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Brasil chega a 600.000 mortes com pandemia em desaceleração, mas sem poder baixar a guarda

Pesquisadores vêem crise arrefecer no Brasil com otimismo, mas ponderam que não há perspectiva de fim da pandemia no curto prazo e que é preciso continuar usando máscaras

Pai e filha colocam um moinho de vento em homenagem às vítimas da covid-19, em São Paulo.
Pai e filha colocam um moinho de vento em homenagem às vítimas da covid-19, em São Paulo.AMANDA PEROBELLI (Reuters)
Beatriz Jucá

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O Brasil chegou nesta sexta-feira aos 600.000 mortos pela covid-19, marcado por uma política nacional errática, mas, enfim, com a pandemia em desaceleração. Ainda que registre mais de 400 óbitos pelo vírus diariamente, o dado é similar aos registrados em novembro do ano passado, antes da variante gama devastar Manaus e se espalhar pelo país. As últimas 100.000 mortes foram notificadas ao longo de três meses, enquanto as 100.000 anteriores ocorreram em pouco mais de um mês e meio. E, ao contrário do ocorrido até agora, a perspectiva é de que o futuro siga trazendo boas notícias, já que as vacinas contra o vírus têm se mostrado efetivas. Pouco mais de 45% da população está imunizada e a sensação de segurança cresceu, o que fez com que gestores adotassem medidas menos restritivas, algumas delas polêmicas como a desobrigação do uso de máscaras.

Especialistas ouvidos pelo EL PAÍS concordam que o atual estágio da pandemia no Brasil inspira otimismo e que é possível retomar atividades, priorizando àquelas ao ar livre e com cautela. Mas avaliam que continuar em direção ao controle da transmissão dependerá de variáveis como o comportamento da população, se aparecerá uma nova variante de preocupação do vírus e quais respostas a ciência dará sobre a duração da proteção conferida pelas vacinas e pela “imunidade natural” de quem contraiu a doença. Por enquanto, é consenso entre os pesquisadores que não é prudente falar em fim da pandemia no curto prazo. “Nós estimamos que uma pandemia dessa magnitude seja considerada controlada quando nós tivermos um número muito pequeno de óbitos relacionados à doença, uma taxa de ocupação de leitos muito pequena e uma cobertura de imunização completa de pelo menos 80% da população”, afirma a pesquisadora da Fiocruz, Margareth Dalcolmo, em um vídeo da instituição. Ela não vê este cenário como provável para ainda este ano. “Estamos numa situação positiva, mas o coronavírus ainda é um problema. O cuidado ainda é fundamental. Claro que a gente deve discutir flexibilizações, mas sempre com cautela. E com a clareza que tudo é mutável, nada é definitivo”, acrescenta o pesquisador do Infogripe, Marcelo Gomes.

Sem consenso para liberar máscaras

Os números positivos têm feito prefeitos e governadores anunciarem aberturas cada vez maiores. Mais atividades são liberadas com a adoção de alguns protocolos, eventos-teste ensaiam a abertura de público em estádios de futebol e shows musicais com capacidade reduzida. No meio disso, há medidas mais polêmicas, como a retirada da obrigatoriedade das máscaras em algumas cidades. Caxias do Sul, no Rio de Janeiro, foi a primeira a derrubar o equipamento de proteção em locais abertos ou fechados. “Máscara a população quase já não usa. Ninguém vai viver de máscara o resto da vida. Quem quiser usar pode usar, mas o uso obrigatório já deu”, afirmou o prefeito Washington Reis (MDB). Ministério Público e Defensoria tentam reverter a decisão. Do outro lado do país, no Ceará, Nova Olinda também decidiu desobrigar o uso de máscaras, mas apenas em locais abertos. Uma das maiores cidades do Brasil, São Paulo, também estuda uma medida semelhante ainda neste mês de outubro.

Diante disso, o Conselho Nacional dos Secretários Estaduais da Saúde (Conass) emitiu uma nota com um pedido para que gestores não se precipitem. “É preciso que estejamos atentos às experiências frustrantes de alguns países que, acreditando ter superado os riscos, suspenderam a obrigatoriedade do uso de máscaras, afrouxaram as medidas de prevenção e, por isso mesmo, tiveram recrudescimento importante do número de casos e de óbitos, obrigando-os a retroceder”, argumenta a entidade. Durante toda a crise, as máscaras foram uma ferramenta importante de proteção e não há consenso entre os pesquisadores sobre o momento de abandoná-las.

