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Carlos Nobre: “O desafio brasileiro vai além da Amazônia. Não dá mais para jogar para o futuro”

Cientista afirma que o país chega à COP26 como uma grande preocupação global e que precisa apresentar metas mais ambiciosas caso queira recuperar credibilidade

Carlos Nobre
O cientista Carlos Nobre.Divulgação/Volvo Environment Prize
Felipe Betim

O climatologista Carlos Nobre (São Paulo, 1951), um dos principais cientistas brasileiros na linha de frente dos estudos sobre a devastação da Amazônia e seus impactos no clima global, está cético sobre a participação do Brasil na conferência do clima da ONU (COP26) em Glasgow, na Escócia, que começa na segunda-feira, 1º de novembro. Em entrevista ao EL PAÍS por telefone às vésperas da cúpula, afirma que o país chega encontro como uma “grande preocupação global” e que o Governo Jair Bolsonaro deverá apresentar metas mais ambiciosas caso pretenda que o país recupere parte da credibilidade perdida nos últimos anos.

Nobre considera insuficiente a proposta do vice-presidente Hamilton Mourão, presidente do Conselho da Amazônia, de antecipar em dois ou três anos o fim do desmatamento ilegal —antes previsto para 2030. Até porque, explica Nobre, existe uma “indústria da legalização do crime ambiental”, isto é, o desmatamento ilegal pode, amanhã, acaba sendo legalizado pelo Congresso, como ocorreu outras vezes. O cientista também chama atenção para a degradação contínua de áreas de floresta da Amazônia, tão preocupante quanto o desmatamento em si. Mas o problema não se restringe à maior selva tropical do mundo, e se estende também para o cerrado, o pantanal e outros biomas. “O desafio vai além da Amazônia. Não dá mais para jogar para o futuro”, afirma.

Pergunta. Como o Brasil chega à COP26? O que podemos esperar da participação do país na cúpula?

Resposta. O país chega como uma grande preocupação global. Em 2020, o Brasil foi um dos poucos países que aumentou suas emissões. Diminuiu no setor de transporte, por causa da pandemia e do lockdown, mas aumentou muito o desmatamento da Amazônia, do Cerrado, do Pantanal... As emissões de 2020 foram superiores a 2019, enquanto no mundo houve uma redução de 5% das emissões. Em 2021, seguem altas as emissões, o desmatamento, as queimadas, a degradação florestal... O inventário oficial das emissões de gases causadores do efeito estufa só considera emissões provenientes do corte raso de árvores, mas ele não considera a degradação. Portanto, o Brasil chega à COP26 muito desacreditado. Para sair com alguma credibilidade, não basta só falar a meta de zerar o desmatamento ilegal, ao mesmo tempo que a indústria da legalização do crime ambiental segue ativa.

P. Poderia explicar melhor a diferença entre essas áreas degradadas e como elas também contribuem para o aquecimento global?

R. Áreas degradadas ainda possuem arvores, incluindo parques nacionais e reservas indígenas com floresta. Mas, nesses casos, sobretudo no sul da Amazônia, a floresta já está perdendo a capacidade de reciclar água. Como ocorre essa degradação? O pessoal chega lá na floresta, abre aquela estradinha para chegar o caminhão, abrem um pátio para colocar as madeiras, e depois vão abrindo trilhas com máquina, pegando as árvores com valor econômico. Então, uma vez que você abriu a estrada, as trilhas, pronto, aquilo começa a ser um vetor para outros chegarem ali e roubar madeira. E com um tempo aquilo vai se degradando. Quando a floresta não é perturbada, somente 4% da radicação solar chega na superfície. Então, ela é muito úmida e o fogo não se propaga. Nas áreas degradadas, a radiação solar penetra e seca o chão da floresta. Quando o fogo chega, ele anda por quilômetros pelo chão da floresta degradada e inúmeras arvores morrem. Quase todas as espécies do clima úmido amazônico não evoluíram resistentes ao fogo, como são arvores do cerrado. Então, elas perdem folhas, e o sol entra mais, e vai ficando mais degradado. Você vai em áreas 15 anos depois que foram lá extrair madeira e encontra 15% ou 20% da cobertura de árvores. O resto desapareceu.

P. Quanto essas áreas degradadas representam e o quanto emitem de gases?

R. Temos dados que mostram que 17% de toda a floresta amazônica, 6,2 milhões de quilômetros quadrados, já foram desmatados com corte raso de árvores, e outros 17% estão em diversos estágios de degradação. Isso é um dado que não é muito falado. Então, a floresta está muito próxima de um risco de desaparecimento, um ponto de não-retorno. O sul da Amazônia já dá sinais de que está muito próximo desse ponto. Ali, grandes áreas no norte do Mato Grosso e do sul do Pará, mesmo na estação chuvosa, perdem mais carbono do que absorvem da atmosfera. É porque aumentou muito a mortalidade de arvores. Ela morreu, vai se decompondo, e o carbono vai para a atmosfera como gás carbônico. Um estudo mostrou que, de 2007 a 2018, foram desmatados em corte raso de árvores 100.000 quilômetros quadrados, mas nesse mesmo período uma área de 200.000 quilômetros quadrados foi degradada. Considerando as emissões de gás carbônico de áreas desmatadas com corte raso, essa área degradada emitiu mais 53% de gases. Mas o inventario oficial das emissões brasileiras não considera isso, somente as emissões de áreas de corte raso, e por isso subestima as emissões de gases do efeito estufa que o Brasil está lançando na atmosfera. Teria que aumentar em 50% as emissões.

