André Mendonça no STF vira trunfo de pastores evangélicos, mas fiéis ignoram batalha política

Enquanto líderes religiosos celebram vitória em cultos e redes sociais, seguidores evitam a questão. “Existe uma alta rejeição a Bolsonaro, pessoas que o chamam de falso profeta, enquanto outros ainda são muito bolsonaristas”, afirma pesquisador

Dalila Felix, advogada e ministra evangélica:  “Política nas igrejas é muito dividida. Uma coisa é o que discutem as lideranças, outra é a vida real das pessoas”.
Dalila Felix, advogada e ministra evangélica: “Política nas igrejas é muito dividida. Uma coisa é o que discutem as lideranças, outra é a vida real das pessoas”.Lela Beltrão

André Mendonça escolheu o púlpito da igreja neopentecostal Assembleia de Deus Vitória em Cristo, do pastor Silas Malafaia, para “agradecer a Deus pela sua aprovação” como novo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). “Eu vim na igreja certa: Assembleia de Deus Vitória em Cristo, no culto da vitória, após uma grande vitória que Deus nos preparou”, disse na noite de quinta-feira (9), no Rio de Janeiro. Ovacionado, o advogado, ex-ministro da Justiça do Governo Bolsonaro e também pastor presbiteriano, afirmou durante a pregação de 26 minutos que sua nomeação é um grande salto para os evangélicos. “Não foi por minha causa, nem por você que eu cheguei ao STF. Foi por Deus. Estava predestinado, tinha de chegar ao STF”, disse no culto, que teve a presença de políticos, líderes religiosos e desembargadores.

A empolgação dos presentes, no entanto, não ecoa uniformemente na diversificada base do público evangélico. “Eu vi a notícia pela imprensa e fiquei surpresa quando ele foi nomeado, pois sabia da polêmica por terem indicado um ministro terrivelmente evangélico, mas não acompanhei os debates”, conta Dalila Félix, de 44 anos, advogada e influenciadora cristã. Ela considera positiva a presença de um ministro do Supremo que compartilhe de seus valores, o que pode fazer diferença no debate de pautas como aborto e legalização das drogas. Mas admite que não há consenso na comunidade evangélica sobre estes temas, além de entender que os ministros do STF atuam para além das pautas jurídicas relacionadas a costumes. “Política nas igrejas é muito dividida. Uma coisa é o que discutem as lideranças, outra é a vida real das pessoas”, explica.

André Mendonça durante "culto da vitória" na igreja do pastor Silas Malafaia, no Rio de Janeiro.
André Mendonça durante "culto da vitória" na igreja do pastor Silas Malafaia, no Rio de Janeiro. Reprodução Twitter

A advogada lembra que, em época de eleições, é comum que candidatos passem a frequentar as igrejas. No dia a dia, porém, as discussões seculares dentro das igrejas estão ligadas aos problemas reais e imediatos dos evangélicos, como economia e a pandemia da covid-19. “Em minha igreja não houve sequer comentário sobre André Mendonça”, afirma Félix, que frequenta a Assembleia de Deus Ministério em Santo Amaro (ADSA Brasil), no Jardim Amália, extremo sul da capital paulista. “Os evangélicos estão preocupados com coisas palpáveis. Mesmo no campo da fé, o que se busca é ter esperança em tempos difíceis, como curar a alma e melhorar a saúde mental por meio da fé. Essa discussão política parece desconectada da nossa realidade”, diz.

A expectativa de Bolsonaro, no entanto, é que Mendonça vote com o Governo não apenas em pautas de costumes, mas em outros casos, como o marco temporal das terras indígenas, suspenso na Corte após pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes. “O André vai fazer seu trabalho. Por exemplo, em pautas conservadoras, nem preciso falar com ele. Em pautas econômicas: tenho certeza qual é a posição dele em relação ao marco temporal, porque como AGU e [ministro] da Justiça trabalhou comigo contra essa questão que está no STF”, afirmou na semana passada.

