua capacidade cognitiva, para contribuir na luta contra a doença

Isabel Ferrer
Frits Brockhus, de 102 anos, em sua casa de Zandvoort (Holanda), em 11 de julho.
Frits Brockhus, de 102 anos, em sua casa de Zandvoort (Holanda), em 11 de julho.I. F.
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A campainha toca e a dona da casa, Susan Hosang-Van Riemsdijk, abre a porta. Ela mora na cidade de Hilversum, no centro da Holanda, em um imóvel térreo e independente. É um sábado de julho, sopra uma leve brisa e ela mesma plantou as flores que enfeitam a entrada. Nada parece excepcional, a não ser pela idade da anfitriã: 102 anos. Em perfeita forma, vive sozinha, nada, anda de bicicleta e dirige seu carro em curtas distâncias, joga bridge, segue uma alimentação balanceada e tem um relacionamento próximo com suas duas filhas, seis netos e 14 bisnetos.

Os centenários são um grupo populacional único para analisar os fundamentos genéticos da longevidade, assim como os fatores de risco que determinam distúrbios degenerativos, e Susan está entre os 332 holandeses dessa geração que participam de um estudo sobre a relação entre a saúde e a capacidade cognitiva na velhice. Liderados pela bioquímica Henne Holstege no Hospital Universitário de Amsterdã, os cientistas observaram que o genoma desse grupo de centenários é enriquecido com elementos genéticos protetores. Embora proteínas relacionadas com o Alzheimer tenham se acumulado em seu cérebro com a idade, eles parecem resistir aos efeitos desses fatores de risco. E a pesquisa pode contribuir para aprimorar os tratamentos para pacientes com demência.

Como explica Holstege, que estuda os centenários desde 2013, se você chega a essa idade, “a possibilidade de desenvolver demência é maior que a de morrer, de modo que, após um século de vida, não deveria restar ninguém saudável do ponto de vista cognitivo”. Ela explica que existem pessoas que conservam a saúde cognitiva inclusive depois dos 110 anos —os chamados supercentenários—e pretende saber “como é cientificamente possível completar um século com uma boa capacidade cognitiva, quais são os mecanismos moleculares que mantêm a saúde mental no longo prazo e qual é o papel desempenhado pela herança”, diz ela pelo telefone. Para isso, desde 2013 sua equipe visita anualmente os integrantes do grupo de estudo, com média de 100,5 anos, para medir atenção, percepção, compreensão e memória. Os cientistas também pedem amostras de fezes para analisar a microbiota. Cerca de 75% são mulheres, e mais da metade vivem de forma independente em suas casas. Os especialistas também sequenciaram seu genoma e o comparam com o DNA de pessoas que têm demência, em colaboração com o Centro para o Alzheimer, de Amsterdã. O objetivo é traçar as variantes genéticas protetoras enriquecidas nos centenários saudáveis, que os diferenciam do resto da população.


Susan Hosang-Van Riemsdijk, de 102 anos, em sua casa de Hilversum, no centro da Holanda.
Susan Hosang-Van Riemsdijk, de 102 anos, em sua casa de Hilversum, no centro da Holanda. I. F.

Holstege diz que o genoma é uma das ferramentas para entender o que não anda bem num cérebro com demência “porque entre 60% e 80% da possibilidade de tê-la, ou de sofrer Alzheimer, que é a forma prevalente, é definida por fatores genéticos”. E acrescenta: “Vemos que os centenários mantiveram a eficácia da resposta imune (no grupo de estudo, alguns superaram o câncer e o coronavírus), e procuramos saber como eles resistiram ao declínio das defesas contra as doenças para, dessa forma, proteger aqueles que têm risco de deterioração mental.” Cerca de 30% do grupo de estudo concorda em doar seu cérebro para a ciência quando chegar a hora.

