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Um presente envenenado da mãe natureza

Os Governos ocidentais minimizaram os riscos da covid-19 e da experiência adquirida na China, um erro que pode ser medido em vidas humanas

Uma mulher jovem, no pavilhão 5 do hsopital de campanha do Ifema, em Madri, em março de 2020.
Uma mulher jovem, no pavilhão 5 do hsopital de campanha do Ifema, em Madri, em março de 2020.Pedro Armestre
Javier Sampedro

Vivemos em tempos de exaltação da natureza. As catástrofes ambientais e climáticas produzidas pela voracidade humana e um modelo de progresso baseado no crescimento perpétuo persuadem cada vez mais gente a olhar para trás, para tempos remotos e legendários em que o Homo sapiens e o planeta que o viu nascer coexistiam em paz e harmonia em um paraíso terreno perfeito. O rótulo de “natural” e seus acólitos —bio, eco, orgânico, macrobiótico, detox— se tornou uma estratégia de marketing vencedora, apesar de ninguém saber muito bem o que esses adjetivos pomposos significam. Nossa única fuga, dizem os novos teólogos panteístas, é retornar àquele estado primigênio e impoluto de conexão íntima com a mãe Terra. Mas a natureza também nos deu a covid-19, um presente envenenado que, pela primeira vez, não merecíamos.

Steven Pinker costumava dizer que o mais pernicioso dos psicopatas pode assassinar 10 ou 20 pessoas, mas que para matar um milhão a psicopatia não é suficiente: também é preciso ideologia. Ele se referia a Hitler e Stalin, dois psicopatas assassinos não diagnosticados. Mas desta vez não precisamos da receita de Pinker para matar um milhão de pessoas. Bastou-nos o SARS-CoV-2, a última invenção nociva da mãe natureza “vermelha em dente e garra”, segundo a crua descrição de Tennyson. Foi também a natureza, o Deus dos panteístas, que criou a peste, a varíola, a gripe espanhola, a AIDS e as doenças genéticas, para citar outros exemplos marcantes. E a única ferramenta que temos contra a covid-19 é inteiramente um artifício do engenho humano, a ciência. A realidade não se ajusta às doutrinas teológicas.

Um milhão de mortos. Isso se diz rapidamente. Há poucos meses, essas pessoas viviam suas vidas angustiadas pela artrite, a hipoteca ou o desemprego, talvez afligidas por uma biografia sem muito sentido, talvez contentes por seus privilégios, eufóricas ou desesperadas. O que poucos esperavam é que um vírus iria matá-las, um mero punhado de átomos sem religião ou ideologia, um quase nada que só existe pelo mero fato de que pode existir, de que a física e a biologia o tornam possível, e que apesar de tudo matou um milhão de pessoas com uma eficácia portentosa e perturbadora. Parece incrível.

E exatamente isso, não acreditar, foi o que quase todo mundo fez em dezembro, e em janeiro, e em fevereiro e até bem entrado março. Digo “quase todo mundo” porque os virologistas, epidemiologistas e outros cientistas especializados vinham nos alertando há décadas que isso, ou algo muito parecido com isso, iria acontecer mais cedo ou mais tarde. É verdade que ninguém podia saber a data exata ou o vírus específico que causaria a próxima pandemia. O principal suspeito, na verdade, não era um coronavírus, mas um vírus de gripe, e havia boas razões para isso. A chamada gripe espanhola de 1918 matou 50 milhões de pessoas –mais do que a Grande Guerra que terminou naquele mesmo ano– e houve duas outras pandemias de gripe no século 20, embora não tão graves. O açougueiro acabou sendo finalmente um coronavírus, primo do SARS de 2002 (agora renomeado SARS-CoV-1), que era 10 vezes mais mortal do que o atual SARS-CoV-2, mas se propagava muito menos.

Poucos políticos que estavam no cargo em janeiro de 2020 deviam se lembrar daquele acontecimento de 18 anos atrás, não falemos da gripe espanhola de 1918, porque o fato é que os Governos ocidentais se fizeram de desentendidos diante dos alertas que emanavam de Wuhan, China, silenciados inicialmente por Pequim, mas logo apoiados pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Quando a Itália já estava afetada a não mais poder, em Bruxelas continuavam discutindo sobre o 5G e a ética das redes sociais. Os Governos, incluindo o espanhol, começaram minimizando os riscos para o Ocidente, jogaram a experiência chinesa na gaveta de assuntos irrelevantes e a trancaram. Pouco depois se revelou o grande erro que isso significava. Um erro tão grande que pode ser medido em vidas humanas.

É possível que os políticos aprendam alguma vez que seu trabalho consiste em se colocar a serviço dos cidadãos. Até agora só aprenderam a dizer isso, não a fazer. Tivemos que suportar nesses meses alguns espetáculos vergonhosos, impertinentes e cansativos oferecidos por nossos governantes, diatribes tão desafinadas que dois segundos de escuta bastam para desligar a tela. Menção à parte merece a estupidez dos dois nacionalismos mais empedernidos na Espanha, o catalão e o madrilenho, que preferem antes ver o colapso dos seus sistemas de saúde pública do que admitir que precisam da ajuda do Governo e do resto das comunidades autônomas. Suas mentiras fazem corar de tão evidentes, exceto seus acólitos que vivem trancados em câmaras de eco, onde só ouvem o que querem ouvir. Olhar para outros países não melhora muito o quadro.

Também dá pena o nacionalismo em torno das vacinas, segundo o qual cada pedaço do mundo luta por suas doses com orelheiras tão espessas que os impedem de ver até mesmo seus vizinhos mais próximos. Dão pena os antivacinas, conscienciosamente desinformados por xamãs e vigaristas, e que nesse ritmo constituirão um sério obstáculo às campanhas de imunização. Dão pena os líderes que se gabam do poderio de sua saúde pública enquanto cortam seus recursos e a jugulam. Mas um milhão de pessoas morreram e, por enquanto, nossa dor deve ser reservada a elas. Que massacre. Que horror.

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