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“É possível chegar a uma vacina em 15 meses, mas não significa que haverá quantidade suficiente para todos”

Federico Martinón-Torres, pediatra e membro do comitê consultor de vacinas da OMS, fala sobre os passos para obter uma vacina e alguns danos colaterais da covid-19

Federico Martinón-Torres, chefe do Serviço de Pediatria do Hospital Clínico Universitário de Santiago de Compostela.
Federico Martinón-Torres, chefe do Serviço de Pediatria do Hospital Clínico Universitário de Santiago de Compostela.Sergas
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Meio ano depois de o coronavírus chegar para monopolizar nossas vidas, aquele micro-organismo que saltou aos humanos e à fama mundial a partir de um mercado de Wuhan (China) tem recebido uma atenção científica sem precedentes. Sabe-se hoje muitíssimo mais que há alguns meses, mas os cientistas, acostumados às reviravoltas de roteiro nesta história, continuam falando com cautela do SARS-CoV-2.

Federico Torre (1971, Ourense, Espanha) é chefe do Serviço de Pediatria do Hospital Clínico Universitário de Santiago de Compostela (Galícia) e membro do comitê consultivo de vacinas da Organização Mundial da Saúde (OMS) na Europa, além de coordenar o centro colaborador da OMS para Segurança Vacunal de Santiago de Compostela. Nessa organização, junto a cientistas de todo o mundo, aconselha na orientação do desenvolvimento de vacinas contra o coronavírus, analisando os candidatos com mais potencial, criando ensaios clínicos que acelerem o progresso sem comprometer a segurança e trabalhando desde já para que, quando surgir essa ferramenta contra a pandemia, o acesso seja equitativo.

“Estamos transmitindo ao vivo o desenvolvimento clínico de vacinas, algo que nunca tinha acontecido”, diz, e acredita que isso esteja levando a interpretações dos resultados sem os critérios necessários para fazê-las corretamente. Ele pede que a sociedade confie nesta colaboração científica sem precedentes, mas também que tenha paciência, porque os resultados podem não chegar tão cedo quanto se disse em algum momento, e alerta que como efeito secundário da atual pandemia podem retornar patógenos que já acreditávamos controlados.

Pergunta. Há anos falava-se da possibilidade de uma grande pandemia, mas visto o desenrolar da reação internacional, parece que poucos países acreditavam totalmente que fosse uma ameaça real.

Resposta. A possibilidade de uma pandemia do ponto de vista da epidemiologia e da infectologia sempre esteve presente. Havia algumas mais previsíveis, como teria sido a própria gripe, mas também houve advertências anteriores com os coronavírus, com o da SARS e o da MERS. Na pandemia anterior que tivemos, a de gripe H1N1, a mortalidade não foi comparável.

Preocupa-nos que esteja ocorrendo uma redução da vacinação rotineira como consequência da covid-19, e doenças como o sarampo podem reaparecer

A OMS está há muito tempo falando da pandemia por uma doença X, uma pandemia por qualquer agente patogênico ainda não identificado. Há grupos de pesquisa que de fato se prepararam com essa filosofia, para que quando chegasse essa pandemia X já existisse o maquinário necessário para começar a preparar a vacina ou os tratamentos e os recursos de pesquisa. Por exemplo, o grupo de Oxford que está desenvolvendo uma vacina já tinha uma estratégia e um maquinário para começar a fazer pesquisa e desenvolvimento de vacinas. Nosso grupo, muito mais modestamente, também tinha previsto aplicar o conhecimento adquirido com outros agentes patogênicos para tentar triturar o problema com a mesma filosofia.

Mas não é o mesmo que uns poucos grupos ou umas quantas redes ou uns quantos agentes estejam preparados e que todo o sistema esteja. A abordagem de uma pandemia exige a abordagem sincronizada de muitos agentes em muitos níveis, não só científico e sanitário, mas também político e social. Nesse sentido ninguém estava suficientemente preparado, e estamos vendo que até nos países mais preparados o impacto está sendo elevado.

P. Qual tem sido o trabalho da OMS no âmbito das vacinas?

R. Há uma aposte em guiar o desenvolvimento ágil de vacinas. Em muitos níveis. Deseja-se garantir o fornecimento de todas as vacinas quando elas existirem, mas também garantir a vacinação com as que já existem, que não se veja interrompida. É algo que nos preocupa, porque está ocorrendo uma redução na vacinação rotineira como consequência da covid, não por antivacinas nem coisas semelhantes, e sim porque logicamente foram interrompidos muitos dos serviços, ou em alguns casos se comprometeu a cadeia de suprimento de vacinas.

Também se trata de guiar o desenvolvimento das novas vacinas. Primeiro através de grupos de especialistas que definiram as características que deveria ter uma vacina ideal contra a covid, num cenário perfeito e num cenário mínimo. O que é o mínimo que devemos pedir à vacina da covid para que a OMS lhe dê seu aval.

Depois, foram impulsionados grupos de trabalho coordenados por especialistas mundiais das diferentes áreas necessárias para desenvolver uma vacina, porque não basta ter a ideia, são necessárias também as ferramentas com as que você vai cria-las. Eu gero uma nova vacina, mas, por exemplo, como meço se essa vacina funciona bem ou mal, qual é o modelo animal ideal para provar essa vacina, quais são os marcadores de proteção?

Depois se criou um ensaio clínico com um desenho adaptativo (Solidarity trial) para que as vacinas que cheguem a uma fase avançada de ensaio clínico possam ser testadas numa rede mundial de instituições, para que se possam comprovar sua eficácia em um ensaio clínico global sem precedentes que poderia agilizar o desenvolvimento de novas vacinas, permitindo inclusive a comparação direta de vacinas candidatas.

