_
_
_
_
_

Dois especialistas chineses que identificaram o coronavírus alertam para o risco do vírus da gripe H5N8

Patógeno provocou surtos letais em milhões de aves em meio mundo e chegou a dar o salto a sete pessoas. Cientistas dizem que os vírus da gripe aviária podem provocar “pandemias desastrosas” nos humanos

Os trabalhadores de uma granja afetada pelo vírus H5N8 transportam patos para seu sacrifício, em 13 de janeiro, em Mugron (França).
Os trabalhadores de uma granja afetada pelo vírus H5N8 transportam patos para seu sacrifício, em 13 de janeiro, em Mugron (França).Alain Pitton (Getty)
Manuel Ansede
Mais informações
Ilustración de Sorbetto.
Máscara e quarentena não irão deter outra pandemia. Tomar cuidado com o carrinho de compras, sim
Researcher with E Coli bacteria
Superbactérias, a próxima pandemia
Dos investigadoras trabajan en el Instituto de Virología de Wuhan, en una imagen tomada en 2017.
Grupo de cientistas renomados pede “uma investigação autêntica” sobre a origem da pandemia

O escritor Benito Pérez Galdós fez uma advertência em 1884, no começo de uma praga de cólera na Espanha: “As epidemias, pelo visto, também sentem sua decadência, como as raças reais e as plebeias, o que seria um grande consolo à humanidade se a história não nos ensinasse que após o fim de uma peste outra surge”. Dois cientistas chineses, George Fu Gao e Weifeng Shi, também lembraram na quinta-feira na revista Science que após a covid-19 pode vir outra pandemia, como sempre acontece há milênios. E os pesquisadores apontam um suspeito: o vírus da gripe aviária H5N8.

O patógeno é um velho conhecido. Circula pela Europa desde 2014, causando surtos que afetam milhões de aves silvestres e de granja, segundo a agência europeia dedicada ao controle das doenças infecciosas, o Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças (ECDC, na sigla em inglês). Em 20 de fevereiro de 2021 a Rússia alertou que o vírus havia pela primeira vez dado o salto aos humanos. Sete trabalhadores se infectaram em uma gigantesca granja com 900.000 galinhas poedeiras na região de Astracã, no sul do país. Nenhum dos sete teve sintomas.

O vírus também está na Espanha. O Ministério da Agricultura declarou nos últimos meses três surtos em aves silvestres, após a aparição em novembro de um falcão peregrino moribundo em Noja (Cantábria) e a descoberta em janeiro de três cegonhas e um ganso mortos em Marismas del Ampurdán (Girona) e dos restos de outro ganso na Lagoa Grande de Villafáfila (Zamora). O ministério enviou uma mensagem tranquilizadora após comunicar este último ocorrido, em 5 de fevereiro: “A detecção desse caso não significa um risco à saúde pública, já que os estudos genéticos baseados na análise das sequências de vírus completo mostram que se trata de um vírus aviário sem afinidade específica pelos seres humanos”.

Os cientistas chineses George Fu Gao e Weifeng Shi alertam que os vírus da gripe aviária podem provocar “pandemias desastrosas” nos humanos

Os dois especialistas chineses são menos otimistas. “A propagação mundial dos vírus da gripe aviária H5N8 é um problema de saúde pública”, alertam na revista Science. George Fu Gao é o diretor geral do Centro Chinês de Controle e Prevenção de Doenças e Weifeng Shi é o diretor do Laboratório de Referência de Doenças Emergentes Infecciosas das Universidades de Shandong. Os dois trabalharam na identificação do novo coronavírus em dezembro de 2019. No seu entendimento, os vírus da gripe aviária podem provocar “pandemias desastrosas” nos humanos.

Pelo menos 46 países da Europa, Ásia e África declararam surtos letais de H5N8 em aves. Os pesquisadores chineses frisam que o vírus dos sete trabalhadores russos pertencia ao subgrupo 2.3.4.4b, com mutações “preocupantes” que parecem aumentar sua afinidade pelas células humanas. Esta mesma variante do vírus provocou o sacrifício de mais de 20 milhões de aves de granja na Coreia do Sul e Japão, alertam George Fu Gao e Weifeng Shi. “É imperativo que não se ignore a propagação mundial e o risco potencial dos vírus da gripe aviária H5N8 para as aves de granja, as aves silvestres e à saúde pública global”, alertam.

