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“Se há vida em Vênus, também existirá em muitos outros lugares”

Astrofísica portuguesa Clara Sousa e Silva é uma das responsáveis pelo estudo que detectou em Vênus um gás que acham que pode ser produzido por micróbios

A astrofísica Clara Sousa e Silva do Instituto Tecnológico de Massachusetts segura uma maquete da molécula da fosfina. No vídeo, cientistas encontram possíveis sinais de vida em Vênus.Vídeo: Melanie Gonick | EPV
Nuño Domínguez
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Um jornalista definiu o trabalho de Clara Sousa e Silva como “detectora de puns de alienígenas”; algo muito preciso, como ela mesma afirma. A astrônoma portuguesa de 33 anos conta que na maior parte de sua vida adulta esteve envolvida em procurar marcadores de vida em planetas muito, muito distantes. Em muitos deles pode existir oxigênio, metano, carbono e outros compostos essenciais à vida e derivados dela. Mas todos esses biomarcadores não são exclusivos dos seres vivos. A geoquímica de um planeta inerte também pode gerá-los. Baseado neles nunca será possível saber si há algo vivo neles ou não.

É aqui onde entra o composto predileto de Sousa e Silva: a fosfina —com nome oficial fosfano—, um gás que na Terra é produzido por micróbios associados à decomposição e à morte. “Alguém comparou o odor desse gás com o de fraldas sujas de uma cria de Satanás”, diz em uma entrevista virtual. Sousa e Silva pertence à equipe de Sara Seager no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), cujo objetivo é estudar todos os possíveis compostos químicos na atmosfera de um planeta que indicariam a presença de seres vivos. De acordo com vários estudos prévios desse grupo, se há fosfina em um planeta rochoso e de temperatura moderada, há vida.

Em 2018, Jane Greaves, astrônoma da Universidade de Cardiff (Reino Unido), encontrou rastros de fosfina em Vênus pela primeira vez. Estava há dois anos fazendo observações. Mas os resultados não eram concludentes. Greaves entrou em contato com a equipe do MIT, que havia feito vários trabalhos teóricos sobre esse gás como biomarcador, e juntos prepararam uma nova observação com um telescópio mais potente, o ALMA do deserto do Atacama. Os resultados chegaram em 2019 e foram publicados hoje. “O sinal de fosfina era 15 vezes mais potente do que o ruído de fundo”, lembra Sousa e Silva. A pandemia de covid-19 freou suas pesquisas.

Pergunta. Em seu estudo, quão perto estão de dizer que há vida em Vênus?

Resposta. Baseados nos conhecimentos que temos de química, física, de Vênus, e de espectroscopia, a explicação mais plausível para a detecção que fizemos é que há fosfina. Também tenho confiança de que a explicação mais plausível para sua presença, por mais louco que possa parecer, é que há vida. Mas uma afirmação extraordinária precisa de provas extraordinárias e por enquanto não as temos. Sequer entendemos Vênus profundamente. Precisamos observar mais aspectos da fosfina para corroborar que se trata desse composto. Esse é nosso primeiro problema. E depois será preciso trabalhar muito até confirmar que sua origem é a vida.

P. Como essa descoberta deve ser interpretada?

R. Todo mundo deve ser cético; eu sou. Queremos que a comunidade científica analise e nos explique em que falhamos, se é que o fizemos. Eu venho estudando a fosfina durante a maior parte de minha vida adulta. Depois desses anos não encontramos outra explicação para sua presença nas quantidades observadas. Analisamos todas as possibilidades sem encontrar outra explicação.

P. Por que há uma conexão tão clara entre este gás e a vida?

R. A fosfina é uma molécula horrível que mata interferindo com o metabolismo do oxigênio. Na Terra, a imensa maioria da fosfina é produzida por micróbios anaeróbios. Não é tóxica para eles porque não precisam de oxigênio para viver. Isso me pareceu espantoso, que exista toda essa vida que tenha um cheiro horrível e que poderia ser um marcador de vida e planetas onde quase não exista oxigênio. Durante a maior parte da história da Terra houve vida sem oxigênio. Por que então descartar a possibilidade de vida em planetas sem oxigênio?

P. Como se comparam a Terra e Vênus?

R. A pressão e a temperatura na atmosfera de Vênus são muito adequadas à vida. Além disso a atmosfera protege da radiação solar e deixa passar um pouco de energia para poder usá-la. Na Terra há regiões muito mais hostis onde há vida. Mas Vênus é especial e não habitável porque é extremamente ácido. A acidez de Vênus é muito mais alta do que os lugares mais ácidos da Terra. Isso significa que se existe vida nesse ambiente precisa ser baseada em uma bioquímica totalmente diferente da que conhecemos, uma vida que não seja incompatível com o ácido sulfúrico, por exemplo. Essa é minha esperança para os “venusianos”.

