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Os outros coronavírus que habitam entre os humanos

Todos os agentes patogênicos aparentados com o atual saltaram de animais para pessoas no último século

Trabalhos de desinfecção em um vagão do metro de Seul, na Coreia do Sul, depois do surto da MERS de 2015.
Trabalhos de desinfecção em um vagão do metro de Seul, na Coreia do Sul, depois do surto da MERS de 2015.KIM HONG-JI (REUTERS)
Miguel Ángel Criado

Contando com o causador da atual pandemia da Covid-19, a ciência já identificou e isolou sete coronavírus circulando entre os humanos. Todos saltaram de animais para pessoas em pouco mais de um século, mas os mais patogênicos emergiram nos últimos 20 anos. Ainda há milhares deles na natureza, a imensa maioria por descrever. Os últimos foram publicados há poucos dias.

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Pesquisadores do Instituto Smithsonian (EUA) anunciaram no começo de abril a descoberta de seis novos coronavírus em morcegos de Myanmar (ex-Birmânia). Durante dois anos, colheram amostras da garganta e do reto de quase 500 exemplares de uma dezena de espécies desses quirópteros. Também levaram a laboratório parte do guano (fezes acumuladas) depositado no chão das cavernas. Uma décima parte das amostras apresentou resultado positivo para seis vírus da família dos Coronaviridae. Todos eram novos para a ciência e, embora seus descobridores não acreditem que representem uma ameaça, ainda têm que estudá-los para determinar o risco de que possam saltar para os humanos.

Além do fato de seu descobrimento, os autores do estudo destacam o local onde ocorreu. As três cavernas onde as amostras foram colhidas não ficavam nas profundezas da selva, embora no passado talvez ficassem. A missão destes pesquisadores norte-americanos é parte de um projeto mais amplo chamado Predict, que busca antecipar-se à emergência de novas zoonoses (agentes patogênicos animais que passam a humanos). Nesta ocasião, as cavernas de Myanmar se encontravam em áreas de desmatamento recente causado pelo avanço humano.

“No mundo inteiro, os humanos estão interagindo com os animais com uma maior frequência. Por isso, quanto mais soubermos sobre estes vírus nos animais, o que provoca suas mutações e como se propagam para outras espécies, melhor poderemos reduzir seu potencial pandêmico”, dizia, em uma nota de sua instituição, o principal autor do descobrimento, o veterinário Marc Valitutto. Um estudo de 2017 estimou que só entre os morcegos há mais de 3.200 espécies de coronavírus.

Esse contato mais intenso poderia estar por trás do primeiro coronavírus que saltou de um animal para os humanos, ao menos até onde se sabe. Nos anos sessenta, a pesquisadora britânica June Almeida identificou os vírus HCoV-229E e HCoV-OC43. As primeiras letras se referem a coronavírus humanos e, depois do hífen, vem a denominação do vírus em si. Encontrou-os em pessoas que apresentavam sintomas típicos de um resfriado.

O HCoV-OC43 não saltou de nenhum morcego: vinha de muito mais perto, das vacas. Um grupo de cientistas holandeses conseguiu sequenciar seu genoma completo em 2005. Ao compará-lo com outros coronavírus, verificaram que tinha uma semelhança genética de 99,6% com um coronavírus bovino (BCoV). O relógio molecular de ambos, baseado fundamentalmente em sua taxa de mutação, e a distância genética sugerem que se separaram por volta de 1890. Na segunda metade do século XIX houve uma enorme pandemia de origem bacteriana entre as vacas. Seu sacrifício maciço pode, segundo os autores desse estudo, ter exposto os humanos ao BCoV. Seu impacto teria passado despercebido entre a pandemia de gripe daquele ano.

Os outros cinco coronavírus humanos já apareceram no século XXI. Dois deles só se manifestam com sintomas leves indistinguíveis do resfriado. De fato, junto aos dois identificados nos anos sessenta, provocam a cada inverno entre 10% e 30% dos resfriados, sendo a maioria dos acompanhados de diarreia. Um deles, o HCoV-NL63, foi identificado pela primeira vez em bebês holandeses em 2004. Naquele mesmo ano, um homem de 71 anos de Hong Kong foi o primeiro a ser detectado com o HCoV-HKU1. Estes coronavírus pouco patogênicos saltaram de animais, mas já não precisam mais destes para se propagarem.

“Estão plenamente adaptados aos humanos e podem circular entre a população continuamente”, conta Dong-Yan Jin, professor da Universidade de Hong Kong, que há anos estuda os coronavírus. “Observamos uma sazonalidade neles, com a maioria dos casos no inverno. No verão, ocultam-se em um reduzido número de pessoas, embora sua atividade seja reduzida”, acrescenta. Jin, como Valitutto, também considera que o crescente contato humano com os animais explica ao menos em parte a emergência dos coronavírus.

O primeiro coronavírus patogênico foi o da pandemia da SARS de 2002 e 2003. O caso zero parece se relacionar com o consumo de carne de um animal selvagem vendido em um mercado na China. Análises feitas pouco depois mostraram que 13% dos vendedores de animais e carnes dos mercados da província onde o surto começou tinham anticorpos contra o SARS-CoV. Dez anos mais tarde, a história da exposição animal se repetiu com o MERS-CoV, o coronavírus de maior letalidade (até 34,4% dos infectados morriam). Por sorte, depois que saltou dos camelos, sua transmissão entre humanos não se manteve. É uma de suas diferenças em relação ao atual SARS-CoV-2 que, sendo muito menos letal, tem a mesma alta transmissibilidade entre humanos que os coronavírus leves.

“Tanto o SARS1 como o SARS2 emergiram dos mesmos sarbecovírus [subgênero de coronavírus] que circulam entre os morcegos-de-ferradura, o que mostra que há vírus de morcegos que podem saltar aos humanos”, diz David Robertson, professor do Centro para a Pesquisa de Vírus da Universidade de Glasgow (Reino Unido). Mas não o fizeram nem direta nem imediatamente. Na primeira SARS, o animal intermediário do qual o vírus passou aos humanos pode ter sido a civeta-das-palmeiras, um pequeno carnívoro do sul da Ásia.

Embora vários estudos genéticos apontem o pangolim, o animal intermediário do atual coronavírus ainda não está claro. O reservatório natural são os morcegos, mas não é uma origem de anteontem. O vírus de morcego mais próximo geneticamente ao causador da pandemia é o RaTG13, identificado em 2013. Mas o estudo filogenético entre este vírus e o humano realizado por Robertson e seus colegas mostra que ambos divergiram de um ancestral comum entre 40 e 70 anos atrás. O pesquisador britânico não descarta que possa haver outro coronavírus de morcego mais próximo do humano que ainda não foi identificado.

À pergunta de por que ele surge agora, Robertson responde que simplesmente porque conseguiu. “Também há provas de estudos serológicos para outros vírus similares ao da SARS que passaram a humanos, o que sugere que também se produziram transmissões falhas”, diz. De fato, várias pesquisas, a mais recente publicada em setembro do ano passado, poucos meses antes da atual pandemia, apontavam infecções locais provocadas por coronavírus, mas que não foram além de alguns quantos casos.

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