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Grupo de cientistas renomados pede “uma investigação autêntica” sobre a origem da pandemia

Os pesquisadores afirmam que ainda são possíveis tanto a hipótese de um acidente de laboratório em Wuhan quanto a do salto natural do coronavírus a partir dos animais

Duas pesquisadoras trabalham no Instituto de Virologia de Wuhan em uma fotografia de 2017.
Duas pesquisadoras trabalham no Instituto de Virologia de Wuhan em uma fotografia de 2017.SHEPHERD HOU (EFE)

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Um grupo de cientistas de primeira linha pediu na quinta-feira “uma investigação autêntica” sobre a origem da pandemia de covid-19 e defendeu que “continuam sendo possíveis tanto a teoria de uma fuga acidental de um laboratório quanto a de um salto natural a partir dos animais”. Entre os 18 signatários estão alguns dos pesquisadores que lideraram o estudo do novo coronavírus, como a imunologista Akiko Iwasaki, da Universidade de Yale (EUA); o microbiologista David Relman, da Universidade de Stanford (EUA); e o epidemiologista Marc Lipsitch, da Universidade de Harvard (EUA). Sua carta foi publicada na revista Science, uma vitrine da melhor da ciência internacional.

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FILE PHOTO: World Health Organization (WHO) Director-General Tedros Adhanom Ghebreyesus attends a news conference organized by Geneva Association of United Nations Correspondents (ACANU) amid the COVID-19 outbreak, caused by the novel coronavirus, at the WHO headquarters in Geneva Switzerland July 3, 2020. Fabrice Coffrini/Pool via REUTERS/File Photo/File Photo
Diretor da OMS pede mais estudos sobre hipótese de o coronavírus ter escapado de laboratório em Wuhan
(FILES) In this file photo taken on January 24, 2020 a security guard stands outside the Huanan Seafood Wholesale Market where the coronavirus was detected in Wuhan. - An international expert mission to Wuhan has concluded that it was very likely that Covid first passed to humans from a bat through an intermediary animal, while all but ruling out a lab incident. The experts said that the intermediary host hypothesis was deemed "likely to very likely", while the theory that the virus escaped from a laboratory was seen as "extremely unlikely", according to the final version of the long-awaited report, of which AFP obtained a copy on March 29, 2021 before the official release. (Photo by Hector RETAMAL / AFP)
OMS sugere que o coronavírus passou de morcegos para humanos por meio de outro animal
Domestic tourists from Henan province wearing face masks visit an area next to the Yangtze River in Wuhan on November 20, 2020. (Photo by Hector RETAMAL / AFP)
As cicatrizes de Wuhan, um ano depois do coronavírus

Os autores criticam abertamente o relatório da missão conjunta da Organização Mundial de Saúde (OMS) e da China, que há três meses concluiu que a hipótese do acidente de laboratório era “extremamente improvável”, enquanto a transmissão natural a partir de um reservatório animal era “provável ou muito provável”. Os 18 cientistas afirmam que não há provas para afirmar isso e lembram que a equipe chinesa se encarregou de preparar as informações e as amostras que foram então analisadas por especialistas da OMS. A possibilidade da fuga de um laboratório só foi cogitada em quatro das 313 páginas do relatório final, lamentam os 18 signatários.

O próprio diretor-geral da OMS, o etíope Tedros Adhanom Ghebreyesus, disse no dia 30 de março que a hipótese da fuga do vírus de um centro científico deve ser investigada mais a fundo. O Instituto de Virologia de Wuhan, com laboratórios de alta segurança nos quais se trabalha com coronavírus, está a 14 quilômetros do mercado de Huanan, apontado como foco inicial da pandemia. O cientista dinamarquês Peter Ben Embarek, chefe da missão da OMS, ressaltou em fevereiro que é “extremamente improvável” que o vírus tenha saído de um laboratório. Sua hipótese principal é que o novo coronavírus se originou em morcegos e saltou para as pessoas por meio de uma espécie animal intermediária.

O virologista Robert Garry, especialista em vírus emergentes da Universidade de Tulane (EUA), acredita que a carta publicada na Science “deturpa completamente” o relatório da OMS. Garry é um dos cinco especialistas internacionais que analisaram o genoma do coronavírus no início da pandemia e concluíram que não era um vírus manipulado em laboratório. “Não há dados ou provas de qualquer tipo que sustentem a teoria de uma fuga”, explica o virologista a este jornal.