A longa vida de uma holandesa, Hendrikje van Andel-Schipper, que morreu em 2015 com plena lucidez, foi o que levou a bioquímica a se interessar por esses idosos. A Holanda não figura na lista das chamadas Zonas Azuis do mundo, onde há pessoas que superam a média de idade de seu entorno (estão incluídos Japão, Grécia, Costa Rica, Califórnia e Itália), mas conta com uma importante cifra de centenários em boa forma. Em 2020, havia 2.006 mulheres e 392 homens de 100 anos ou mais, numa população de 17 milhões de habitantes, segundo o Escritório Central de Estatísticas. Em 2029, a mesma fonte espera que haja cerca de 3.400 centenários “por causa de um pequeno baby boom após a Primeira Guerra Mundial”.

Susan Hosang-Van Riemsdijk nasceu em 1919, e suas filhas têm 74 e 70 anos. Nas fotos que enfeitam sua sala de estar, ambas parecem muito mais jovens. Seu esposo, no entanto, que era engenheiro eletrônico, morreu aos 67 anos. “Muito jovem, uma pena. Era fumante”, diz ela, para em seguida relatar um capítulo de sua juventude que resume sua fortaleza física e as penúrias da ocupação nazista do país durante toda a Segunda Guerra Mundial. Com seu marido escondido “em um vão que ficava entre a copa e a cozinha, para que não o levassem à Alemanha para fazer trabalhos forçados”, Susan buscava comida usando uma bicicleta de rodas reforçadas com madeira e pneu de carro. “Pesava muito, mas eu percorria 145 quilômetros de ida e outros tantos de volta, em busca de alimentos numa fazenda situada no leste do país. Outras pessoas também faziam o mesmo, e os produtores não pediam dinheiro nem joias. Apenas roupa. Na primeira vez voltei vestida de pijama, que era a única coisa que me restava”, lembra. No início do casamento ela não trabalhou (“As coisas eram desse jeito”), mas entre seus 50 e 80 anos foi pedicura e esteticista. Também se dedicou às massagens japonesas shiatsu, obtendo os diplomas correspondentes.

Outro que participa da pesquisa é Frits Brockhus, também de 102 anos, que mora na cidade de Zandvoort, no oeste do país, famosa por seu circuito de Fórmula 1. Frits foi investigador policial durante três décadas. Ágil e jovial, ele conversa com a reportagem enquanto seu jardim se enche de pardais. “Costumo tomar café da manhã fora, e eles pousam nos meus joelhos esperando alguma migalha”, afirma. Frits cuida da visão e da audição, gosta de carne e arenque, e toma um pouco de vinho. Praticamente não fumou, lê em inglês o escritor britânico John Le Carré e escuta música clássica. Também já fez muito exercício. “Pratiquei futebol e badminton, caminhadas e natação, e usei demais a bicicleta”, explica. Ele mostra o triciclo de última geração que usa para visitar sua filha, de 64 anos, seu genro e suas duas netas, dos quais é muito próximo. Os retratos da família decoram a sala —e ele os mostra encantado. São 14 quilômetros até a casa da filha, contando ida e volta. Há dois anos, ele podia percorrer até 80 quilômetros. Mas também já teve suas quedas: aos 80 anos, quebrou o fêmur jogando badminton. Aos 92, um cachorro o derrubou da bicicleta, e ele passou dois meses de repouso com uma fratura na pelve.

A mãe de Susan alcançou os 95 anos. Frits é o sétimo de 10 irmãos. Duas de suas irmãs fizeram 102 anos, uma terceira 103 e outra 98. Os dois irmãos que lhe restam têm 98 e 95 anos. Outro morreu aos 52 “de fumar”, diz. Ele descreve seu casamento como “muito feliz”, e se emociona ao lembrar que o casal perdeu uma filha aos 17 anos, por um tumor cerebral, e também dois bebês. Sua memória é a do século XX. A Segunda Guerra Mundial o surpreendeu aos 21 anos, quando já trabalhava na polícia local holandesa. “Foi uma época muito difícil porque você nunca sabia se a Gestapo apareceria. Também havia bombardeios, e quando algum avião era derrubado ninguém saía vivo. Espantoso”, recorda.

Sem se conhecer, ambos os centenários concordam que o “exercício físico ajuda a envelhecer em melhores condições”. Segundo Holstege, quanto melhor o estado cognitivo, mais anos vivem. “E vemos que seus filhos se beneficiam do fator hereditário”, diz a cientista, que se propôs a aprender com eles.

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