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Comissão abre as portas à modificação genética de bebês para evitar doenças mortais

Grupo internacional de especialistas adverte que as ferramentas ainda não são seguras, mas traça um possível roteiro para as primeiras aplicações

O cientista chinês He Jiankui, responsável pelo primeiro nascimento de bebês geneticamente modificados, num congresso em Hong Kong.
O cientista chinês He Jiankui, responsável pelo primeiro nascimento de bebês geneticamente modificados, num congresso em Hong Kong.Kin Cheung (AP)
Manuel Ansede

A fronteira entre o aceitável e o inaceitável nunca está quieta. Há poucas décadas, a possibilidade de transplantar um rim ou um coração gerava dilemas morais e evocava a imagem tétrica do doutor Frankenstein. Hoje cerca de 140.000 órgãos são transplantados por ano no mundo, e o imoral é não fazê-lo quando há necessidade. Uma comissão científica internacional tenta agora traçar uma linha entre o admissível e o inadmissível na modificação genética dos filhos, atualmente proibida por um tratado internacional assinado por cerca de 30 países, entre eles a Espanha. O grupo de especialistas adverte num relatório que as atuais ferramentas para modificar o DNA são “ainda” inseguras, mas deixa a porta aberta à futura, talvez iminente, edição genética legal de seres humanos em determinadas circunstâncias.

A comissão internacional – formada por delegados da Academia Nacional de Medicina dos EUA, da Academia Nacional de Ciências dos EUA e da Royal Society do Reino Unido – pede “um amplo diálogo social antes que algum país tome uma decisão”, mas ao mesmo tempo elabora um “possível roteiro” para o uso dessas técnicas em centros hospitalares. A comissão recomenda que “os usos iniciais das modificações hereditárias do genoma humano, se um país decidir permiti-los”, se limitem a tentar evitar doenças raras muito graves originadas por uma única mutação no genoma, como a doença de Tay-Sachs, um transtorno hereditário pelo qual as crianças morrem antes dos quatro anos de idade.

O cientista chinês He Jiankui anunciou em 2018 abomináveis experimentos que levaram ao nascimento, pela primeira vez, de três bebês modificados geneticamente. O suposto objetivo de He Jiankui era que as crianças fossem imunes ao vírus da aids, uma operação perigosa e totalmente desnecessária, já que os filhos de mães com HIV já nascem livres do vírus graças aos fármacos antirretrovirais. O escândalo provocou a formação desta Comissão Internacional sobre o Uso Clínico da Edição Genômica da Linha Germinal Humana. Tais modificações genéticas – realizadas em óvulos, em espermatozoides ou nos próprios embriões quando são apenas uma célula – pedem ser herdadas e passariam às gerações seguintes.

“A sociedade deve se perguntar até onde quer chegar e onde está a linha entre a cura e o melhoramento da espécie humana. Evitar o nanismo, por exemplo, seria cura ou melhoramento?”, pondera o jurista Federico de Montalvo Jääskeläinen, presidente do Comitê de Bioética da Espanha, o máximo órgão consultivo do Governo espanhol no âmbito da ética científica. O próprio relatório da comissão reconhece que a ideia de modificar geneticamente os filhos pode lembrar os movimentos eugenistas, que há um século buscavam o aperfeiçoamento da espécie humana. “Se algum país decidir autorizar modificações hereditárias do genoma humano, é fundamental evitar os preconceitos e a discriminação”, diz a comissão.

O novo documento propõe a criação de um organismo internacional que vigie o possível uso clínico da edição genética humana. A entidade também serviria para analisar futuras aplicações que extrapolem a prevenção de doenças mortais. O geneticista Lluís Montoliu, do Centro Nacional de Biotecnologia (CSIC) de Madri, aplaude o relatório, com exceção deste último detalhe. “Isso é o mais polêmico. Refere-se ao uso da edição hereditária do genoma humano para melhorar ou embelezar, ou para adquirir capacidades físicas ou psíquicas que façam com que as pessoas assim melhoradas tenham qualidades superiores às demais (super-homens ou supermulheres), na linha de pensamento da corrente filosófica do transumanismo”, afirma Montoliu.

“Este é o ponto mais complicado. Atualmente, sem que ainda esteja claro que a aplicação da edição hereditária do genoma humano é possível, considero obsceno pensar em aplicá-la para fins não terapêuticos”, afirma Montoliu, que preside Associação para a Pesquisa Responsável e a Inovação em Edição Genética (ARRIGE), com sede em Paris. “Acredito que isso deveria ser discutido apenas depois de termos resolvido e normalizado o uso terapêutico, que na minha opinião deve preceder qualquer uso adicional”, acrescenta o geneticista.

Para evitar doenças hereditárias letais já existe o diagnóstico genético pré-implantação, uma análise do embrião feita antes de sua transferência ao útero nas clínicas de reprodução assistida. O mecanismo é simples. Cada ser humano possui cerca de 25.000 genes, com duas cópias de cada: uma procedente do pai, a outra da mãe. Para sofrer a doença de Tay-Sachs, por exemplo, uma criança tem que herdar as duas cópias defeituosas do mesmo gene. Se só possuir uma cópia alterada de um de seus pais, viverá com normalidade. Mas se seu companheiro estiver nas mesmas condições, seus filhos terão 25% de possibilidade de ter a doença e morrer. Com o diagnóstico genético pré-implantação, é possível descartar os embriões afetados. A comissão internacional sugere que só se possa optar pela edição genética dos filhos se essa primeira opção falhar.

“Neste momento, não há evidências suficientes de que a técnica seja efetiva e segura. A linguagem que utilizamos ao falar da edição genética (cortar, colar, corrigir...) não ajuda a elaborar uma adequada percepção do risco”, adverte a médica Montserrat Esquerda, diretora do Instituto Borja de Bioética da Universidade Ramon Llull (Barcelona). “A edição genética de linha embrionária não é apenas um tema técnico ou biomédico; tem implicações sociais, antropológicas e éticas, que exigirão um amplo debate social, no qual o novo relatório não entra”, alerta. Os codiretores da comissão internacional – a geneticista Kay Davies e o bioquímico Richard Lifton – entregarão seu documento à Organização Mundial da Saúde (OMS), que, por sua vez, deve emitir outro relatório até o fim do ano.

O jurista Carlos Romeo é o único membro espanhol do Grupo Europeu de Ética da Ciência e das Novas Tecnologias, que assessora a Comissão Europeia. Sua equipe também prepara um documento sobre a possível modificação genética dos filhos. Romeo recorda que o debate já começou na década de 1990 com os tímidos avanços da engenharia genética, mas acelerou desde 2013 com progressiva adoção da nova técnica CRISPR, muito mais rápida e barata que as tecnologias anteriores de edição de genoma. “Quando [essa técnica] surgiu, dizia-se que era simples, segura e confiável, mas agora vemos que não é tão simples, nem tão segura e nem tão confiável”, diz o especialista em bioética.

Romeo, professor de Direito Penal na Universidade do País Basco, pede que as pessoas “não tomem atalhos e não cedam a chantagens pseudomorais de cientistas que dizem que querem salvar vidas, quando o que querem é ser os primeiros” a passar à história. “Precisamos de um grande debate social para ver o que consideramos adequado e o que consideramos não adequado na reprodução humana”, afirma.

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