_
_
_
_
_

‘Apagão na ciência’ deixa cientistas sem “documento de identidade”

Acesso à principal plataforma de currículos de pesquisadores do país, o CNPQ, estava fora do ar desde 23 de julho e foi parcialmente restabelecido nesta terça-feira. Orçamento do órgão é o menor em 21 anos

Gabriela Ferreira, pós-doutoranda na USP: “Ficamos incrédulos que uma coisa assim teria acontecido, ainda mais com a plataforma Lattes".
Gabriela Ferreira, pós-doutoranda na USP: “Ficamos incrédulos que uma coisa assim teria acontecido, ainda mais com a plataforma Lattes".Lucio Telles
Marina Rossi
Mais informações
8 de Março, Dia Intenacional da Mulher 2020
A jovem cientista da escola pública que chegou onde nenhum brasileiro chegou
Fabio Furlan, da UFABC.
À margem de ideologias, a realidade dos cientistas que tiveram projetos congelados no Brasil
Pesquisadora do vírus da zika na USP, no ano passado.
Corte de quase metade das verbas em ciência compromete pesquisas de zika até câncer
Sonia Guimarães no ITA.
Quem são as cientistas negras brasileiras?

A pós-doutoranda da Universidade de São Paulo (USP), Gabriela Ferreira, 38, pesquisa gênero na ciência, tecnologia e informação. Uma das principais fontes de pesquisa para ela é a base de dados mantida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), entidade ligada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) para incentivo à pesquisa no Brasil. Por isso, quando soube que parte das informações da plataforma estava fora do ar, sua primeira reação foi um susto. “Primeiro ficamos incrédulos”, diz ela. “Nossa principal fonte de pesquisa é a plataforma Lattes [repositório que abriga quase todos os currículos de pesquisadores do Brasil]. Além disso, o Conselho realiza um censo, que também utilizamos muito”, explica. “Por sorte eu havia baixado tudo na semana passada, antes de sair do ar”.

Gabriela e outros milhares de cientistas do país estão desde o final da tarde de 23 de julho sem acesso pleno a seu principal documento de identidade, como ela mesma define. As plataformas Lattes, que incluem o Currículo Lattes, Diretório de Grupos de Pesquisa, Diretório de Instituições e Extrator Lattes, além da plataforma Carlos Chagas estão fora dor ar. Nesta terça, voltaram parcialmente, mas chegar aos currículos ainda é difícil. O apagão de dados, como está sendo chamado pelos pesquisadores, ocorre na esteira da falta de prestígio com que o Governo de Jair Bolsonaro vem tratando a ciência no país. Levantamento realizado pelo jornal O Globo no final de maio mostrou que o Orçamento do CNPq deste ano é o menor desde o ano 2000: 1,21 bilhão de reais, quase metade do montante destinado em 2000, quando foram destinados 2,3 bilhões de reais.

Embora os dados estejam suspensos oficialmente há duas semanas, antes disso alguns pesquisadores relatam que tentaram acessar a plataforma Lattes e receberam uma mensagem requisitando que a senha de acesso fosse mudada. Isso porque, segundo a mensagem, teria ocorrido uma “tentativa de vazamento de dados”. Ainda não é possível relacionar o apagão de agora a esse fato. Procurado, o MCTI não respondeu a esse questionamento.

Em maio do ano passado, o MCTI assinou um acordo com a empresa norte-americana de tecnologia Cisco, “para impulsionar o desenvolvimento de habilidades e transformação digital no Brasil”. Dentre as ações do acordo, está a criação de uma “plataforma de monitoramento do Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação”. Segundo consta no site do Ministério, a plataforma visa “dar suporte ao monitoramento, gestão e definição de políticas públicas no país, através da consolidação de informações sobre os diversos programas, ações, iniciativas e atores, públicos e privados, envolvidos com a pesquisa, desenvolvimento tecnológico e inovação no Brasil”.

Questionado, o ministério não respondeu, até o fechamento desta reportagem, se o que está acontecendo agora tem a ver com essa mudança de plataforma. A reportagem também tentou contato com a Cisco, que não respondeu às perguntas enviadas. Mas diante das dúvidas, o deputado Danilo Cabral (PSB-PE) protocolou na Câmara dos Deputados um requerimento de informação com 10 questionamentos sobre esse apagão. Um deles é sobre o possível vazamento de dados relatado por alguns pesquisadores. Outra pergunta é se os dados do CNPq estão armazenados em servidores próprios ou terceirizados.

