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Na volta às aulas, a ausência dos que tiveram que abandonar os estudos:“Queria ser médica, mas não consegui continuar”

Falta de computador, de internet e de apoio do Governo afasta estudantes brasileiros pobres da educação, ampliando o fosso da desigualdade. Enem tem o menor número de inscrições desde 2005

Solange Maria Olímpio e os três filhos, Francisco Lairton, Soraya e Richarlisson.
Solange Maria Olímpio e os três filhos, Francisco Lairton, Soraya e Richarlisson.Nicolas Leiva
Beatriz Jucá

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Érika Maciel de Souza dos Santos, de 16 anos, queria ser médica. Mas às vésperas do vestibular, ela está frustrada. Há meses deixou de acompanhar regularmente as aulas do 3º ano do Ensino Médio e desistiu de prestar o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), sua esperança de ingresso na universidade. No início da pandemia, ela morava na casa da avó no bairro Goiabeiras, na periferia de Fortaleza. Acompanhava as aulas à distância por meio de um celular emprestado, mas só depois de meses o pai conseguiu ajudá-la a colocar Wi-fi em casa e lhe deu um aparelho próprio. Mesmo assim, um problema burocrático com o e-mail institucional (requisito para o contato por vídeo por alguns professores) a fez ser rejeitada duas vezes nas videochamadas com o professor. Foi a gota d’água. “Faz quatro meses que eu não faço as atividades e também desisti de ir atrás. Tava difícil aprender”, conta.

As dificuldades enfrentadas pelos estudantes pobres brasileiros durante o ensino remoto estão aumentando a distância entre eles e suas escolas. Principal porta de entrada no Brasil para as universidades, o Enem foi um termômetro do problema: teve neste ano apenas 3,1 milhões de inscrições confirmadas, o menor número desde 2005, uma consequência, segundo especialistas, também da perda de vínculo dos alunos com a escola durante o longo período de ensino remoto limitado. No ano passado, o primeiro da pandemia, 172.000 crianças entre 6 e 17 anos abandonaram a escola no país, segundo estimativa de um relatório do Banco Mundial. No momento em que Estados e municípios começam a discutir uma retomada presencial, estima-se que 1,5 milhão de jovens estejam fora da escola.

Érika já não fazia as atividades escolares regularmente nem tinha esperanças de passar no curso de medicina, um dos mais concorridos do país, no momento em que abriram as inscrições para o Enem. “Me sinto desmotivada. Acho difícil que vá conseguir ser médica um dia”, conta. Ela até considera voltar à escola para concluir o Ensino Médio, mas não sabe quando, talvez depois que toda a população for vacinada. Por enquanto, ela se dedica ao surf e se prepara para competir. “Já sei que para mim a medicina não vai dar. Estou vendo o que fazer”.

Érika Maciel de Souza dos Santos, de 16 anos.
Érika Maciel de Souza dos Santos, de 16 anos.Nicolas Leiva

Quando o smartphone de segunda mão que Solange Maria Olímpio dos Santos comprou parcelado em quatro vezes caiu no chão e apagou para sempre, abriu-se de vez o abismo entre seus três filhos e a escola. Francisco Lairton (16 anos), Richarlisson (15 anos) e Soraya (12 anos) contam que revezaram por meses o celular da mãe, em um verdadeiro malabarismo para seguir estudando à distância enquanto a pandemia do coronavírus mantinha as escolas fechadas. A vizinha emprestou a senha do Wi-Fi e cada um tinha um horário para usar o aparelho. Às vezes, vinham os problemas de choque de horários das atividades. Ou acontecia de tudo travar e os exercícios dos mais novos chegarem aos montes. “Chegava tudo de uma vez, e a gente não tinha tempo de fazer todas as tarefas”, lembra Richarlisson. Mas todos iam levando como dava e tentando abraçar pelo menos parte do conteúdo e das aulas oferecidas. Até o celular pifar de vez no primeiro semestre deste ano.

