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Morte “higiênica” e “escondida” por covid-19 agrava a epidemia silenciosa da dor

Duas pesquisas apontam que cada óbito afeta uma média de nove parentes diretos, gerando uma nova onda de desafios para a saúde da população

Coronavirus
Enfermeira atende um paciente internado na UTI do Complexo Hospitalar de Navarra, na Espanha, em 15 de abril.Jesús Diges (EFE)
Raúl Limón

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Os mortos por covid-19 se tornaram um número a mais. Suas cifras, sem imagens e sem referências biográficas, acompanham diariamente as de contagiados, hospitalizados, internados em UTIs e vacinados. É o que o antropólogo Alberto del Campo, da Universidade Pablo de Olavide, em Sevilha (sul da Espanha), qualifica como “morte higiênica”, que, entre outras coisas, “esconde o terror e o sofrimento dos que morreram sozinhos”, segundo ele. Mas essas mortes têm consequências que vão além dela própria. Dois estudos diferentes, um da Universidade de Cambridge (Reino Unido) e outro da Estadual da Pensilvânia (EUA), concordam em calcular que, de cada paciente morto por covid-19, há um impacto direto sobre nove parentes próximos (avós, pais, irmãos, cônjuges e filhos), que são parte de uma crise sanitária, social e econômica mais ampla que a atribuída diretamente ao coronavírus. Segundo a conclusão do estudo norte-americano, publicado na revista PNAS, “poderiam conduzir indiretamente a uma maior mortalidade devido a causas não relacionadas com a pandemia: agravamento de condições crônicas não tratadas, abuso de álcool, autolesão, violência doméstica e outros fatores”.

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Para o antropólogo sevilhano, “a higienização da morte não é uma estratégia inocente, como tampouco é inocente a forma como o poder tenta camuflar a calamidade da pandemia, como se de uma catástrofe natural se tratasse. Se for apresentada como inevitável, então não há responsáveis”.

Del Campo reuniu em seu livro Pensar la pandemia (editora Dykinson, 2021) uma dúzia de trabalhos sobre os efeitos da covid-19 além da saúde e a economia. Em um destes estudos, Alejandro González Jiménez-Peña, especialista em filosofia da morte, acrescenta uma razão antropológica adicional para esta camuflagem da morte: “Antigamente ela era silenciada, era um tabu até ontem, antes da pandemia, e poderíamos continuar dizendo que é um tabu hoje em dia, apesar da pandemia”.

González relata como a “morte cotidiana”, a anterior à pandemia, havia se tornado uma “morte esquecida, escondida, distante, como assunto dos outros”. “Antes que a covid-19 irrompesse nas nossas vidas, ninguém se sentava num bar ao anoitecer e, ao mesmo tempo que bebia uma cerveja, falava e refletia sobre a morte (…); ninguém contava a uma criança o que era. E ninguém fazia isso porque era sentida como algo reservado para o futuro”, escreve.

Nessa sociedade, que o filósofo formado nas universidades de Sevilha e Málaga qualifica de “encobridora do óbito”, “irrompe a morte pandêmica, agressiva, esmagadora, que não diz respeito apenas aos outros, mas também a mim”. Entretanto, acrescenta: “Apesar de ter voltado às nossas vidas, continuamos a nos empenhar em ocultá-la”.

Mas essa ocultação, premeditada, segundo Del Campo, e também sociológica, de acordo com González, mascara uma realidade que precisa ser confrontada. Se, como conclui o trabalho da Universidade da Pensilvânia, o impacto de cada falecimento se estende a nove familiares diretos, os mais de três milhões de mortes atribuídas à covid-19 no mundo até o momento se refletem em outras 27 milhões de vítimas adicionais, que, segundo o estudo, “criam uma nova onda de desafios para a saúde da população”.

Os estudos científicos demonstram que, “depois de experimentar a morte de um relacionamento próximo, os indivíduos correm um risco elevado de sofrer uma série de fatores de estresse negativos para o curso da vida e uma saúde piorada”. O trabalho aponta desde repetência escolar, rupturas sentimentais e perdas de apoio econômico e social até efeitos psicológicos. “As investigações futuras devem ter o cuidado de incluir o luto familiar como um possível antecedente de resultados adversos em múltiplos âmbitos e etapas da vida”, conclui o estudo.

Todas as mortes têm efeito nos familiares diretos. Mas nas causadas pelo coronavírus, o impacto é singular e maior. Entre as causas da especial incidência das mortes por covid, segundo o estudo, destaca-se que estas são “repentinas e imprevistas” frente a outras causadas por doenças mais prolongadas. Não se conta com um apoio familiar e social amplo, devido às medidas de confinamento, e o ritual depois da morte se vê afetado pela restrição no número de pessoas autorizadas nos sepultamentos.

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A cifra de impacto coincide com outra recentemente publicada por pesquisadores da Universidade de Cambridge no British Medical Journal (BMJ). Esse estudo aponta como vítimas colaterais, especialmente, “aqueles que tiveram que enfrentar mortes súbitas, inesperadas ou em UTIs, onde seus seres queridos sofreram sintomas graves, incluindo dificuldade para respirar e agitação ao final da vida”. “Pode haver uma epidemia silenciosa de dor que ainda não captamos”, admitiu um médico de medicina paliativa aos pesquisadores.

O estudo também coincide em que “as medidas de distanciamento social deixaram alguns morrerem sozinhos”, e afirma que “todos estes fatores significam que os riscos por lutos complicados se tornaram mais altos durante a pandemia”.

Segundo o estudo, as fórmulas de apoio por telefone ou videoconferência foram “uma faca de dois gumes”. Por um lado, aumentou algumas oportunidades de apoio ao luto às quais crianças e jovens foram mais receptivos. Entretanto, os responsáveis por cuidados paliativos as consideraram “exaustivas” e de “difícil manejo”.

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