O relatório da OMS analisa 168 casos de covid em Wuhan em dezembro de 2019, 47 deles diretamente vinculados ao mercado de Huanan. No entanto, 38 dos pacientes tinham visitado outros estabelecimentos semelhantes de venda de animais vivos, mas não o de Huanan. Garry destaca que a maioria dos primeiros casos está vinculada a diferentes mercados de fauna selvagem e que, além disso, duas linhagens diferentes do coronavírus foram detectadas. O virologista traça essa sucessão de eventos como uma hipótese que se enquadraria nos dados: a existência de um progenitor do vírus em morcegos, um salto para outra espécie, a captura de animais infectados, o surgimento de variantes ao saltar de novo a outras espécies de animais de criação durante o transporte e, finalmente, a venda de exemplares afetados a diferentes mercados de Wuhan.

Garry defende que outros cenários são “incongruentes” com os fatos estabelecidos. “É difícil fundamentar as teorias em que um trabalhador infectado em um laboratório, um animal de experimentação que fugiu ou uma gestão deficiente de resíduos provocam a disseminação não de uma, mas de duas linhagens do SARS-CoV-2 e, além disso, em diferentes mercados de animais selvagens vivos”, argumenta o pesquisador da Universidade de Tulane.

O virologista norte-americano afirma que nenhum país, inclusive o seu, aceitaria a pesquisa que está sendo exigida da China. “As hipóteses de uma fuga de laboratório são baseadas em um suposto grande acobertamento e em uma complexa conspiração perpetrada por alguns dos principais virologistas do mundo. É decepcionante ver que alguns cientistas importantes apoiam essas alegações infundadas”, lamenta Garry.

O epidemiologista Ian Lipkin, autoridade mundial em patógenos emergentes, foi outro dos cinco especialistas que apontaram, em março de 2020, para uma origem natural do coronavírus como a hipótese mais provável. Seu discurso soa agora mais cético. “Talvez nunca saibamos a origem do SARS-CoV-2. Preocupa-me que os cientistas do Instituto de Virologia de Wuhan não tomaram as precauções adequadas ao cultivar vírus de morcegos”, explica Lipkin ao EL PAÍS. O epidemiologista, da Universidade de Columbia (EUA), cita pesquisas com vírus perigosos feitas em Wuhan antes da pandemia em laboratórios com nível médio de biossegurança.

Os 18 signatários da carta da Science lembram que União Europeia, Estados Unidos, Canadá, Japão e outros países já criticaram no dia 10 de março os atrasos da missão da OMS à China e a falta de acesso às amostras animais e humanas originais. Os 18 cientistas pedem uma investigação transparente e com supervisão independente. “Até que tenhamos dados suficientes, devemos levar a sério tanto a hipótese de uma origem natural quanto a de um acidente de laboratório”, concluem os autores.

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Os precedentes são confusos. O vírus da síndrome respiratória aguda grave (SARS) ―outro coronavírus que apareceu na China em 2002 e matou quase 800 pessoas― foi detectado em um mercado de animais de Guangdong na civeta, um pequeno mamífero do sudeste asiático, e também em cães-mapache, criados em fazendas para a venda de suas peles. A origem daquela SARS de 2002 foi um salto natural, mas em 2004 a OMS expressou sua “preocupação” depois de constatar várias fugas do vírus em laboratórios da China. Duas décadas antes, após a identificação do vírus da AIDS em 1981, alguns cientistas afirmaram que o HIV havia sido criado em um laboratório. Estavam equivocados. As pesquisas mais recentes apontam que o vírus da AIDS saltou dos chimpanzés por volta de 1920, no que hoje é a República Democrática do Congo.

Entre os 18 signatários da carta da Science também se destacam o microbiologista Ravindra Gupta, da Universidade de Cambridge (Reino Unido); o geneticista Rasmus Nielsen, da Universidade da Califórnia em Berkeley; a imunologista Sarah Cobey, da Universidade de Chicago; o bioquímico Jesse Bloom, do Centro de Pesquisa Fred Hutchinson; e a bióloga molecular Alina Chan, do Instituto Broad, os quatro últimos nos EUA. Chan é uma jovem pesquisadora que se tornou uma ativa detetive da origem da pandemia. A cientista já assinou uma carta aberta enviada em 4 de março a veículos de comunicação internacionais, entre eles o EL PAÍS, para exigir “uma investigação forense internacional completa e sem restrições”.

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