A auxiliar administrativa Gabriela, de 43 anos, que pediu para que seu sobrenome não fosse divulgado, recebeu com certa indiferença a nomeação de Mendonça. “Acho bom que ele é cristão, mas a nomeação dele não influencia minha visão política e religiosa”, afirmou. Gabriela, que frequenta a Igreja Universal do Reino de Deus (IURDI) na Cidade Ademar, na Zona Sul de São Paulo, diz que o caso do novo ministro do STF não foi comemorado na igreja. “Esquerdista” na adolescência, ela conta que em 2018 votou em Bolsonaro ―“eu o conhecia antes dele ficar famoso nas eleições”― para combater o que chamou de “16 anos de corrupção do PT no poder”, afirmou ela, em referência aos 13 anos em que o partido governou o país. Até o presente momento, seu voto continua sendo do presidente. “Minha família toda é Bolsonaro, e não só os evangélicos, temos católicos, espíritas…”, conta. “Acredito no Bolsonaro, ninguém mostra realmente uma corrupção. Ele é um senhor antigo, rústico na forma de falar, por isso muitas vezes mal interpretado, mas onde está a perseguição contra nordestinos, negros e homossexuais que falaram que ele iria fazer?”, questiona.

Já o cabeleireiro Antônio Paulo Gonçalves, de 48 anos, conta que ouviu de sua esposa a notícia de que agora haveria um cristão no STF. “Achei bacana termos uma pessoa do mundo evangélico [no Supremo], que pode ajudar a melhorar o país”, disse o também fiel da IURDI de Cidade Ademar. Gonçalves diz que por estar fora de sua zona eleitoral, apenas justificou seu voto na última eleição presidencial, mas gostaria de ter votado em Bolsonaro. Ele vê com bons olhos a promessa do presidente de que indicará mais dois evangélicos para vagas no Supremo caso seja reeleito, mas isso apenas se o ex-presidente Lula não estiver no páreo. “Se Lula for candidato, meu voto é dele, porque em toda a minha vida, o tempo em que vivi melhor, foi quando Lula estava no poder.”

Dalila Félix, por sua vez, diz que não gosta de Bolsonaro, pois o considera um “falso cristão, alguém que usa a religião para atender seus objetivos eleitoreiros”. Porém, admite que votou nele em 2018. “No primeiro turno, fiz um voto de protesto no cabo Daciolo e seu ‘glória a deux’. Mas no segundo turno fui obrigada a votar em Bolsonaro, pois não voto no PT”, diz. A advogada conta que se sentiu desconfortável quando seu pastor recomendou o voto na petista Dilma Rousseff, na época em que muitas igrejas evangélicas estavam alinhadas com o partido. “Acho esse partido e seu representante maior, o senhor Luiz Inácio da Silva, picaretas”, diz. Em 2022, diz que votará no menos pior, de preferência que não seja Bolsonaro. “Se tiver que escolher entre ele e Moro, prefiro o Moro. Só voto em Bolsonaro novamente, se for contra Lula.”

O polarizado voto evangélico

Segundo pesquisa do Atlas Político divulgada no final de novembro, o voto evangélico está bastante dividido: quase metade (47%) declara intenção de apoiar Bolsonaro, enquanto Lula agrega 34% das intenções, seguido de Moro (11%), Ciro Gomes (4%), João Doria (1%) e Rodrigo Pacheco (1%). Do total de entrevistados, apenas 2% disseram não saber em quem vão votar ou afirmam que votarão em branco ou nulo. Por outro lado, Lula tem a maioria de intenção de votos entre católicos (34%), membros de outras religiões (53%) e ateus e agnósticos (58%).

O pesquisador Vinicius do Valle, doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, que estuda os movimentos evangélicos, explica que o novo ministro André Mendonça é uma figura indicada por grandes líderes, que consegue dialogar com diferentes setores do mundo evangélico, tanto neopentecostais quanto pentecostais clássicos, e inclusive com lideranças do chamado protestantismo histórico. “Na base das igrejas, o fiel recebe o novo ministro como alguém no Governo apontando para suas pautas, como: questão de gênero, da família, combate às drogas, preocupação com a infância”, afirma. Valle tem observado que, dentro das igrejas, questões políticas vem sendo evitadas. “Existe uma alta rejeição a Bolsonaro, pessoas que o chamam de falso profeta, enquanto outros são muito bolsonaristas”, explica. Para o pastor da igreja de bairro, de quebrada, de garagem, que são a maior parte das igrejas do país, não é interessante fazer um fiel brigar com o outro. O líder pode ter acordo com o Governo, inclusive em termos simbólicos pelo prestígio. O pastor local, não”, explica.