“Agora estão os três sem estudar. Não teve jeito, eu não posso comprar outro”, lamenta Solange, em pé na pequena sala da casa que alugou por 300 reais no bairro Barra do Ceará, na periferia de Fortaleza. Os 1.200 reais que ela, mãe solo, consegue juntar por mês com seu trabalho lavando roupa, o que recebe de programas sociais e uma “ajuda” muito esporádica do pai dos dois caçulas já não dão conta de custear o básico. Comprar celular novo para os meninos estudarem, então? “Impossível. Não posso”, ela diz, mostrando um caderno com os pontos da rifa de um perfume que pegou fiado com uma amiga revendedora. É com a venda destes pontos que ela espera pagar o tal perfume e lucrar 80 reais para melhorar o orçamento do próximo mês. “Tenho que me virar e mesmo assim não sobra. É muito difícil.”


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Francisco Lairton, o filho mais velho, conta estar tentando conseguir um dos 150.000 tablets que começaram a ser distribuídos pelo Governo do Ceará neste ano aos alunos no 1° ano do Ensino Médio, mas, sem sucesso até agora, acredita que ele e os irmãos só conseguirão retomar os estudos quando as escolas voltarem presencialmente. As secretarias de educação do Estado e do município de Fortaleza afirmam que têm distribuído tablets e chips com pacote mensal de 20GB de internet móvel para tentar reduzir o problema da exclusão digital dos estudantes. O programa, na esfera estadual, deve se tornar permanente. Mas, por enquanto, Francisco conta que ainda não tem um aparelho para voltar a estudar e usa seu tempo ajudando a mãe em casa e dando aulas de surf no bairro. Ele diz querer concluir o Ensino Médio “para ter um emprego bom no futuro”, mas mesmo com a iminência da volta gradual das aulas presenciais, vê novos abismos se formarem diante de si e na contramão da conclusão do colégio.

As escolas estaduais no Ceará devem começar a ser reabertas a partir de agosto e as do município de Fortaleza em setembro, mas ambas em um sistema híbrido (ou seja, com parte das aulas presenciais e outra parte remota). Até lá, o segundo semestre do ano letivo será retomado ainda na modalidade à distância. Sem internet própria nem equipamentos para acessar conteúdos, os filhos de Solange acham que continuarão sem estudar no curto prazo. “Não desisti totalmente da escola, mas ficamos mais ainda sem condição de estudar”, afirma Francisco. Um estudo do Banco Mundial dá a dimensão do problema em todo o país: 39% dos brasileiros mais pobres não têm acesso à internet. E, apesar do duro impacto disso na educação nestes tempos de pandemia, o Governo Bolsonaro tenta derrubar no Supremo Tribunal Federal uma lei aprovada no Congresso que destina à inclusão digital 3,5 bilhões de reais do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações.

Os irmãos Francisco Lairton, Soraya e Richarlisson.
Os irmãos Francisco Lairton, Soraya e Richarlisson.Nicolas Leiva

“Vão voltar ao começo para ensinar quem não tinha celular?”

A história da família Olímpio desenha o fosso terrível que o combo crise sanitária, desigualdade social e decisões controversas dos gestores públicos imprimiu no ensino do país. Ainda não se sabe muito bem qual é o déficit de aprendizagem deixado no período com mais adversidades para a educação brasileira, quando os alunos tiveram bem menos contato com os professores e não foram avaliados. Em uma estratégia de redução de danos, o Conselho Nacional de Educação sugeriu a aprovação mesmo dos que tiveram problemas para aprender o conteúdo no ano passado, já que reprová-los poderia ampliar ainda mais a evasão escolar.

“Quero voltar para a escola, mas acho que vai ser muito difícil de aprender”, diz, preocupado, Francisco. Depois de ser aprovado no 9° ano do Fundamental II com a sensação de ter aprendido muito pouco no seu ensino remoto problemático, ele deixou de acompanhar as aulas do 1º ano do Ensino Médio. E diz ter tido pouquíssimo contato com matérias novas, como Física e Química. “A pessoa fica perdida né? Será se vão voltar pro começo para ensinar quem não tinha celular?”, questiona. O receio não é infundado. Um estudo do Unicef mostra que, no mundo, um em cada três países não está tomando medidas para ajudar os alunos a colocarem em dia o aprendizado após o fechamento das escolas.

