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Atuação vacilante do STF não contém a venda de armas incentivada por Bolsonaro

Moraes suspende mais uma portaria do presidente para facilitar venda de armas. Supremo analisa 15 questionamentos do gênero. Média de registro de armamentos cresceu oito vezes em dois anos

Apoiadores de Bolsonaro se manifestam em 9 de julho, em Brasília, ao lado de camisetas alusivas ao presidente.
Apoiadores de Bolsonaro se manifestam em 9 de julho, em Brasília, ao lado de camisetas alusivas ao presidente.Eraldo Peres (AP)
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O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes suspendeu, na noite desta quinta-feira, portarias que dificultavam o rastreio de armas e munições no Brasil, assinadas pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em abril de 2020. Seus colegas de STF Rosa Weber e Luiz Edson Fachin já haviam tomado decisões semelhantes sobre as medidas do mandatário para facilitar a venda de armamentos, mas o tribunal parece não ter agilidade o bastante para conter a voluntariosa política armamentista de Bolsonaro. Desde o início do Governo, 34 normas que alteram a política nacional de controle de armas foram publicadas unilateralmente pelos órgãos do Governo federal. Ao todo, a corte avalia 15 ações que apontam a inconstitucionalidade e o descumprimento de direitos e garantias fundamentais da Constituição por essas medidas. E o ministro Kassio Nunes Marques, indicado por Bolsonaro, paralisou mais uma vez qualquer deliberação sobre essas ações nesta sexta-feira, ao pedir mais tempo para analisar a questão.

Enquanto o STF toma decisões a conta-gotas, sem conseguir chegar a um veredito que seja sobre as medidas do presidente, o número de armas registradas no país passou de 46 por dia em 2018 para 378, desde 2019, um aumento de oito vezes. Dessas armas, 45.000 são pesadas, como fuzis, outrora só permitidas para forças de segurança. Para se ter uma ideia mais precisa da consequência da demora do STF na análise dessas questões, um levantamento obtido com exclusividade pelo EL PAÍS mostra que, desde a suspensão do julgamento das ações relatadas por Moares, em abril, 64.107 novas armas foram registradas por cidadãos comuns na Polícia Federal. Para a sociedade civil, decisões como a de Moraes, Weber e Fachin chegam com atraso, pois os decretos já cumpriram seu papel na agenda bolsonarista, uma vez que atualmente há um risco crescente à democracia brasileira atrelado à flexibilização das armas e à contestação do processo eleitoral.

Na decisão divulgada na noite de quinta-feira, Moraes aponta uma “ofensa à Constituição”, “à segurança pública, à dignidade, à vida e à liberdade das pessoas” e diz que os atos revogados são generalistas e abstratos. O julgamento, que estava parado na corte deste abril, foi pautado pelo ministro para esta semana —seus colegas teriam até a próxima sexta-feira, 24 de setembro, para se manifestar sobre as arguições de descumprimento de preceito fundamental 681 e 683, ações que tratam especificamente de mecanismos de fiscalização de produtos controlados pelo Exército brasileiro. Nesta sexta-feira, no entanto, Kassio Nunes Marques pediu mais tempo para estudar o processo e suspendeu não apenas esse julgamento, mas o de todas as ações que dizem respeito a armamentos.

Além do rastreamento de armas, está pendente a análise de decretos sobre armas (que estão com os ministros Edson Fachin e Carmen Lúcia); sobre o controle do Exército acerca da aquisição e o registro de armamentos e equipamentos (em análise com a ministra Rosa Weber); e sobre imposto de importação, com relatoria de Fachin. Estes julgamentos ainda estão em aberto, apesar de Weber e Fachin terem suspendido trechos de algumas normas, a exemplo do que fez Moraes nesta sexta.

Antecipação

O voto publicado por Moraes na noite de quinta-feira surpreendeu a todos, já que a retomada do julgamento estava prevista para 0h desta sexta-feira (17). Para especialistas, isso pode ter ocorrido em decorrência de uma movimentação do Governo. A um dia da sessão no STF, o Exército, responsável pela fiscalização do setor, publicou três portarias com normas de identificação, marcação e rastreamento de armas de fogo, munições e outros produtos controlados, o que foi visto como uma tentativa de esvaziar o julgamento, parado desde 16 abril.

Para Natália Pollachi, gerente de projetos de segurança pública do Instituto Sou da Paz, causa estranhamento as portarias terem sido publicadas só agora, já que havia cobrança sobre a implementação das normas há mais de um ano. “As portarias parecem avançar em algumas questões que hoje são muito precárias e gerenciadas em diversos sistemas de dados antigos, mas essas portarias não resolvem todos os problemas de segurança pública que foram criados pelos decretos em discussão”, pondera.

Em média, 419 armas ganharam as ruas por dia só este ano —oito em cada 10, adquiridas por pessoas comuns, sem qualquer relação com segurança pública ou privada. Este número, apesar de alto, exclui os caçadores, atiradores e colecionadores, conhecidos como CACs, grupo mais beneficiado pelos decretos e que hoje tem acesso até a armas antes restritas apenas às forças policiais. Atualmente os CACs têm mais armas que os militares da ativa das Forças Armadas.

Os decretos seriam analisados pela corte após liberação do ministro Alexandre de Moraes, que tem sido alvo constante de ataques de Bolsonaro e seus apoiadores, que afirmam estar sob uma “ditadura da toga”. O ministro, chamado de canalha pelo presidente na manifestação de 7 de Setembro, também é responsável pelo inquérito que investiga o financiamento e organização de atos contra as instituições e a democracia.

