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Otimismo com acordo da COP26 não desembarca no Brasil

Os sinais do Governo Bolsonaro não indicam que algo possa ser revertido na política ambiental, avaliam especialistas. “Ele vê a proteção ambiental como um empecilho”

Vista aérea de um desmatamento na Amazônia para expansão da pecuária, em Lábrea, Amazonas.
Vista aérea de um desmatamento na Amazônia para expansão da pecuária, em Lábrea, Amazonas.Victor Moriyama / Amazônia em Chamas
Beatriz Jucá

Um acordo histórico foi firmado na COP26 para conter o desmatamento e o aquecimento global. Pouco mais de 100 países detentores de 85% das florestas do planeta criaram um fundo de cerca de 109 bilhões de reais e se comprometeram a conter e reverter o desmatamento até 2030. O Brasil está entre esses países. A Cúpula do Clima também prometeu injetar mais recursos ―cerca de 10 bilhões de reais― para a proteção das comunidades indígenas, guardiãs históricas das matas nativas. Mas o otimismo internacional emanado de Glasglow, na Escócia, onde ocorre a COP26, não desembarcou no Brasil governado por Jair Bolsonaro, que acumula declarações contra a demarcação de terras indígenas, estimula o garimpo nesses territórios e desidrata sumariamente a política ambiental.

“O fato de o Brasil entrar ou não no acordo vai mudar pouco ao país”, avalia Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima. “Um acordo como este tem valor e relevância, mas Bolsonaro não vai reestruturar a política ambiental por causa disso. Ele desmontou a governança de controle do desmatamento do país”, completa. Bolsonaro sequer participou pessoalmente da COP26, e seu Governo ainda viu o coordenador-executivo do Fórum Brasileiro de Mudança do Clima se demitir. Oswaldo dos Santos Lucon, que participa do encontro mundial como observador da ONU, alegou falta de transparência no diálogo da gestão de Bolsonaro com a sociedade brasileira, mas não deu mais detalhes sobre os motivos de sua saída.

Na abertura da cúpula do clima, coube a outra brasileira destacar-se ao levantar a voz sobre o problema que afeta toda a humanidade: a ativista indígena Txai Suruí, de 24 anos, falou em nome dos povos originários. Sem citar nomes, reclamou de “promessas mentirosas e irresponsáveis”. E pediu protagonismo aos indígenas, que estão na linha de frente da emergência climática, com direito a participação nas decisões da cúpula. Também defendeu a necessidade de ações imediatas para conter os danos ambientais que assolam o planeta. “Precisamos tomar outro caminho com mudanças corajosas e globais. Não é 2030 ou 2050″, disse, referindo-se aos prazos firmados ali para reverter a emergência climática. “É agora!”

Suruí sabe do que está falando. “Tenho só 24, mas meu povo vive há pelo menos 6.000 anos na floresta Amazônica. Meu pai, o grande cacique Almir Suruí, me ensinou que devemos ouvir as estrelas, a Lua, o vento, os animais e as árvores. Hoje o clima está esquentando, os animais estão desaparecendo, os rios estão morrendo, nossas plantações não florescem como antes. A Terra está falando. Ela nos diz que não temos mais tempo”, discursou, diante dos chefes de Estado. Integrante da etnia Paiter Suruí, a indígena também relembrou a morte de um amigo de infância, guardião da floresta, em abril de 2020. Ele atuava em um grupo de vigilância dos povos indígenas em Rondônia, registrando e denunciando extrações ilegais de madeira. “Enquanto vocês estão fechando os olhos para a realidade, o guardião da floresta Ari Uru-Eu-Wau-Wau, meu amigo de infância, foi assassinado por proteger a natureza.”

