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A rara síndrome que ataca algumas crianças um mês depois da covid-19

Pediatras espanhóis divulgam os dados mais completos já obtidos sobre uma estranha sequela do SARS-CoV-2, que causa uma inflamação crítica

Coronavirus niños
Uma mãe e seu filho esperam para serem atendidos na unidade pediátrica de covid-19 em Palma de Mallorca (Espanha), em outubro de 2020.CATI CLADERA (EFE)
Nuño Domínguez

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Um mês depois de estourar a primeira onda da pandemia de covid-19 na Espanha, pediatras de todo o país começaram a detectar casos de uma síndrome tão estranha que nem tinha nome. Já começava a ficar claro que o coronavírus SARS-CoV-2 causava uma doença grave, sobretudo em idosos ou pessoas com doenças prévias. Por isso era tão raro encontrar crianças que, entre quatro e seis semanas depois de serem infectadas, quando já pareciam completamente curadas, adoeciam novamente apresentando febre persistente, inflamação generalizada e outros sintomas que causavam sério risco à sua vida.

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“Eram garotos de 8 a 14 anos que chegavam com uma forte dor abdominal e febre de vários dias”, recorda Alberto García-Salido, pediatra da UTI do Hospital Niño Jesús, em Madri. “Não tinham sintomas respiratórios como os adultos. A primeira coisa em que pensamos era apendicite; depois, que se tratava de uma síndrome inflamatória por uma infecção bacteriana”, conta.

Os pacientes apresentavam também olhos vermelhos, fraqueza, febre persistente, náuseas, vômitos e pressão baixa. Em questão de dias, a situação podia se complicar, obrigando a internar essas crianças na UTI. Embora o quadro pudesse afetar todos os principais órgãos, a maioria apresentava complicações cardíacas. Num primeiro momento se pensou na chamada doença de Kawasaki, uma enfermidade infantil sem causa conhecida, que causa inflamação dos vasos sanguíneos. Depois se entendeu que se tratava de uma nova afecção relacionada ao coronavírus SARS-CoV-2. Era um conjunto de sinais e sintomas, mais do que uma doença concreta, o que os médicos chamam de síndrome.

A Organização Mundial da Saúde batizou essa nova doença em maio, diante de uma crescente lista de casos no Reino Unido, EUA, França e Itália: chamou-a de síndrome multissistêmica inflamatória pediátrica (MIS-C, na sigla em inglês). Desde então, muitos médicos se dedicam a estudar essa estranha síndrome, mas ainda não estão claras suas causas nem os fatores que determinam que uma criança, cerca de um mês depois de passar quase sem sintomas pela covid-19, possa adoecer a ponto de quase morrer.

“Estamos perante uma afecção pouquíssimo frequente”, ressalva Alfredo Tagarro, pediatra do Hospital Infanta Sofía, de Madri, e coordenador de um cadastro nacional sobre esta novo síndrome infantil. Em um estudo que acaba de apresentar no Congresso sobre o Retrovírus e Infecções Oportunistas, sua equipe analisou dados de 52 hospitais espanhóis. Desde o começo da pandemia, foram detectados apenas 90 casos de MIS-C no país europeu, o que representa 0,02% de todas as infecções registradas em pessoas de 0 a 18 anos, segundo Tagarro.

A MIS-C é a mais grave complicação pediátrica relacionada ao coronavírus a ser registrada nesta pandemia, tornando-se a principal causa de internações em UTIs infantis. Entre os 90 casos registrados houve duas mortes, ambas de crianças com doenças pré-existentes.

O período de latência entre a infecção e o surgimento da síndrome é muito variável, podendo chegar a quatro meses, segundo Cinta Moraleda, pediatra do Hospital 12 de Octubre, em Madri, e uma das coordenadoras do estudo. “Estamos tentando averiguar por que isto acontece, qual é o mecanismo imunológico. Por enquanto consideramos que a infecção pelo SARS-CoV-2 funciona como o gatilho de uma arma que faz a resposta imunológica disparar em pacientes que têm uma predisposição”, ressalta.

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Em outros países, a prevalência dessa estranha síndrome é similar à da Espanha. Há tão poucos casos nesse país europeu que se torna muito difícil extrair conclusões válidas estatisticamente, inclusive para saber se afeta mais meninos que meninas (62% dos casos observados envolvem crianças do sexo masculino). Todas as complicações detectadas parecem responder a uma mesma causa: uma reação descontrolada do sistema imunológico em decorrência do vírus. É algo muito semelhante ao que acontece nos pacientes mais velhos, a chamada tempestades de citocinas, que causa a covid-19 em sua forma grave e pode acabar com a vida do paciente.

Sabe-se que as crianças são infectadas pelo coronavírus tanto quanto os adultos, mas sofrem muitos menos os sintomas da covid-19. A reação do organismo contra uma infecção tem dois grandes braços. Um é o inato, a primeira linha de resposta, e o outro é o adaptativo, porque inclui moléculas especializadas, como os anticorpos e os linfócitos, capazes de neutralizar o SARS-CoV-2 e eliminar as células infectadas. Nas crianças, a reação inata é muito mais ativa que nos adultos, o que pode explicar por que elas barram a infecção antes do surgimento de complicações ou mesmo de sintomas leves.

No caso do MIS-C, essa reação imunológica inata é defeituosa. Em lugar de conter o vírus de forma efetiva, o organismo produz uma inflamação generalizada que pode atacar pulmões, fígado, olhos, cérebro e, sobretudo, o coração. É possível que o vírus fique escondido em algum órgão e ressurja após algumas semanas. Há dados que sustentam essa hipótese. “Um mês depois da infecção, só 15% das crianças têm um exame PCR positivo”, explica Tagarro. “Já entre as crianças com risco de MIS-C, essa percentagem sobe a 45%”, acrescenta.

Os médicos tratam essa síndrome com corticoides, para sufocar a resposta imunológica exacerbada, e com imunoglobulina intravenosa, que contém anticorpos. “Agora que já sabemos o que estamos enfrentando, começamos a aplicar o tratamento assim que estabelecemos um vínculo com o coronavírus, e a resposta é muito rápida, com uma melhora clara em apenas 12 horas”, explica García-Salido. “Na imensa maioria dos casos a síndrome é curada e não deixa sequelas”, destaca.

A síndrome em crianças é semelhante às complicações pós-covid já conhecidas em adultos. Em todo caso, a mortalidade associada é muito baixa, inferior a 2% dos casos, recorda Federico Martinón-Torres, pediatra Hospital Clínico Universitário de Santiago de Compostela (Espanha). A situação, diz, era muito pior na primeira onda do que na segunda e na terceira, quando a comunidade médica já está de sobreaviso. “Agora já andamos com a pulga atrás da orelha”, explica. “Mas, embora se trate de uma síndrome muito pouco comum, ela revela a importância de vacinar também as crianças”, conclui.

A equipe de Tagarro desenvolveu um sistema on-line para calcular o risco de sofrer esta síndrome. Baseia-se em marcadores que são frequentes, como, por exemplo, a alta concentração de proteínas inflamatórias no sangue, a falta de glóbulos brancos e a anemia.

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