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Hugo Sigman, o homem que vacinará a América Latina contra a covid-19

Diretor-executivo do grupo Insud começou como empresário farmacêutico, mas ampliou seus negócios ao mundo editorial e à produção cinematográfica

Enric González
Hugo Sigman, durante uma cerimônia em Buenos Aires, em 2017.
Hugo Sigman, durante uma cerimônia em Buenos Aires, em 2017.Ricardo Ceppi (Getty Images)

Hugo Sigman vai produzir a vacina latino-americana. Sem esperar por isso, o empresário argentino se encontra em plena batalha contra o coronavírus: uma de suas fábricas produzirá em Buenos Aires, para todo o subcontinente, a vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford e pela farmacêutica AstraZeneca. Sigman, médico psiquiatra, magnata da biotecnologia, produtor de grandes sucessos cinematográficos e editor de Le Monde Diplomatique no Cone Sul, reencontra-se na “operação vacina” com um velho amigo, o bilionário mexicano Carlos Slim. “Tudo isto surge de acordos entre empresas privadas”, observa. No Brasil, a vacina Oxford-AstraZeneca está sendo testada por meio de uma parceria com a Unifesp.

O Hugo Sigman de meio século atrás, militante do Partido Comunista Argentino, não teria gostado de ver “tudo isto”. “A ciência no nosso país esteve muito ideologizada e participei desse setor que não queria nem saber do setor privado”, diz por videoconferência de Madri, onde reside a maior parte do ano. Nasceu em Buenos Aires em 1º de janeiro de 1944, formou-se em Medicina em 1969 e depois se especializou em psiquiatria. Em 1976, após o golpe militar, fugiu para a Espanha e encontrou trabalho no Hospital Clínico de Barcelona. Pouco depois, fundou com sua esposa, Silvia Gold, doutora em Bioquímica, a empresa Chemo, com 400.000 dólares emprestados pelo sogro. Foi a origem do Grupo Insud.

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Em 20 de fevereiro, o presidente Alberto Fernández inaugurou em Garín, perto da cidade de Buenos Aires, uma fábrica da sociedade mAbxience, filial do Grupo Insud. Seu objetivo era produzir anticorpos monoclonais para tratamentos contra o câncer. Ninguém deu muita importância ao assunto. E ninguém, nem mesmo Hugo Sigman, imaginou que a fábrica de Garín viria a ser uma peça-chave dentro de uma negociação de enorme relevância.

Àquela altura, a covid-19 começava a se espalhar pelo mundo. Em 11 de março de 2020, três semanas depois da inauguração da fábrica argentina da mAbxience, a Organização Mundial da Saúde descreveu a doença como pandemia. “A Universidade de Oxford trabalha há anos com um modelo de vacina obtido a partir da clonagem de um tipo particular de adenovírus de chimpanzé”, explica Sigman, por isso estava muito adiantado no desenvolvimento de uma vacina contra a covid-19. O gigante farmacêutico AstraZeneca, com sede em Londres, entrou em contato com Oxford.

“Não conheço os detalhes do contrato entre a AstraZeneca e Oxford”, diz Sigman. “Mas até onde eu sei a AstraZeneca decidiu que, enquanto a pandemia durar, venderá a vacina sem margem de lucro e oferecerá um fornecimento universal, assegurando pelo menos 20% das necessidades de cada país”. Havia outro detalhe: a AstraZeneca se comprometia a começar a fabricar quando a vacina ainda estivesse na fase 3, de provas, para ganhar tempo; o risco consistia em que, se a vacina não superasse essa fase, seria preciso destruir o que já foi fabricado.

A AstraZeneca procurou filantropos dispostos a ajudar nos enormes custos de produção. “Encontrou-os nos Estados Unidos, Europa, Índia e China, mas faltava a América Latina. Através da Fundação Gates entraram em contato com Carlos Slim, que se mostrou disposto a dar o dinheiro [a soma não foi divulgada] com a condição de que a vacina para a América Latina fosse fabricada no próprio continente”, prossegue o empresário argentino. A fábrica escolhida foi a do Grupo Insud nos arredores de Buenos Aires. Aí entra Hugo Sigman na operação. “Tínhamos as instalações adequadas, tínhamos a experiência industrial necessária e, além disso, oferecemos algo importante: suspender outras produções para evitar o risco de uma contaminação cruzada”, diz Sigman, esclarecendo que a decisão não coube ao seu amigo Slim, e sim à AstraZeneca, e surgiu de “acordos entre empresas privadas, sem intervenção de governos”.

“O mecanismo será o seguinte: fabricaremos o princípio ativo da vacina, o venderemos à AstraZeneca e esta entregará o produto à empresa mexicana Liomont, que o envasilhará e o devolverá à AstraZeneca, para que a empresa farmacêutica o comercialize no continente”, explica Sigman. O preço final da vacina para a América Latina será muito inferior ao das demais vacinas.

O paradoxo argentino

A eleição de uma empresa argentina como centro de produção continental reflete um paradoxo do país: alto nível científico e graves dificuldades econômicas. “A indústria biotecnológica argentina tem uma história muito extensa e o fato de não ter virado um sucesso mundial não se deve, acredito, a razões técnicas, e sim à falta de previsibilidade. Não há políticas econômicas, fiscais ou tarifárias estáveis, e assim não é possível financiar projetos em longo prazo”, lamenta-se o empresário. A mAbxience tem uma fábrica em León (Espanha) “e sem ela teria sido quase impossível para nós encarar este projeto”, diz. “O que posso afirmar com honestidade é que o nível científico argentino é muito alto, prova disso é que dois diretores da fábrica espanhola são argentinos”, observa.

Centenas de jovens cientistas argentinos estão atualmente indo embora do país ou cogitando partir, devido a problemas econômicos e às dificuldades em trabalhar com pesquisa. Hugo Sigman fundou e presidiu a Câmara Argentina de Biotecnologia, que agrupa setores como farmácia, veterinária, alimentação, diagnóstico e exploração florestal (o Grupo Insud tem presença em todos eles), e impulsionou um sistema de ajudas. “Cinco empresas contribuíram com 250.000 dólares cada uma e escolhemos cinco projetos de uma lista de 300 para facilitar sua conversão em empresa. Hoje já são 21 start-ups, seis das quais recebem investimentos do exterior, e 13 das quais foram fundadas por mulheres”, diz. “Apesar de tudo, continua existindo talento científico no país.”

Sigman e sua esposa já não administram diretamente o Grupo Insud. Dois de seus filhos, o mais velho e o mais novo, se ocupam disso. O do meio é físico e trabalha em neurociência. “As empresas familiares exigem disciplina, e a gente sabe que não deve se meter no trabalho dos filhos, mas às vezes me meto, e, claro, me recriminam por isso”, sorri Sigman, que diz se divertir muito “com outras coisas”. Como a produtora de cinema K&S, que fundou com seu amigo Óscar Kramer, já falecido. Ela tem parcerias com a El Deseo, produtora dos irmãos Almodóvar, e está por trás de sucessos argentinos como O Clã, Relatos Selvagens e, mais recentemente, A Odisseia dos Tontos.

Entre as “outras coisas” figura também a editora Capital Intelectual e a publicação do Le Monde Diplomatique em castelhano para o Cone Sul. “Nunca abandonei minhas convicções”, afirma Sigman, “Continuo acreditando que o mundo pode ser melhor. O que mudei foi o método para conseguir, porque quando jovem acreditava que o Estado devia resolver tudo, e quando comecei a viajar percebi que isso não era realista: vi o fracasso econômico dos países socialistas”. Na Espanha, diz, tornou-se socialdemocrata.

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