Um relatório do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) mostra que nem mesmo a pandemia do novo coronavírus foi capaz de frear a violência contra os povos originários. As invasões a terras indígenas aumentam em 2020 e as mortes de indígenas tiveram alta de 63%, conforme o estudo publicado no final do mês passado. Os dados de “violência contra a pessoa” mostram que, em 2020, ocorreram 182 assassinatos de indígenas, número 63% superior ao de 2019, quando 113 indígenas foram mortos em atos de violência. Dentre estas mortes está a do ativista Ari Uru-Eu-Wau-Wau, amigo de Txai Suruí.

A ativista indígena Txai Suruí.
A ativista indígena Txai Suruí.Reprodução (Instagram)

Na COP26, líderes negociam recursos para as comunidades indígenas que formam a Aliança Global de Comunidades Territoriais, uma coalizão de organizações da América Latina, África e Ásia, que representa 35 milhões de pessoas de 24 países. A ideia é financiar o mapeamento dos territórios, ações contra o desmatamento e de proteção aos integrantes das etnias que costumam sofrer ameaças enquanto defensores da natureza. Por enquanto, há apenas diretrizes. Ainda precisam ser definidos os objetivos a serem alcançados e os mecanismos para aplicar os recursos para atingi-los, advindos de fundos públicos e privados.

Seja como for, a perspectiva de que o Brasil mude a direção de sua política ambiental em curto prazo não é otimista, mesmo que o acordo global saia de fato do papel. Os quase três anos de mandato de Bolsonaro são marcados por retrocessos na área ambiental e pelo desmonte de organismos de controle. Ao longo desse período, seu Governo boicotou ações de fiscalização do Ibama na Amazônia, reduziu orçamento, estimulou o garimpo ilegal e desmoralizou o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), que faz o monitoramento de queimadas. O desmatamento da Amazônia tem batido recordes nos últimos anos. Por meio de nota, o secretário executivo do Observatório do Clima, Marcio Astrini, lembrou que projetos do Ministério do Meio Ambiente apontam que Bolsonaro deve encerrar seu mandato com o desmatamento na Amazônia 16% superior ao de 2018, último ano antes do seu Governo.

O desmonte da política ambiental tem ampliado a vulnerabilidade sobre os povos indígenas, que são os guardiões das florestas ainda preservadas e os que hoje lutam para mantê-las de pé”, resume Suely Araújo. Para ela, o Governo mudou o discurso na cúpula do clima para ter acesso a recursos internacionais, mas isso não significa que, na prática, se empenhará em cumprir o que foi acordado. Em abril deste ano, Bolsonaro já havia condicionado o compromisso de eliminar o desmatamento ilegal até 2030 ao recebimento de recursos. “Ele vê a proteção ambiental como um empecilho”, afirma.

O fio de esperança está no poder de pressão em médio e longo prazo após o país assinar o acordo, além da expectativa de que o entendimento firmado em Glasgow influencie os próximos governos, que terão o desafio de reconstruir a política ambiental brasileira e seus instrumentos de regulação e controle. “Os sinais deste Governo nos levam a não acreditar que alguma coisa possa ser revertida no curto prazo. Mas talvez ajude no sentido de controlar danos, de ter uma pressão maior para que o desmonte não piore, que retrocessos maiores não ocorram. Mesmo assim, tenho dúvidas”, analisa.

O cacique André Karipuna vive sob constante ameaça de invasores na Terra Indígena Karipuna, em Rondônia. Ele conta que seu povo identificou, junto ao Cimi, uma nova frente de desmatamento na região. São 850 hectares de desmatamento ilegal detectado no território no último ano, registrando um aumento de 44% em relação ao ano anterior. Ao EL PAÍS, disse que também não está otimista com o futuro, mesmo que mais recursos internacionais possam contribuir para a proteção das terras indígenas. “Isso poderia ajudar, mas o que precisamos mesmo é dos órgãos como o Ibama e a Funai para fazer o trabalho de proteção. Eles que têm o poder de multar e expulsar os invasores e madeireiros”, afirma. “Mas a parte de proteção territorial ficou bastante fraca neste Governo. E a cada ano a gente vê isso com muita preocupação.”

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