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Disputa pelo teto de gastos expõe o ‘mensalão’ de Bolsonaro

Supremo Tribunal Federal vai decidir se é lícita ou não a destinação de recursos sem transparência. Especialistas comparam prática ao esquema petista

Manifestantes protestam em Brasília no dia 30 de outubro com máscaras do presidente Jair Bolsonaro e do presidente da Câmara, Arthur Lira.
Manifestantes protestam em Brasília no dia 30 de outubro com máscaras do presidente Jair Bolsonaro e do presidente da Câmara, Arthur Lira.ADRIANO MACHADO (Reuters)

A tentativa do Governo Jair Bolsonaro de furar o teto de gastos para criar um novo programa social de olho nas eleições de 2022 expôs um orçamento secreto. São 16 bilhões de reais que o Palácio do Planalto troca por apoio parlamentar. Desse valor, ao menos 6,5 bilhões de reais já foram distribuídos por meio de emendas do relator, a chamada RP9. Por meio dela, congressistas indicam anonimamente em que área o recurso deve ser investido. Entre terça e quarta-feira, o Supremo Tribunal Federal (STF) deve decidir se esse vetor do toma-lá-dá-cá da política bolsonarista é ou não legal. Desde a sexta-feira passada, os repasses estão suspensos por conta de uma decisão monocrática da ministra do STF Rosa Weber. Ela entendeu que esse tipo de transferência fere o princípio constitucional da transparência.

A Câmara tenta derrubar a decisão da magistrada. Os outros nove ministros da corte deverão se manifestar sobre o tema no plenário virtual, ou seja, sem nenhuma reunião formal —a menos que algum deles peça por esse encontro. Os ministros apenas depositarão os seus votos ao longo do dia no sistema eletrônico, sem um horário-limite para se manifestar. Internamente, há uma predisposição dos magistrados de permitir o pagamento das emendas, desde que sejam identificados os autores das indicações.

O uso de emendas do relator, apelidado de orçamento secreto, tem sido comparado por especialistas em contas públicas com o mensalão do PT, quando o Governo Lula da Silva (2003-2010) comprou ilicitamente apoio no Legislativo. A diferença, no caso do Governo Bolsonaro, é que está ocorrendo um drible na Constituição e nas leis que pregam transparência, enquanto na gestão petista diversos políticos acabaram condenados por crimes como corrupção, peculato e lavagem de dinheiro. “O que está acontecendo agora é a velha prática do ‘é dando que se recebe’. O Governo dá emendas, sem nenhuma transparência, em troca de votos no Congresso”, diz o advogado Jorge Hage, ex-ministro da Controladoria Geral da União (CGU).

O economista André Luiz Marques, coordenador do Centro de Gestão e Políticas Públicas do Insper, diz ver semelhanças com o mensalão no que se refere ao objetivo final, o apoio parlamentar, mas não identifica ilegalidades no atual processo. “Ele é imoral. Falamos de recursos públicos, que deveriam beneficiar a população toda, e era preciso que todos soubessem onde ele está sendo aplicado, mas ninguém sabe direito”, diz, destacando que “esse Governo fala muito da nova política, mas o que faz é a raiz da velha política”.

Já a diretora de operações da ONG Transparência Brasil, Juliana Sakai, diz que o processo poderia ser mais republicano e transparente caso alguns órgãos, como a CGU, prezassem pela governabilidade. “A CGU virou um puxadinho da Advocacia Geral da União. Não seus técnicos, mas suas lideranças”, pontua. Ela entende que o pagamento das emendas poderia ocorrer, desde que fossem identificados quem foram os parlamentares que apresentaram as emendas e quais os critérios usados pelo Governo para investir o recurso em determinada área. “Era necessário, por exemplo, que o Governo explicasse por que comprou um trator, e não investiu na saúde.”

