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Revista que divulgou estudo de cobaias humanas com proxalutamida no Brasil carimba o caso como “preocupante” após denúncia do EL PAÍS

Reportagem de outubro revelou que um paciente com covid-19 foi tratado com o remédio sem respaldo ético e científico. ‘British Medical Journal’, que deu espaço ao experimento, agora reforça que pode se tratar de “uma das piores violações de ética médica do Brasil”

Prontuário de paciente que morreu no Amazonas, onde consta tratamento com proxalutamida.
Prontuário de paciente que morreu no Amazonas, onde consta tratamento com proxalutamida.Michael Dantas
Diogo Magri

A revista científica britânica British Medical Journal (BMJ) divulgou nesta semana uma nota na qual expressa suas preocupações a respeito do estudo publicado na própria com uso de dose inédita do medicamento proxalutamida num paciente com covid-19 em Brasília. O tratamento foi conduzido pelo endocrinologista Flávio Adsuara Cadegiani, sem respaldo ético e científico necessário. A manifestação acontece após o EL PAÍS trazer a denúncia do caso em reportagem publicada no dia 20 de outubro. Na mesma nota, o BMJ reforça as preocupações levantadas pelo Conselho Nacional e Saúde (CNS) a respeito do experimento liderado por Cadegiani, que teria usado 645 cobaias em três Estados brasileiros com a mesma droga,. Isso pode ter levado ao óbito de 200 pessoas e estaria “entre as piores violações de ética médica do Brasil”.

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Segundo o caso publicado no BMJ, que virou alvo de preocupação para a entidade, um paciente “em estado grave” de covid-19 recebeu uma dose de 600 miligramas de proxalutamida no Instituto Corpometria, clínica particular de Cadegiani em Brasília. O fármaco, que é estudado para tratamento de câncer, não possui registro no Brasil e foi utilizado pelo médico sem a autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e sem cumprir os requisitos básicos do Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP). Além disso, a dose utilizada foi maior do que a registrada em qualquer outro site relevante para consulta de estudos científicos, como Clinical Trials e Pub Med.

Na época, a BMJ respondeu à reportagem que investigaria o caso. O estudo segue publicado no site da revista, mas ganhou um carimbo chamado de expression of concern, traduzido para o português como uma “manifestação de preocupação”. Nela, a revista informa que “seguindo as preocupações levantadas ao BMJ, estamos investigando o uso do medicamento relatado neste caso (proxalutamida) e as circunstâncias em torno de sua disponibilidade e licença para uso. Enquanto ocorre a investigação, gostaríamos de alertar aos leitores para essa manifestação de preocupação”.

O artigo divulgado neste 17 de novembro pela publicação britânica com o título Ensaio experimental de “cura da covid-19” está entre as piores violações de ética médica na história do Brasil, dizem reguladores também chama a atenção para as pesquisas irregulares com a proxalutamida no Brasil. O texto cita não só o caso de Brasília, trazido pelo EL PAÍS, como também a pesquisa envolvendo 645 pessoas no Amazonas, Santa Catarina e Rio Grande do Sul que é alvo de denúncias de CNS e CONEP.

“O ensaio clínico com proxalutamida ‘desrespeita quase todo o protocolo’ e pode ter contribuído para a morte de 200 pessoas, revela o CNS, órgão que regula a pesquisa clínica no Brasil”, diz o artigo. “O tratamento foi prescrito por médicos como se fosse um tratamento médico estabelecido, afirmou o CNS, apesar de ter sido aprovado apenas para estudos clínicos. O número de pessoas que receberam o remédio também foi maior do que o aprovado para a pesquisa”, continua.

O BMJ referencia nominalmente as denúncias apontadas pelo EL PAÍS. “O jornal espanhol EL PAÍS reportou que pacientes confiaram nos médicos para receberem o melhor tratamento possível e não foram informados que estavam ingerindo um remédio experimental como parte de um estudo clínico. Alguns dizem que o tratamento não foi acompanhado pela equipe médica. O termo de consentimento dado aos pacientes omitiu informações importantes sobre o direito de participantes de pesquisa e detalhes sobre o estudo, disse o CNS”. O BMJ reforça a conclusão apontada pelo Conselho: “Em toda a história do Conselho Nacional de Segurança brasileiro, nunca houve tamanho desrespeito às diretrizes éticas e aos direitos dos participantes de pesquisa”.

Em inglês, o caso publicado pelo BMJ ganhou uma "manifestação de preocupação", como se vê na imagem.
Em inglês, o caso publicado pelo BMJ ganhou uma "manifestação de preocupação", como se vê na imagem.

Como Cadegiani tampouco tinha autorização para utilizar o medicamento para tratar um paciente de sua clínica particular, o caso também se tornou alvo de investigações da Anvisa. A Agência informou à reportagem que “identificou discrepâncias nos processo de importação da proxalutamida para o Brasil e adotou algumas medidas de investigação que estão em curso”. No entanto, também afirma que “considerando que o processo administrativo de investigação ainda está em curso —e esse corre sob sigilo— não é possível antecipar detalhes em relação às diligências já realizadas”. Flávio Cadegiani também está entre as 80 sugestões de indiciamento no relatório da CPI da Pandemia por crime contra a humanidade.

Também assinaram como responsáveis pelo caso denunciado pelo EL PAÍS Carlos Gustavo Wambier, dermatologista e professor da Universidade Brown, nos Estados Unidos; Erica Lin, estudante de medicina na Universidade Brown; e Andy Goren, dermatologista e diretor médico da Applied Biology. Wambier e Cadegiani se defenderam ao dizer que o uso da proxalutamida não necessitava de aprovação da Anvisa; que a dose de 600mg era “provavelmente ideal”, embora inédita; e que as pesquisas com o remédio foram feitas sem infringir nenhuma norma ética ou procedimental do país. A versão é contestada pelos principais órgãos reguladores de estudos clínicos pelo Brasil e, agora, pela própria revista que cedeu espaço aos pesquisadores.

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