P. O vice-presidente Hamilton Mourão, que preside o conselho da Amazônia, disse que o Brasil vai adiantar em dois ou três anos o fim do desmatamento ilegal, previsto inicialmente pelo Governo para 2030. Como enxerga essa proposta?

R. Para evitar o ponto de não-retorno, para salvar a Amazônia, a gente precisa zerar os desmatamentos antes de 2030, e zerar no sul da região para ontem. Não é só o desmatamento ilegal, é todo. Por mais que digam que mais de 90% do desmatamento é ilegal, existe uma indústria de legalização do crime ambiental. Em 2012, quando aprovaram o Código Florestal, o Governo perdoou as dívidas e regularizou 58% das áreas que tinham sido desmatadas até julho de 2008. Neste ano, um projeto de lei regularizou mais de 50% dos desmatamentos ilegais até 2018! É essa a indústria de legalização que incentiva o chamado mercado de terras. O crime organizado que vai lá, grila uma área pública, protegida, rouba madeira... Portanto, não é só uma questão de antecipar em dois ou três anos o limite do desmatamento ilegal... Para salvar, temos que zerar o desmatamento em toda a Amazônia e zerar a degradação também, esse roubo de madeira e os incêndios. E também no Cerrado e no Pantanal. O desafio vai além da Amazônia. Não dá mais para jogar para o futuro. O Brasil deveria realmente ir a Glasgow com metas muito mais ambiciosas de eliminar ontem, e não fazer essa diferenciação de ilegal e legal, porque isso é o que alimenta a indústria de legalização. Pode ser que lá na frente o Congresso aprove outro projeto legalizando quase todos os desmatamentos até 2025, e o Governo chegue em 2027 dizendo que reduziu os desmatamentos ilegais, quando na verdade ele legalizou a maior parte do ilegal.

P. Como o Governo Bolsonaro incentiva essa indústria da legalização?

R. O discurso do Governo desde que assumiu o poder é o de que o futuro da floresta é retirar a floresta e substituir por pastagens, por mineração, por culturas agrícolas... É um discurso que não mudou nada. A credibilidade da posição brasileira é muito fraca. Vamos torcer para que a delegação brasileira negocie realmente metas muito mais ambiciosas do que essas e não só prometa. O Governo Bolsonaro, em 2019, quando o Brasil explodiu nas manchetes como pária ambiental, passou um ato normativo proibindo queimadas. Ninguém respeitou. Proibiu em 2020, e ninguém respeitou. Proibiu em 2021, e ninguém respeitou. Quantas pessoas que foram queimar o pantanal, o cerrado e a Amazônia estão sendo processadas? Quase ninguém. Estão todas impunes. Por que ninguém respeita o marco legal? Devido ao discurso político do presidente e do Ministério do Meio Ambiente, totalmente voltado para o agronegócio arcaico e expansionista. Essa é a visão que ainda perdura. Se o Brasil quiser aumentar sua credibilidade, ele não pode só falar de um compromisso futuro, ele precisa levar junto tudo o que vai fazer para implementar políticas que levam a zerar o desmatamento e a degradação.

P. Mourão também disse recentemente que áreas invadidas não podem mais ser recuperadas. O que esse discurso sinaliza? Deve-se dar por perdido essas áreas?

R. O fato de que o vice-presidente e presidente do Conselho da Amazônia diga isso é o sinal verde para o crime ambiental. A mensagem dele é dupla. Ele está falando que, por um lado, vamos zerar o desmatamento ilegal, mas aquele que aconteceu no passado não tem mais o que fazer, o grileiro foi lá, grilou, pôs o boi, está fazendo algo que na teoria é produtivo... É exatamente o sinal que o crime ambiental quer. Ele vai pensar “olha, é tudo papo, ele vai lá em Glasgow, vai falar isso, mas vamos continuar firme no nosso modelo de roubo de terra, porque depois que nós fizermos ninguém vai nos prender, nos punir, nos multar...”. Qualquer terra grilada, qualquer proprietário rural que invadiu reserva legal e desmatou ilegalmente, precisa ser multado e proibido de fazer qualquer novo desmatamento. O que eles chamam de regulação fundiária é exatamente o que o crime ambiental quer ouvir. Vamos em frente, que isso no futuro vai ser legalizado. Se eu tivesse a oportunidade de fazer uma pergunta a Mourão, perguntaria o seguinte: se o Congresso aprovasse uma legalização dos desmatamentos feitos em 2019 e 2020, como isso entraria em sua contabilidade de zerar o desmatamento ilegal?

