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Dois cães, um gato e uma tigresa. O que se sabe sobre o contágio de coronavírus entre animais

Infecção comprovada de bichos de estimação no mundo ainda é muito pequena e não há evidências científicas sobre transmissão deles para humanos

Defensora de animais acaricia cachorro em Bogotá, na Colômbia.
Defensora de animais acaricia cachorro em Bogotá, na Colômbia.LUISA GONZALEZ (Reuters)
Manuel Ansede

O novo coronavírus já deu um triplo salto mortal no imaginário coletivo: de um morcego chinês teria passado ao pangolim, do pangolim ao ser humano e, em seu mais recente salto, do humano aos felinos e cães. É uma viagem verossímil, com vários pulos entre espécies em tempo recorde, mas a realidade é que os cientistas ainda não têm certezas. É apenas uma hipótese, como quase tudo o que cerca um vírus que há apenas três meses nem sequer existia oficialmente.

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Workers spray disinfectant in the Ceilandia metro station, amid coronavirus disease (COVID-19) outbreak, in Brasilia, Brazil April 7, 2020. REUTERS/Ueslei Marcelino
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O pangolim é a maior vítima do tráfico de fauna selvagem, principalmente na Ásia e na África. Nesses dois continentes há oito espécies diferentes de pangolim, duas delas em grave perigo de extinção, segundo a UICN: o pangolim-chinês (‘Manis pentadactyla’) e o pangolim-malaio (‘Manis javanica’). Esses pequenos mamíferos são conhecidos por sua armadura protetora, já que se envolvem sobre si mesmos formando uma bola quando se sentem ameaçados. Sua cobertura escamosa se destina principalmente à medicina tradicional chinesa em tratamentos contra diversas doenças, como asma, reumatismo e artrite. Além disso, sua carne é considerada uma iguaria em vários países asiáticos.
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A última parada confirmada no périplo do novo coronavírus pelo reino animal é uma tigresa malaia com tosse seca que no domingo deu resultado positivo no Zoológico do Bronx, em Nova York. “Parece que os felinos vão se mostrando sensíveis ao vírus, mas por enquanto é algo pontual”, tranquiliza Víctor Briones, do Centro de Vigilância Sanitária Veterinária da Universidade Complutense de Madri. Nos Estados Unidos já há mais de 330.000 pessoas com diagnóstico confirmado, mas apenas um animal de outra espécie: a tigresa do Bronx, acompanhada por outra meia dúzia de tigres e leões com sintomas, mas sem confirmação.

“A propagação atual da Covid-19 se deve à transmissão de humano para humano”, salienta a Organização Mundial da Saúde Animal (OIE, sigla de Organização Internacional de Epizootias, seu antigo nome), que investiga outros saltos entre espécies. Hong Kong comunicou em um primeiro momento dois casos caninos positivos —um pastor alemão e um lulu-da-pomerânia— depois de analisar 17 cachorros e oito gatos em lares vinculados a pessoas com a doença. Em 23 de março, as autoridades belgas também divulgaram o caso de um gato “suspeito" de sofrer uma infecção ativa. E em 31 de março novamente Hong Kong anunciou que um gato tinha dado positivo.

Com mais de 1,2 milhão de casos registrados em pessoas, a infecção só foi confirmada em dois cães, um ou dois gatos e uma tigresa. E não existe nenhum indício de que mascotes tenham transmitido o vírus. “Por conseguinte, não existe justificativa alguma para tomar medidas relacionadas aos animais de companhia que possam afetar seu bem-estar”, sentencia a OIE, que no entanto recomenda que as pessoas doentes evitem o contato com seus animais, por via das dúvidas.

A China não poupou esforços para eliminar as incertezas. Uma equipe do Instituto de Pesquisa Veterinária de Harbin inoculou o vírus diretamente no nariz de animais de diferentes espécies, dentro de um laboratório de alta segurança. Seus resultados preliminares, publicados em 31 de março sem revisão externa, sugerem que o novo coronavírus “se replica mal em cães, porcos, galinhas e patos, mas o faz de maneira eficiente em furões e gatos”.

Os cientistas chineses, encabeçados pelo virologista Bu Zhigao, inocularam o vírus humano em cinco gatos e os sacrificaram poucos dias depois. As necropsias mostraram que o vírus foi capaz de se multiplicar em sua traqueia e garganta, embora nenhum tenha tido os sintomas típicos da doença. Além disso, os felinos infectados contagiaram um gato sadio que estava na jaula ao lado, o que sugere uma transmissão por gotas respiratórias, como nos humanos.

A Associação de Medicina Veterinária dos EUA manifestou seu ceticismo com esses resultados, obtidos com pouquíssimos animais e em condições de laboratório. “O fato de que um animal possa se infectar experimentalmente com um vírus não significa que se infecte com esse mesmo vírus em condições naturais”, adverte a organização.