“É muito importante que esse julgamento aconteça neste momento, tanto pela questão da segurança pública, que se encaminha para um desastre, quanto pela questão da proteção à democracia. É muito importante que não haja mais pedidos de vistas e que a gente avance para um entendimento de todo tribunal, já que o tema e essas táticas de burlar controles democráticos vêm se prolongando indevidamente desde 2019”, explica Pollachi, ao lembrar que a publicação das portarias no dia anterior à tomada de decisão pelo Supremo sinaliza que “essa tática de gerar caos normativo segue em vigor, e isso não pode ser aceito pelo STF”.

Armas e o risco à democracia

Em 2020, um grupo paramilitar de nome “300 de Brasília” acampou na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Com representantes armados, a organização defendia medidas antidemocráticas como o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo. Líderes do movimento, como Sara Winter, chegaram a ser presos.

Há pouco mais de um mês o ex-deputado Roberto Jefferson foi preso, investigado no inquérito das milícias digitais, a pedido do STF. Jefferson vinha divulgando vídeos em que aparece armado e convoca apoiadores a não aceitar o processo eleitoral. Antes de ser preso, ele compareceu ao “II Encontro PROARMAS pela Liberdade”, uma manifestação que, de acordo com o Sou da Paz, sintetiza a relação do aumento do acesso às armas e o risco à democracia no Brasil. O encontro aconteceu no dia 9 de julho, em Brasília.

Para a diretora de Programas do Instituto Igarapé, Melina Risso, ainda que o Proarmas e o movimento armamentista em geral declarem em muitos momentos que a sua razão de ser “não é sobre armas, é sobre liberdade”, na prática, “uma das principais pautas mobilizadoras desses grupos é facilitação do acesso a armas e munições. Os discursos pró-desregulação do acesso a armas e munições e os posicionamentos anti-democráticos se misturam cada vez mais”.

Em vídeo do evento compartilhado no perfil do Twitter de Mosart Aragão, assessor especial de Jair Bolsonaro, é possível ouvir o orador do movimento pró-armas dizer que “não haverá eleição no Brasil em 2022 com voto eletrônico”. A deputada Carla Zambelli, do PSL, também esteve no ato e tuitou que “mexeu com um, mexeu com todos”.

Menos de 15 dias depois, Roberto Jefferson divulgou no WhatsApp um vídeo onde empunhava duas pistolas, dizendo ser “a última trincheira da democracia”, e que só por cima de seu cadáver implantariam “um regime ateu-marxista-comunista, onde um palhaço, macaco dá ordens às pessoas”. O macaco era uma xingamento ao embaixador chinês no Brasil, Yang Wanming.

Risco em standby

O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), disse em encontro com governadores em 23 de agosto que os atos marcados para o dia da Independência deixariam clara a situação. O ex-aliado de Bolsonaro afirmou que “caminhoneiros estão sendo organizados por milícias bolsonaristas para fechar estradas. Há estímulo pelas redes sociais para que militantes do movimento bolsonarista utilizem armas e saiam às ruas armados”.

De fato, os caminhoneiros fecharam estradas para protestar contra ministros do Supremo. Bolsonaro, que subiu o tom mais do que era seguro e não recebeu o apoio dos militares nas ruas como esperava, recuou e pediu que os caminhoneiros voltassem ao trabalho, o que gerou uma onda de descontentamento entre os bolsonaristas. O presidente precisou ainda pedir desculpas ao Supremo e dizer que “respeita a democracia”.

Jair Bolsonaro vestiu a fantasia de democrata, mas seu filho e deputado federal, Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), dá continuidade à cartilha armamentista sem abalos. No dia 1º de setembro ele se encontrou com o diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal, Silvanei Marques, e Marcos Pollon, presidente da Associação Pro-Armas, a organizadora do ato armamentista de 9 de julho.

Segundo a própria PRF, o objetivo era “trazer segurança jurídica e orientação aos policiais rodoviários federais”. O resultado da reunião foi a publicação de uma nota técnica que amplia o que era considerado trajeto quando se fala de porte de armas. Agora os CACs podem portar armas nas ruas a qualquer hora, independente do itinerário. Antes, isso era regulado. A mudança foi comemorada por clubes de tiro.

Afronta ao STF e à democracia

A nota traz pontos contrários à decisão da ministra Rosa Weber sobre a constitucionalidade dos decretos de armas, que diz que “o porte de armas deverá ser autorizado pela Polícia Federal”. Dois dias após a publicação da mensagem da PRF, Eduardo Bolsonaro e Pollon se encontraram no CPAC, evento “conservador” promovido pelo deputado e por aliados, onde o representante da Pro-Arnas disse que quando você compra uma arma, você decide que não será mais vítima, “você reage ao ‘luladrão’, você reage à corte que está querendo destruir o país. Temos que reagir”.

Para Melina Risso, do Instituo Igarapé, a possibilidade de que armas sejam associadas a questionamentos de resultados eleitorais é preocupante. “Os reiterados posicionamentos do próprio Governo federal e de muitos de seus apoiadores que estimulam o uso de armas por cidadãos como ferramenta para imposição de vontades políticas são graves. Em uma democracia, o uso da força deve ser excepcionalíssimo. Em um contexto de sucessivas ameaças à democracia, de intensa polarização e de instrumentalização política do controle de armas e munições”, diz.

Os homicídios voltaram a subir em 2020, tendo aumentado também a proporção de crimes cometida com uso de armas de fogo (78%). Para as organizações, o julgamento definitivo deste conjunto de ações é fundamental para barrar o crescimento do número de armas em circulação e representará também um importante marco de proteção ao Estatuto do Desarmamento contra os constantes ataques que ameaçam os mecanismos de controle responsável de armas de fogo que ele consolida. Assim que o STF estiver pronto para decidir.

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