P. Saturno e Júpiter contêm fosfina e não abrigam vida. Por que Vênus poderia?

R. Nesses dois planetas a fosfina é produzida no coração do planeta, onde há calor suficiente e muita pressão para fazer com que o fósforo se ligue ao hidrogênio, dois compostos quase sem compatibilidade em condições normais. Depois a fosfina sobe e chega às camadas exteriores da atmosfera, que é onde a observamos. Até hoje a fosfina só havia sido encontrada nos gigantes gasosos e na Terra, e nesta está associada à vida. Agora a pergunta é se em Vênus se deve a um fenômeno geoquímico exótico que desconhecemos ou à presença de vida.

P. Como é possível confirmar que há fosfina em Vênus?

R. Minha tese consistiu em caracterizar a fosfina e descobri que há mais de 16 bilhões de estados em que pode ser observada. Por enquanto só pudemos ver um deles. Para confirmar essa observação precisamos ver mais estados. Essas observações foram feitas no espectro de luz das micro-ondas. Não conhecemos nenhuma outra molécula que emita nesse comprimento de onda e com essa intensidade. A fosfina é a explicação mais plausível, mas deve ser confirmada. Agora pretendemos observar fosfina no espectro infravermelho. Para isso queremos usar IRTF em Mauna Kea e o projeto SOFIA, um avião Boeing que leva um telescópio e chega às camadas mais altas da atmosfera para realizar observações. Os dois projetos foram aceitos, mas até agora não pudemos realizá-los pela pandemia. O instrumento que deve ser usado em Mauna Kea é da Universidade do Texas e alguém dessa instituição precisa ir ao Havaí para preparar os instrumentos e calibrá-los, e nesse momento ninguém do Texas irá ao Havaí, passar a quarentena, subir ao telescópio e depois passar outra quarentena. Todos temos famílias e prioridades e essa não é de maneira nenhuma a mais urgente. A próxima data possível é janeiro de 2021.

P. Se há vida em Vênus, é possível capturá-la e estudá-la?

R. Se há fosfina, como demostramos que se deve à presença de vida? Isso é muito mais difícil. Por enquanto conseguimos provar tudo o que não é: não se deve a relâmpagos, não são meteoritos, não é um processo fotoquímico, não é vulcanismo. Mas precisamos continuar excluindo possibilidades. Outra de minhas intenções é tentar fazer um mapa de como a fosfina está distribuída na atmosfera de Vênus. Se muda durante o dia e a noite pelo ciclo solar, o que seria de se esperar se a fonte são formas de vida. Também se há ciclos estacionais, o que também seria compatível com a presença de vida. Em última instância, até irmos lá para recolher amostras precisaremos continuar sendo céticos. Essa seria uma missão muito cara e longínqua, talvez seja feita em algum momento.

P. É possível uma missão robótica capaz de demonstrar que há vida sem qualquer sombra de dúvida?

R. A única outra medição de fósforo em Vênus foi feita pela sonda Vega. Apareceu mais ou menos no ponto em que agora nós vemos a fosfina. A sonda detectou compostos de fósforo, mas não tinha a tecnologia necessária para dizer quais eram exatamente. Mas é muito controverso porque muita gente acha que esse fósforo vinha da própria nave ao se desintegrar. Se agora tentarmos enviar uma missão que não chegue à superfície, e sim às nuvens de sua atmosfera, precisaríamos somente de uma nave capaz de suportar a acidez. Não é algo trivial, mas pode ser feito. O ideal seria fazer as análises in situ porque se há vida em Vênus não deveríamos trazê-la à Terra. Seriam formas de vida que se adaptaram para viver em um ambiente muito hostil e provavelmente são muito tóxicas e perigosas para nós.

P. Que implicações essa descoberta terá se for confirmada?

R. Se for vida, muda tudo. Não significa somente que não estamos sozinhos. Também quer dizer que se há vida na Terra e em Vênus, a vida é muitíssimo mais comum do que pensávamos. Talvez a presença de vida no Universo seja inevitável. Isso pode significar que há centenas, milhares de formas diferentes de bioquímica por toda a galáxia, incluindo os sistemas solares mais próximos ao nosso. Isso me enche de esperança. Se há vida em Vênus, também existirá em muitos outros lugares.

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