“A gente não pode reduzir a discussão em liberar ou não a máscara, mas devíamos pensar em medidas mais focalizadas. Devíamos estar discutindo de forma separada as flexibilizações em espaços abertos e em espaços fechados”, defende Vitor Mori, pesquisador da Universidade de Vermont. Ele diz que, no atual momento da pandemia, é inviável pensar em desobrigar máscaras em locais fechados, onde a população deveria usar máscaras que conferem maior proteção pelo risco mais elevado. No entanto, opina que abrir mão do equipamento em determinados locais ao ar livre já pode ser possível. “Somos pouco rigorosos. As pessoas continuam usando máscaras de pano folgadas em locais fechados. Precisamos ser mais rigorosos. Mas, para espaços abertos, acho que o cenário é diferente e o impacto não seria tão grande”, argumenta.

Já a enfermeira Thereza Maria Magalhães Moreira, professora de Epidemiologia da Universidade Estadual do Ceará, defende que a obrigatoriedade das máscaras deve ser mantida. “O volume de pessoas nas ruas e nos locais como um todo deve aumentar, o que diminuirá o distanciamento social, então proteção facial é fundamental para diminuir transmissão”, afirma. Marcelo Gomes completa que a discussão sobre o equipamento de proteção é uma parte importante na equação para controlar a pandemia, assim como distanciamento social e outras medidas protetivas mesmo com o avanço da vacinação contra a doença. “Se a gente facilita muito a transmissão do vírus, mesmo que hoje as vacinas coloquem um cenário em que se precisa de muito mais casos para gerar um óbito, se aumenta muito a transmissão, vai acabar tendo um aumento nas mortes”, defende.

O pesquisador do Infogripe lembra do caso do Rio de Janeiro, que flexibilizou as medidas de proteção e depois precisou recuar e voltar a restringir as aulas presenciais após aumento de casos graves em idosos, meses após as vacinas. Um movimento semelhante, aponta, acontece no Distrito Federal. “São casos pontuais. Estas divergências servem de alerta: temos que manter a vigilância e o acompanhamento para não sermos surpreendidos”, afirma.

Boas notícias e cautela

Nos últimos dias, o governador João Doria foi um dos que celebraram o arrefecimento da pandemia. “Dos 645 municípios de São Paulo, 467 cidades não apresentaram óbitos por covid-19 na última semana. São 72% dos municípios do Estado. Outras 276 cidades não apresentaram mortes pela doença no último mês”, escreveu no Twitter. São boas notícias, mas precisam ser lidas com cautela, ponderam especialistas. Marcelo Gomes não descarta, por exemplo, que a variante delta, de preocupação no momento, ainda cause problema, embora sua chegada ao país tenha até agora provocado estragos menores que antecipavam especialistas. A delta chegou ao Brasil num momento de “terra arrasada” pela Gama e de avanço da vacinação. Ou seja, encontrou uma população suscetível menor, já que havia muita gente recém-imunizada ou ainda com a proteção natural por ter tido a covid-19. Mas o futuro sobre ela ainda é incerto, especialmente diante da queda desta proteção com o passar do tempo. “As projeções mais preocupantes não se confirmaram até o momento, mas isso não garante que ela não possa vir causar estrago daqui a alguns meses. Não podemos dar o problema como encerrado”, pondera.

Seja como for, a necessidade de cuidados ainda deve permanecer durante algum tempo. Os pesquisadores ressaltam que mesmo com a permissão de atividades como shows e jogos de futebol, por exemplo, haverá necessidade medidas de proteção como público reduzido e distanciamento, testes negativos e comprovantes de vacinação. O mundo não será o mesmo de antes no curto prazo. Marcelo Gomes não descarta que mesmo após controlada a pandemia, o país adote ações semelhantes ao de países asiáticos, com uso de máscara aos sinais de possíveis surtos gripais. Quando virá este controle da crise, porém, os pesquisadores não arriscam prever. “Vai demorar para a covid-19 ser uma doença endêmica. Ela ainda é pandêmica. Depois teremos epidemia e, finalmente, endemia [quando circula habitualmente, sem trazer maiores riscos, como a gripe]. Ainda não é possível estimar com segurança quando a pandemia deve acabar, mas como tivemos uma segunda onda gigante e temos avançado nas vacinas, o Brasil andará nessa direção”, projeta Magalhães.

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