O Brasil agora se prepara para ampliar a retomada das aulas presenciais no ensino público. A primeira preocupação é com a segurança sanitária para evitar surtos de covid-19, e os Estados estão abraçando diferentes estratégias. Alguns, como o Ceará e Roraima, ensaiam antecipar a segunda dose das vacinas da AstraZeneca para que os trabalhadores da educação completem o esquema vacinal antes da retomada. Já São Paulo anunciou que vai antecipar a vacinação de adolescentes de 12 a 17 para agosto ―ainda não há aprovação de vacinas para crianças. Há ainda reações mais enérgicas, como a da Bahia, que considera cortar salários de professores que não retornarem a partir do fim do mês. Grande parte das escolas já receberam reformas e compraram equipamentos de proteção individual para ampliar a proteção. Mesmo assim, parte da comunidade escolar ainda está receosa, já que a maioria dos alunos não estará vacinada e a variante delta do coronavírus começa a ganhar mais espaço no país.

“A reabertura das escolas é para ontem. O Brasil é recordista em dias de escola fechada no mundo”, defende a presidente do instituto Articule, Alessandra Gotti, que tem orientado gestores públicos com as estratégias de retomada por meio de pactuação entre governos, sistema de justiça, legislativo e sociedade. No país que teve em média 279 dias de suspensão de aulas presenciais durante o último ano letivo segundo aponta uma pesquisa do Inep, somente 16,2% das cidades retomaram as aulas até agora. O cenário é, acima de tudo, desigual: enquanto em 22 Estados e no Distrito Federal as aulas particulares já foram retomadas, nas escolas públicas isso só aconteceu em 12.

Somente 16,2% das cidades brasileiras retomaram as aulas presenciais até agora.
Somente 16,2% das cidades brasileiras retomaram as aulas presenciais até agora.Nicolas Leiva

Escolas fechadas como regra e suas consequências para vários anos

Gotti pondera que o retorno à escola não pode ser em qualquer condição e que é preciso garantir os protocolos de biossegurança, mas lembra que a pandemia trouxe retrocessos de até duas décadas à educação do país e que é preciso correr atrás do prejuízo. Um resultado, aponta, influenciado pela ausência de apoio do Governo Federal aos estados e municípios durante a pandemia, embora o ministro da Educação, Milton Ribeiro, agora coloque pressão pela retomada. “Quero deixar claro que, no Brasil, a decisão de abertura foi delegada a estados e municípios, não tendo o Governo federal poder e decisão sobre o tema”, disse semana passada num pronunciamento. “O Ministério da Educação não pode determinar o retorno presencial das aulas, caso contrário eu já teria determinado.”

O caminho para reduzir o fosso na educação é longo, e Gotti dá um norte dos desafios futuros: é preciso fazer uma avaliação e diagnóstico dos impactos do fechamento das escolas por quase 16 meses, estimular a busca ativa aos alunos que evadiram e dar um apoio multidisciplinar para que o estudante supere os déficits de aprendizado, seja motivado e também tenha suporte emocional, já que muitos desenvolveram quadros de ansiedade e tiveram perdas nas suas famílias pela pandemia. “Escolas fechadas como regra foi um erro e vamos lidar com ele pelos próximos anos”, diz Gotti. Há efeitos mais imediatos que já impactam a vida de milhares de crianças e adolescentes no país ― e ajudam a empurrá-los para longe da escola.

“Não consigo assistir aula, mas estudo só porque sei que vai ter Enem”

A poucos metros da casa de Érika, João Guilherme Moreira da Silva, de 16 anos, está decidido a manter a resiliência. Ele mora com os pais, o irmão e os avós. Pouco antes da pandemia, o pai, mototaxista, sofreu um acidente de trânsito e ficou paraplégico. A mãe então precisou parar de trabalhar para cuidar dele, a renda familiar ficou resumida apenas à aposentadoria do avô. Para completar, veio uma crise econômica. “A gente tinha uma vida boa, mas minha mãe precisou gastar o que tinha na reforma da casa para receber meu pai e veio a pandemia”, conta. A situação financeira complicou e só agora a mãe está conseguindo fazer cestas de café da manhã para tentar melhorar a renda. João Guilherme se viu morando a uma quadra da escola e tendo um quarto organizado com escrivaninha para estudar. Tinha uma estrutura muito melhor que a maioria de seus colegas, mas viu o ensino remoto ficar complicado quando foi assaltado no bairro e lhe roubaram o celular e a família não pôde comprar outro.