Um estudo ainda mais recente, publicado em 3 de abril, também aponta o salto dos humanos para os gatos. Os autores, da Universidade Agrícola de Huazhong (China), analisaram o sangue de uma centena de gatos de Wuhan depois do surto e encontraram anticorpos contra o novo coronavírus em 15% deles. “Nossos dados demonstram que o vírus SARS-CoV-2 infectou a população de gatos”, afirmam os pesquisadores, liderados pela veterinária Jin Meilin. Entretanto, seus dados também devem ser interpretados com cautela, porque tampouco foram submetidos à revisão externa essencial no sistema científico internacional.

“Os gatos que passam muito tempo fora de casa poderiam, potencialmente, ser infectados por outra pessoa, então é melhor manter uma distância deles, como se faz com as pessoas”, aconselhou em sua conta do Twitter o veterinário William Karesh, presidente do grupo de trabalho sobre enfermidades da fauna selvagem da OIE. O veterinário Víctor Briones, catedrático de Saúde Animal, está “totalmente de acordo” com essa recomendação.

Briones salienta que os três ou quatro animais de estimação infectados até hoje conviviam intensamente com doentes e que estes saltos pontuais de humanos para suas mascotes já haviam sido detectados na epidemia da primeira síndrome respiratória aguda grave (SARS, na sigla em inglês), causada por um coronavírus muito semelhante ao atual e que surgiu na China em 2002, matando quase 800 pessoas antes de ser aparentemente erradicado. “Parece que os gatos e os cães são um beco sem saída epidemiológico e não atuam na transmissão, como já ocorreu com os cachorros na epidemia de ebola na África ocidental”, afirma Briones.

A veterinária norte-americana Deborah McCauley está acostumada a montar elefantes para perseguir tigres. Luta na selva do Nepal contra as doenças que açoitam os últimos grandes felinos e outros animais em perigo de extinção. A organização que dirige, chamada Iniciativa Veterinária para a Fauna Selvagem Ameaçada (VIEW, na sigla em inglês), alerta que algumas espécies estão sendo afetadas por enfermidades que compartilham com os humanos ou com os animais domésticos, como o vírus da cinomose, que saltou dos cães para os tigres.

“Cerca de 75% das doenças emergentes provêm da fauna selvagem. E já compartilhamos 60% das doenças infecciosas com os animais”, adverte McCauley. “Se esta pandemia do novo coronavírus nos ensinou algo foi a necessidade crítica de investigar novas técnicas de diagnóstico e de investir em formação e em infraestrutura na primeira linha da natureza selvagem, para identificar rapidamente estas ameaças”, urge a veterinária. “A saúde da fauna silvestre deve ser incluída dentro do pacote da conservação do meio ambiente, porque a saúde das pessoas está estreitamente conectada à dos animais”, salienta McCauley.

Em 29 de março, o presidente da Organização Colegial Veterinária Espanhola, Luis Alberto Calvo Sáez, enviou uma carta ao ministro da Saúde, Salvador Illa, para lamentar a ausência de veterinários no comitê científico criado para combater a Covid-19. “Olhe à sua direita e à sua esquerda, não verá nenhum veterinário entre seus assessores nesta luta”, recriminou Calvo Sáez. Na Alemanha, recordou, o principal gestor cientista da crise do novo coronavírus é um veterinário, Lothar Wieler, presidente do Instituto Robert Koch de Berlim.

A região espanhola de Castela e León, por outro lado, chamou um veterinário para seu comitê científico de emergência: Elías Rodríguez Ferri, catedrático emérito da Universidade de León. “O salto entre espécies é um fenômeno fascinante na biologia”, reflete o veterano professor. Em 2003, rememora, o medo do vírus da gripe aviária H5N1 —que começou a saltar das aves de granja para os humanos com letalidade cada vez com maior— cristalizou-se na criação do conceito de “uma só saúde”, ou seja, que a saúde humana e a saúde animal são interdependentes. A OMS adotou rapidamente esse enfoque.

O veterinário William Karesh, da OIE, foi quem cunhou em 2003 a expressão “uma só saúde”, mas Rodríguez Ferri recorda que a ideia não era nova. Há um quadro de Rubens no Museu do Prado, em Madri, que esconde uma chave para evitar futuras pandemias. Chama-se A Educação de Aquiles, uma tela a óleo pintada em 1635 que mostra esse herói grego montado em seu bisavô, o centauro Quíron. Aquela criatura da mitologia clássica, meio homem e meio cavalo, conhecia as artes da cura e era capaz de aliviar o sofrimento de humanos e animais, conforme relata Rodríguez Ferri. Tanto os médicos como os veterinários apontam agora Quíron como um precedente legendário. O centauro é a prova de que a medicina humana e a veterinária podem cavalgar juntas.


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