Uma cientista pega amostras de um pato silvestre em um laboratório de Rostock (Alemanha), após um surto de H5N8 em 2014.
Uma cientista pega amostras de um pato silvestre em um laboratório de Rostock (Alemanha), após um surto de H5N8 em 2014. Carsten Koall (Getty Images)

A veterinária Elisa Pérez, especialista em vírus emergentes, se surpreende com o sinal de alerta enviado pelos dois especialistas chineses. A virologista, do Centro de Pesquisa em Saúde Animal (Valdeolmos, Comunidade de Madri), lembra que o ECDC fez em 24 de fevereiro uma avaliação do risco e chegou à conclusão de que era “baixo” para os trabalhadores do setor avícola e “muito baixo” à população em geral. O órgão detalhou na época que haviam sido registrados 1.700 surtos de H5N8 e de vírus semelhantes em aves desde outubro de 2020 na UE e em seu entorno, com 1.900 pessoas envolvidas em atividades perigosas —como o sacrifício de animais infectados— em sete países, sem nenhum caso detectado em humanos.

“Se o vírus entra em uma macrogranja não há quem o pare. É uma bomba relógio”, adverte Elisa Pérez

Em 23 de março, de fato, o Ministério da Agricultura e as comunidades autonômicas da Espanha decidiram relaxar as rígidas normas de biossegurança que estavam em vigor, como a proibição de ter aves domésticas ao ar livre. As autoridades, em uma mensagem enviada aos veterinários especializados, justificaram sua decisão na “diminuição do risco de introdução da influenza [gripe] aviária na Espanha após a finalização do período migratório de aves silvestres invernantes de países do Norte e do Centro da Europa” e na ausência de casos desde janeiro.

Pérez destaca um traço “muito chamativo” da gripe H5N8: também mata as aves silvestres. “São o reservatório natural dos vírus da gripe e é muito raro que tenham sintomas graves, mas neste ano foi um massacre no norte da Europa”, diz. A virologista só se lembra de outros dois casos semelhantes: a gripe H5N1 no começo do século XXI e uma onda de surtos do mesmo subtipo H5N8 nos anos 2016 e 2017 na Europa. Pérez assinala as gigantescas granjas avícolas. “Em granjas como a da Rússia, com quase um milhão de galinhas no mesmo local, há um risco altíssimo de mutação. Se o vírus entra em uma macrogranja não há quem o pare. É uma bomba relógio”, alerta.

Os dois especialistas chineses, entretanto, opinam que a substituição das pequenas granjas familiares por grandes explorações industriais, teoricamente com rígidas medidas de biossegurança, ajudará a reduzir o risco de salto do vírus das aves aos humanos. Na Espanha a empresa Rujamar anunciou em 2019 um investimento de 25 milhões de euros (162 milhões de reais) para construir uma macrogranja com 1,35 milhão de galinhas em San Clemente (Cuenca). Nas granjas espanholas há 46 milhões de galinhas poedeiras, segundo o censo oficial, com mais de 817 milhões de aves sacrificadas para carne em 2019.

“O vírus da gripe tem a potencialidade de gerar uma pandemia muito pior do que a que estamos sofrendo”, diz virologista María Montoya

Da mesma forma que o novo coronavírus tem suas espículas características, os vírus da gripe apresentam duas proteínas em sua superfície, a hemaglutinina (H) e a neuraminidase (N), com diferentes subtipos numerados, por isso o nome H5N8. A virologista María Montoya, do Conselho Superior de Pesquisas Científicas (CSIC), lembra que os vírus com H5 saltam de vez em quando das aves às pessoas. O H5N1 provocou centenas de casos em humanos, muitos deles letais, desde sua identificação em Hong Kong em 1997.

Montoya frisa que uma coisa é saltar das aves aos aves aos humanos e outra muito diferente é passar de humano a humano. “As vezes que o H5 saltou às pessoas foi bastante devastador, mas, felizmente, a transmissão de humano a humano não foi eficiente”, diz a pesquisadora. “No momento em que surgirem mutações que causem a transmissibilidade de humano a humano, pode ser uma nova pandemia”, alerta.

A virologista frisa que a capacidade de mutação do vírus da gripe é “muitíssimo maior” do que a dos coronavírus. “Tem a potencialidade de gerar uma pandemia muito pior do que a que estamos sofrendo agora, mas pode acontecer mês que vem ou dentro de 100 anos”, afirma. Montoya lembra que sua instituição, o CSIC, perdeu os dois principais laboratórios que pesquisavam o vírus da gripe na Espanha, após a aposentadoria dos virologistas Juan Ortín, em 2016, e Amelia Nieto, em 2020. “Para combater uma possível pandemia de gripe precisamos que os grupos de pesquisa nesses assuntos sejam apoiados, são estratégicos”, diz Montoya.

Apoie a produção de notícias como esta. Assine o EL PAÍS por 30 dias por 1 US$

Clique aqui

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_