P. O que opina sobre o projeto de reconstruir a BR-319? Eles falam que faz parte do compromisso sustentável do Brasil...

R. Cerca de 95% dos desmatamentos ocorrem entre 5,5 km de cada lado de qualquer estrada. Se você olhar o asfaltamento da BR-319, o Governo do Estado do Amazonas já tem programado construir três rodovias estaduais Leste-Oeste. Vai explodir o desmatamento e o roubo de terra! É comprar mais desmatamento, mais ilegalidade, mais áreas de pecuárias de baixíssima produtividade, mais roubo de terra, porque vai ter estrada para transportar madeira de áreas que estão longe de rios, mais ameaça a povos indígenas e ribeirinhos... Todas as estradas da Amazônia levaram a isso, elas são o grande vetor da destruição da Amazônia. Esse grupo político que legaliza o crime ambiental está por trás dessas propostas de abrir novas estradas.

P. Esse grupo político argumenta que os habitantes da Amazônia precisam trabalhar e sobreviver, como forma de justificar o desmatamento. Que tipos de atividades econômicas conciliam a preservação da floresta com a geração de emprego e renda?

R. Precisamos de uma nova bioeconomia, com a floresta em pé. O fórum da bioeconomia internacional que aconteceu semana passada, em Belém, mostrou o estudo do professor Francisco Costa, da Universidade Federal do Pará [a pesquisa foi realizada pela TNC Brasil, pelo BID e pela Natura]. Ele lista 30 produtos da biodiversidade da floresta do Pará, como açaí, buriti, cupuaçu, cacau, tucumã, entre outros, que renderam 5,4 bilhões de reais em 2019 para 224.000 pessoas. São 224.000 empregos. Portanto, a bioeconomia de floresta em pé tem um potencial muito maior que a pecuária e a agricultura. Beneficia muito mais gente, mantém essas pessoas nas comunidades, nas florestas, em pequenas vilas, em pequenas cidades... 70% da população amazônica é urbana, e as cidades grandes [da Amazônia] estão entre os piores IDHs [Índice de Desenvolvimento Humano] do Brasil. Muitos vinham das áreas rurais, expulsos pela expansão da pecuária e da agricultura, e se tornaram pobres. Hoje, já existem cooperativas com famílias de classe média. Esse é o modelo de que a Amazônia precisa. Enquanto a gente não zerar o desmatamento e a degradação, e criar sistemas agroecológicos, com valor econômico, o Brasil não deveria abrir novas estradas nem asfaltar.

P. Existem exemplos positivos de política pública por parte de governos do Estado e prefeituras na Amazônia?

R. Infelizmente não tivemos bons exemplos nos últimos anos. Mas, por exemplo, o governador do Pará, Helder Barbalho, lançou na semana passada o programa de uma nova bioeconomia para o Estado do Pará. É um programa que atraiu empresas, ONGs, comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhos, universidades... É uma promessa. O Estado do Pará tem os maiores índices de desmatamento da Amazônia brasileira —não só a maior área, como também maior percentual. A gente precisa torcer para essas coisas andarem, mas a maioria dos políticos dos Estados amazônicos são apoiados por aqueles políticos locais ligados a esse modelo do agronegócio expansionista e da mineração. O plano é na direção correta. Os governadores do Estados amazônicos vão à COP26 com suas propostas de zerar desmatamento, desenvolver essa nova bioeconomia. Isso é positivo do ponto de vista do discurso político, mas precisamos ver se de fato vão apoiar esse novo modelo sustentável.

Não há nenhuma prova muito clara em grande escala. Nenhum governo estadual tem mecanismo que acelere rapidamente essa formação da nova bioeconomia. Não foram governos que criaram a economia do açaí, isso foi uma demanda primeiro de outros Estados brasileiros. E, depois, virou um produto mundial. A zona franca de Manaus tem um subsídio de 30 bilhões de reais por ano. Quanto o Governo federal está subsidiando essa nova bioeconomia? Até agora zero. Essa bioeconomia tem um potencial tão grande que está se expandindo por iniciativa das cooperativas de abrir mercados nacionais e internacionais. O Ministério da Agricultura coloca de subsídio para essa nova bioeconomia? Praticamente zero. Ao mesmo tempo, colocam dezenas de milhões de reais de subsídio para a pecuária.

P. O mundo todo está falando sobre a necessidade de fazer o quanto antes a transição para uma economia descarbonizada e verde. Esse novo empenho por si só é uma esperança para evitarmos o ponto de não-retorno na Amazônia?

R. Os países só vão financiar a redução do desmatamento se os países amazônicos diminuírem muito o desmatamento. Caso contrário, ninguém vai colocar um tostão. O discurso de preservação pode ser bem recebido, mas o problema todo é que o Brasil vai receber zero se não reduzir o desmatamento e se não tiver uma política muito efetiva de acabar com o crime ambiental. E isso vale também para a Bolívia, Peru, Colômbia, Venezuela... Em todos os países amazônicos o desmatamento está crescendo. Nenhum pais vai colocar um centavo aqui. Por outro lado, pode haver sanções. Joe Biden [presidente dos EUA] já está querendo passar marcos legais proibindo importação de produtos vindos de países que desmatam, enquanto a União Europeia está para aprovar uma lei que proíbe importação de produtos de países tropicais que desmataram.

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