A OMS estabeleceu uma eficácia mínima desejável de 50%. Uma vacina que não previna a transmissão, mas sim as formas mais graves da infecção, pode ser aceitável.

P. Você falou do risco de que certas doenças voltem por uma interrupção nas vacinações rotineiras.

R. O ponto de partida antes do início da covid já era delicado para certas doenças em todo mundo e também na Europa. Aqui, antes do coronavírus, um dos temas preocupantes era a redução na cobertura de vacinação contra doenças evitáveis pela imunização, em particular o sarampo. Estava ocorrendo um ressurgimento global do sarampo, e também na Europa, em países como a França, Itália, Reino Unido, países vizinhos ao nosso, similares à Espanha, embora aqui ainda não tenha ocorrido.

Se deixarmos de nos vacinar nos poremos em uma situação similar à de nossos vizinhos. Neste caso não é porque as pessoas não queiram se vacinar. Pode ser em parte pelo medo, em parte porque em princípio se pensou que talvez o confinamento não fosse tão prolongado, porque as pessoas tinham medo de ir às consultas de vacinação e os próprios profissionais limitaram o esforço de vacinação aos grupos prioritários. É uma combinação de fatores que deu lugar a reduções concretas na vacinação contra doenças rotineiras.

P. Que grau de proteção se consideraria suficiente para começar a aplicar a vacina contra o coronavírus?

R. A OMS estabeleceu uma eficácia mínima desejável de 50%. O fato, por exemplo, de que a vacina não prevenir a transmissão, mas se proteger das formas mais graves da infecção, pode ser aceitável. Há vacinas que funcionam assim. A vacina contra o rotavírus [que causa diarreias letais] é enormemente efetiva, evita inúmeras mortes a cada ano. O rotavírus mata uma criança menor de 5 anos a cada 50 segundos, e a vacina é tremendamente efetiva frente às formas graves da doença. A vacina não impede a infecção nem as formas leves de diarreia por rotavírus, mas impede que essa diarreia seja grave, com a mortalidade associada a isso. Algo assim poderia acontecer com a vacina do coronavírus, que não neutralize totalmente a enfermidade, mas previna as formas mais graves da enfermidade.

P. Que prazos lhe parecem razoáveis? Acredita que os que estão sendo oferecidos são otimistas demais?

R. Uma coisa é ter o candidato a vacina, outra é fazer o ensaio clínico, outra é licenciá-lo e outra é produzi-lo em uma escala suficientemente ampla para que chegue a todo mundo. Dependendo de a que você se refira, podem ser suficientes os 15 ou 18 meses de que todo mundo fala, mas que uma vacina como a de Oxford esteja disponível em 15 meses a partir do início da pandemia não significa que haja quantidade suficiente no canal de distribuição para que chegue a todo mundo. Temos o exemplo dos problemas de abastecimento com algo mais simples como as máscaras.

Os casos graves em crianças foram um número reduzido, e temos tratamentos e conhecimento para lidar com esse tipo de problema.

P. É possível que nunca se obtenha uma vacina, ou as características do vírus permitem ser otimistas? As últimas grandes pandemias mundiais de gripe não acabaram com uma vacina, e depois de quase 40 anos de pesquisa ainda não há vacina para o HIV.

R. É verdade que às vezes não é fácil encontrar vacinas, e isso pode ter a ver com como o vírus se comporta. Um estudo de quase 5.000 cepas virais que pré-publiquei com Antonio Salas, da Universidade de Santiago de Compostela, via uma enorme homogeneidade, em torno de 99,9%. Isto tem uma dupla interpretação. Poderia significar que o vírus é estável, que não é como o HIV, que pode ter uma variabilidade brutal inclusive dentro de uma pessoa, onde vai sofrendo mutações e surgem quase novas pseudoespécies. Mas também é importante ver não só o quanto ele muda, mas exatamente onde muda. Se a variação ocorrer na proteína S, com a qual o SARS-CoV-2 se ancora aos humanos, como é o lugar que serve de alvo para as vacinas, uma modificação dessa pequena parte pode lhe servir para escapar. É algo que não vimos já ter acontecido, mas não é garantia de nada.

P. Embora se saiba que as crianças são menos suscetíveis ao coronavírus, também se cogitou que pudesse provocar casos graves em alguns pacientes.

R. As crianças se infectam menos e têm uma resposta boa ao tratamento. Mas houve um número reduzido de casos de choque tóxico ou doença similar à de Kawasaki. Não se sabe exatamente se é uma coincidência temporal, se a SARS age como detonante, ou se é um efeito específico da infecção em crianças. Mas é preciso passar uma mensagem de tranquilidade. Foi um número reduzido de casos e temos tratamentos e conhecimento para lidar com esse de problema.

P. E, por último, em algum momento se falou das crianças como superdisseminadores. Sabe-se se é assim mesmo no caso do coronavírus?

R. Uma meta-análise do grupo de Russell Viner estimou que a probabilidade de uma criança se infectar é a metade que a de um adulto. São mais resistentes a se infectarem e, quando se infectam, o curso da enfermidade é mais benigno. Isto vemos na pesquisa espanhola de soroprevalência. Normalmente, as crianças desempenham um papel importante na transmissão de doenças infecciosas. Claramente é assim com a gripe, mas com as poucas evidências que temos com relação ao coronavírus, em surtos intrafamiliares, a criança não tem esse papel superdisseminador. Esta informação é importante na hora da normalização de atividade das crianças e da abertura de colégios.

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