A chave do cofre

Um dos principais articuladores desse orçamento paralelo é o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Ao lado do ministro da Casa Civil, o senador Ciro Nogueira (PP-PI), ele é dos donos da chave do cofre: diz ao relator da vez quais emendas devem ou não serem aceitas. Nesta segunda-feira, em manifestação enviada ao Supremo, Lira alegou que a Justiça não poderia impedir o pagamento das emendas devido ao preceito de separação dos poderes: “O Judiciário não pode determinar que o Legislativo adote determinado procedimento na votação da lei orçamentária, porque tal ato constituiria invasão das prerrogativas constitucionais estabelecidas”.

No documento, o deputado ainda afirma que há o risco de obras que estão em estágio avançado serem paralisadas caso o plenário do STF confirme a medida liminar concedida por Rosa Weber. “O efeito da suspensão sistemática de todas as programações marcadas com o identificador RP 9, incluídas por emendas de relator, será o de impedir a continuidade de inúmeras obras e serviços em andamento”, alegou.

Outro que saiu em defesa do Governo foi o senador bolsonarista Marcos Rogério (DEM-RO): “Querem criminalizar o processo político legítimo, porque o foco é enfraquecer a representação de quem defende o Governo do presidente Bolsonaro”.

A destinação do orçamento secreto está intrinsecamente ligada à Proposta de Emenda Constitucional dos Precatórios, com a qual o Governo tenta criar margem nos gastos públicos para bancar o programa Auxílio Brasil, sucessor do Bolsa Família.

Na semana passada, a PEC foi aprovada em primeiro turno na Câmara com 312 votos – apenas quatro a mais do que o necessário. Na ocasião, parlamentares de partidos opositores como PDT, PSB e PSDB entregaram votos ao Governo. Suspeita-se que a gestão Bolsonaro tenha empenhado mais 1,2 bilhão de reais das emendas do relator em troca de apoio. Sem essa margem de manobra e diante da pressão de lideranças opositoras, não há segurança de que a PEC será aprovada em segundo turno. A votação está prevista para acontecer nesta terça-feira.

A ministra Weber também interferiu no processo de votação dessa PEC. Ela recebeu uma denúncia de partidos de oposição, que entendem que Lira alterou ilegalmente o regulamento da Câmara para permitir a votação remota de deputados e garantir a aprovação do projeto. A magistrada questionou a Câmara sobre o precedimento, mas ainda não houve uma manifestação oficial.

A diferença das emendas

Conforme a legislação brasileira, há quatro tipos de emendas que podem ser apresentadas pelos parlamentares. 1) A emenda individual (RP6) tem o pagamento impositivo. Cada deputado ou senador pode destinar 16,3 milhões de reais a algum projeto previsto pelo Governo em seus Estados. Metade desse valor tem de ser aplicado na área de saúde; 2) As emendas de bancadas estaduais ou regionais (RP7), também são obrigatoriamente pagas; 3) Emendas de bancadas temáticas (RP8), como da saúde, da segurança pública ou da agricultura, não tem o pagamento obrigatório e costumam ser cortadas; 4) emendas do relator, que custam 16 bilhões de reais aos cofres públicos e são oficialmente definidas pelo parlamentar que relata a lei orçamentária do ano seguinte. O orçamento de 2021, em vigor, foi relatado pelo senador Márcio Bittar (MDB-AC).

No caso das RP9, o Congresso pode indicar áreas genéricas para o investimento desses valores, mas a definição dos municípios e projetos específicos a serem efetivamente contemplados cabe somente ao Executivo. Em uma das diversas modificações nas regras orçamentárias desde 2015, o Congresso tentou impor a destinação dessas emendas, mas a proposta foi vetada por Bolsonaro.

Ainda que o STF impeça ou crie regras para o pagamento das emendas do relator, os especialistas entendem que, em breve, os políticos buscarão uma nova alternativa para beneficiar seus redutos eleitorais e, o Governo, outras maneiras para cooptar apoios. “Em matéria de ilicitudes, há sempre quem inventa novas formas”, diz o ex-ministro Hage. “Alguns gastam muita energia para ver como se dribla a legislação. Quando você fecha a porta de um lado, ele acha um atalho do outro”, acrescenta o economista Marques.

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