Mensagem que um pesquisador recebeu ao tentar acessar a plataforma Lattes antes que de sair no ar, no último dia 24

O deputado encaminhou também à Comissão de Educação na Câmara requerimento de convocação do ministro Marcos Pontes para prestar esclarecimentos sobre o ocorrido. Ambos os pedidos estavam previstos para tramitar neste início de agosto, com o fim do recesso parlamentar . O deputado Cabral diz que o que está acontecendo agora é parte de uma política de sucateamento da pesquisa no país. “Não é um descaso pontual”, diz. “Existe em curso uma política pública de desmonte da ciência no Brasil e o CNPq é a ponta do iceberg de um conjunto de graves consequências que vamos ter em relação a essa política”.

Cortes no Orçamento

Neste ano, o segundo da pandemia, momento em que o fomento à pesquisa por novas vacinas e tratamento para o coronavírus deveria estar em alta, o Orçamento do CNPq, assim como nos últimos anos, vem sendo enxugado. De acordo com o levantamento feito pelo Globo, com base no Sistema Integrado de Operações (Siop), do Governo Federal, os recursos à pesquisa por meio do CNPq no país hoje é de 1,21 bilhão, quase metade da cifra do ano 2000. O número de alunos na pós-graduação, por sua vez, dobrou no mesmo período, passando de 162.000 para 320.000.

O presidente do CNPq, Evaldo Vilela, no entanto, diz que a suspensão do acesso aos dados não tem relação com a falta de verba. “Não temos problema de Orçamento, não é uma questão financeira. Nós temos recursos”, disse Vilela, em um vídeo em que ele aparece juntamente com o ministro Marcos Pontes publicado na última quarta-feira para tranquilizar os cientistas acerca do ocorrido. Segundo o ministro, “é uma questão de tempo” para que a situação seja normalizada. “Está tudo sob controle”, finalizou ele.

Ainda assim, os pesquisadores estão apreensivos. “Está um desespero”, diz Sônia Guimarães, 65, professora de física e orientadora do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA). “Todo mundo usa o Lattes toda hora”.

O MCTI informou, por meio de nota, que o problema que causou a indisponibilidade dos sistemas já foi diagnosticado e os procedimentos para sua reparação foram iniciados. Mas a nota não fala sobre quando os dados estarão disponíveis novamente. Garante, no entanto, que o pagamento das bolsas não será afetado e que “não há perda de dados da Plataforma Lattes”, pois há backups dos dados. Nesta terça, o instituto informou pelo Twitter que já havia restabelecido parcialmente os acessos, mas para isso é preciso usar um link específico de busca ou saber um número de identificação específico do pesquisador que se quer procurar. Não é possível acessar o Lattes pela página inicial, por exemplo, ou buscá-lo pelo Google. Ainda assim, no comentário das postagens há pesquisadores reclamando que não conseguem chegar a seus currículos.

Para Flávia Calé, presidenta da Associação Nacional de Pós-graduandos (ANPG), o apagão está sim relacionado aos cortes no Orçamento. “O ministro [Marcos Pontes] disse que não tem nada a ver. Não é verdade”, diz. “O CNPq tem hoje um Orçamento muito reduzido e precisa fazer uma escolha entre financiar a pesquisa ou manter seu funcionamento”, afirma ela. “No início do ano, o CNPq solicitou abrir concurso para 180 servidores e ainda não tem data para realização. Hoje funciona com 300 servidores quando deveria ter 800 para funcionar plenamente”.

Enquanto isso, os pesquisadores temem perder prazos para concorrer a bolsas. “O Lattes é nosso repositório de dados, e até então era o lugar mais confiável que a gente tinha para guardar e sistematizar as nossas informações”, explica Gabriela Ferreira. “É essencial para a forma como a carreira universitária está estruturada no Brasil”.

Diante do desmonte, a professora Sônia Guimarães resume o clima. “Está todo mundo muito pra baixo”, disse. E a consequência desse sucateamento é a evasão dos cientistas do país. “Os alunos que estão em formação estão indo embora para o exterior. Se vão voltar eu não sei. Não está valendo a pena ficar aqui, porque sem recurso não dá para fazer nada”.

Apoie nosso jornalismo. Assine o EL PAÍS clicando aqui

Inscreva-se aqui para receber a newsletter diária do EL PAÍS Brasil: reportagens, análises, entrevistas exclusivas e as principais informações do dia no seu e-mail, de segunda a sexta. Inscreva-se também para receber nossa newsletter semanal aos sábados, com os destaques da cobertura na semana.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_