O voto evangélico é considerado determinante para a eleição de 2022, porém, tradicionalmente partidos de esquerda têm mais dificuldade em falar com esse público. O PT já começou uma estratégia de reaproximação. No dia 27 de novembro, Lula participou de um encontro virtual com líderes evangélicos progressistas, em que defendeu maior participação para esse grupo na legenda. “A gente deveria criar na televisão do PT, na rádio do PT, o momento evangélico, o momento da nossa rádio e na nossa televisão em que a gente pudesse ter vocês falando. Não é escolher um pastor, um bispo. É vocês. Do jeito que vocês falaram”, afirmou.

O ex-presidente disse que acompanha as pesquisas, mas não vê Bolsonaro ganhar dele numa disputa entre o público evangélico. Os resultados atuais, declara Lula, são reflexo da campanha antecipada realizada pelo atual presidente. “Ele já está em campanha e eu não estou ainda. Quando a gente entrar em campanha, eles vão ver a qualidade do nosso discurso para o povo religioso, de todas as religiões. Porque nós precisamos defender o Estado laico. E cada religião tem que se organizar do jeito que as pessoas querem se organizar”, disse durante o encontro.

Diálogo ainda esbarra no preconceito

O pastor batista Ariovaldo Ramos, coordenador da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, foi um dos convidados pelo Núcleo de Evangélicos do PT para participar do encontro virtual. Crítico ferrenho de Bolsonaro, o pastor recebeu a nomeação de Mendonça como uma “quebra do Estado laico”. “Ninguém pode assumir uma posição como essa em nome de religião. Isso é uma aberração”, afirmou.

Ramos rebateu a tese de que Mendonça será o primeiro evangélico na corte mais alta do país, lembrando frase dita pelo novo ministro após sabatina no Senado Federal: “Nunca os evangélicos chegaram tão longe no país. Finalmente, chegamos lá”. “Foi vendido que ele seria o primeiro evangélico, mas o primeiro foi Antônio Martins Vilas Boas [1896-1987], indicado por Juscelino Kubitschek, em 1957″, esclarece. Vilas Boas foi ministro do STF até 1966, quando se aposentou compulsoriamente. Membro da Primeira Igreja Batista em Belo Horizonte, ele era diácono e professor da Escola Bíblica Dominical. “No centenário de sua existência o STF fez uma sessão em sua homenagem e não por causa de sua religião”, argumenta.

Antônio Martins Vilas Boas (1896-1987),  primeiro ministro evangélico do STF, indicado por Juscelino Kubitschek, em 1957.
Reprodução TSE

Para o pastor, Bolsonaro está tentando mexer com o “orgulho evangélico”, público que caminha para se tornar maioria no Brasil, ao dizer que vai indicar novos ministros ao STF. “O entusiasmo inicial de muitos evangélicos com Bolsonaro foi arrefecendo, já que eles começaram a se dar conta de que foram enganados e que se meteram numa enrascada, porque agora estão sendo cobrados por ser cúmplices desse desgoverno, que já matou mais de 600.000 pessoas. Lembrando que os evangélicos estão entre os que mais morreram proporcionalmente [na pandemia] porque apoiaram o negacionismo do presidente”, afirma.

Pesquisas feitas pelo sociólogo José Eustáquio Diniz Alves mostram que a população católica deve ficar abaixo de 50% até 2030 e ser ultrapassada pelos evangélicos até 2040. Os dados do Censo de 2010 do IBGE já mostravam uma redução acentuada no número de católicos ―que passaram de 73,6% em 2000 para 64,6% em 2010. E crescimento da população evangélica, que passou de 15,4% em 2000 para 22,2% em 2010. “Se o novo censo for realizado, há a chance de a população evangélica já ser maioria”, afirma Ramos.

Isso justificaria a ampliação dos esforços de partidos para se aproximar dessa população. “O PT agora tem um núcleo que está tentando conversar com os evangélicos, mas acho que falta à esquerda como um todo uma sensibilidade aos temas que são caros aos evangélicos e que, às vezes, passam a impressão de que não importam”, afirma o pastor. Como exemplo, ele cita “críticas desnecessárias e desrespeitosas” à manifestação de fé da primeira-dama, Michele Bolsonaro, celebrando a aprovação de André Mendonça para o STF, no dia 29 de novembro.

Em um vídeo que correu as redes sociais, a primeira-dama pula, ora e chora ao abraçar o ex-advogado-geral da União e outras pessoas presentes na sala que aguardavam o final da votação no Senado. “A comemoração foi desrespeitosa com o Estado laico. A primeira-dama faltou com o decoro da posição em que ocupa. Daí partir para a crítica da forma como ela vive sua fé é falta de respeito com os evangélicos”, diz Ramos, em relação a glossolalia de Michele Bolsonaro. O fenômeno, definido como a capacidade de falar línguas desconhecidas quando em transe religioso, gerou debates nas redes sociais. “Todos os carismáticos, evangélicos ou católicos romanos, têm a glossolalia, que é a manifestação maior do batismo com o Espírito Santo”, explica o pastor, que admite ter ficado decepcionado ao ver pessoas da esquerda criticando a primeira-dama. “Quando vejo esse tipo de crítica, penso que eles não querem o voto dessa comunidade. Isso deixa a sensação de que os evangélicos só são lembrados quando o medo de perder a eleição começa a aparecer”, diz.

Silêncio da oposição marca nomeação de Mendonça

Uma análise feita pelo professor Fábio Goveia, do Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cultura (Labic), da Universidade Federal do Espírito Santo, mostra que políticos e líderes religiosos tomaram as redes sociais em comemoração à indicação do pastor. O Labic coletou dados de retuítes da expressão “Andre Mendonça” entre 30 de novembro e 7 de dezembro de 2021, que formaram uma rede de 55.934 perfis, como pode ser visto no grafo abaixo. O maior deles (azul), que reuniu figuras governistas como Malafaia, o deputado federal Carlos Jordy (PSL-RJ), o senador Marcos Rogério (DEM-RO) e o próprio presidente Jair Bolsonaro, representando 39,59% do total de menções positivas ao novo ministro.

Grafo da repercussão da confirmação de André Mendonça para o STF no Twitter
Grafo da repercussão da confirmação de André Mendonça para o STF no Twitter.Fábio Goveia (LABIC)

A rede de compartilhamentos da oposição (laranja) ―marcada pelo silêncio de seus principais expoentes― representou 36,95% das menções. Personalidades como Lula, Haddad, Ciro Gomes e Guilherme Boulos não aparecem entre os autores mais relevantes para este grupo. O ex-juiz Sergio Moro, que já se apresentou como possível candidato da terceira via à disputa presidencial pelo Podemos, liderou um pequeno grupo (vermelho), com 7,55% das publicações.

Moro elogiou a nomeação: “Parabenizo o ministro André Mendonça pela aprovação para o STF, com seus atributos técnicos e sua formação cristã. Desejo que o fortalecimento do combate à corrupção, marca da sua trajetória na AGU, guie suas decisões; razão pela qual o Podemos aprovou a sua indicação”, escreveu no Twitter.

O ex-magistrado se reuniu no dia no dia 8 de dezembro com pastores e líderes de igrejas evangélicas históricas de São Paulo. “Falamos de valores, princípios e da relevância do segmento para um projeto de Brasil justo para todos”, disse em publicação no Twitter. Pelo padrão de compartilhamento, o grupo de Moro inclui ainda João Amoedo, sugerindo que ambos dialogam, de alguma maneira, com públicos semelhantes. No entanto, o representante do Novo criticou Mendonça. “Se o recém-aprovado ministro considera sua entrada no STF um salto para os evangélicos, como cidadão só posso considerá-la um retrocesso para o Estado laico e para os brasileiros”, afirmou na rede social.

É relevante, ainda, um pequeno grupo (verde) onde uma das vozes de maior relevância foi Marina Silva (Rede). A única candidata evangélica às eleições presidenciais em 2018 também criticou o novo ministro: “André Mendonça interpreta sua aprovação no STF como um passo dele que significa avanço dos evangélicos. Precisamos de juízes impessoais e imparciais. Não se espera que sejam a representação de qualquer segmento da sociedade. O espaço da representação política é o parlamento”.

Esta rede, que representa 4,23% das menções, praticamente se mistura com o grupo vermelho de Moro e povoa as bordas entre o grupo do ex-juiz e o principal grupo bolsonarista, sugerindo que o público que interage com Marina pode apresentar afinidades com um ou com outro. As características desta rede deixam algumas pistas sobre a temperatura do debate eleitoral na internet, principalmente no que toca a repercussão da escolha de um nome “terrivelmente evangélico” para o Supremo. Diante do silêncio de Lula, as redes bolsonaristas garantiram uma repercussão majoritariamente favorável, apesar da margem estreita.

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