João Guilherme Moreira da Silva, de 16 anos, sonha em ser advogado.
João Guilherme Moreira da Silva, de 16 anos, sonha em ser advogado.Nicolas Leiva

Movido pelo sonho de cursar a faculdade de Direito, ele conta que passou a imprimir conteúdos e a buscar a escola para pegar exercícios em folhas impressas e assim manter uma rotina de estudos. O problema é que muitas vezes não conseguia contato com ninguém lá, segundo afirma. Mesmo assim, tentou perseverar. “Se não consigo assistir aula, estudo só em casa porque sei que o Enem vai ter”, explica. Ele saca um Vade Mecum (livro de Direito) da gaveta da escrivaninha e o exibe como um trunfo do objetivo que tem certeza que um dia conseguirá: “Comprei há um tempo porque estava em promoção por 30 reais. Meu sonho é ser advogado”. No último mês de junho, um tio que mora no Rio de Janeiro soube de sua situação ―que já durava alguns meses― e lhe presenteou com um computador. João Guilherme conseguiu retomar então as aulas remotas cerca de um mês antes de sair de férias e voltou a se empolgar com a chance de ir à universidade. “Nunca gostei de estudar não, mas desde o ano passado tô assim porque sei que é difícil passar em Direito”, confessa.

As coisas para ele já melhoraram, mas João Guilherme afirma que ainda precisa lidar com um novo problema que veio forte na pandemia: a ansiedade. A situação de saúde do pai e os problemas para seguir na escola o deixavam cada vez mais agitado e triste. Decidiu andar de skate pelo bairro para distrair. “Me ofereciam droga direto. Não aceitei. Meu objetivo é ser advogado. Agora um amigo me chamou para surfar e é o que está melhorando”, conta. O amparo veio com as aulas em um projeto social na Escolinha de Surf Cesar Silva, desenvolvido por membros da própria comunidade para afastar os jovens do crime e das drogas.

“Dos meus 64 alunos, só 25 fazem as atividades regularmente”

Na outra ponta do bairro, a casa do porteiro Josué de Alencar e da professora Maria Osalyta Barbosa parece até um oásis. Como ele trabalha à noite e ela tem mais de 20 anos de experiência na educação, os filhos Ingrid (18 anos), Lázaro (11 anos) e Caroline (7 anos) têm a sorte de um acompanhamento muito próximo nas aulas remotas. Especialmente os dois menores contam com os pais para ajudá-los em todas as suas tarefas escolares. “O dia a dia na escola é pesado, mas à distância é mais. Eu me viro nos trinta para dar conta dos meus alunos e dos meus filhos”, conta Osalyta, que ensina estudantes do 5º ano de uma escola pública. Mas se o ensino remoto deu razoavelmente certo dentro da casa dela, a avaliação não é a mesma com as dezenas de alunos aos quais ela tenta dar suporte pelo celular, a maioria impactada fortemente pela desigualdade social na pandemia. “Dos 64 alunos com quem trabalho, só 25 fazem as aulas e conversam comigo regularmente. Procuro os pais sempre, mas muitos dizem que não têm o que fazer”, diz.

Caroline e os irmãos contam com a ajuda diária dos pais e têm conseguido atravessar bem a fase de ensino remoto.
Caroline e os irmãos contam com a ajuda diária dos pais e têm conseguido atravessar bem a fase de ensino remoto.Nicolas Leiva

Ela diz acompanhar casos em que só há um celular para cinco irmãos, estudantes que precisam trabalhar para ajudar na renda de casa e vários outros que não têm internet e às vezes sequer comida em casa. “É difícil cobrar destas crianças. Acaba sendo muito frustrante para nós também”, narra a professora. “Tem dias que eu recebo a tarefa meia noite porque é a hora que eles conseguem um celular para fazer. Eu vou dizer não a eles? Acabo trabalhando o tempo todo. Muitas crianças também perderam os pais ou os responsáveis que eram os provedores pela covid-19. Imagine você receber um áudio de uma criança: ‘Tia, não tem nada pra comer hoje. Quando sai a cesta [básica] da escola?’ É muito chocante”.

Gotti defende que o retorno das aulas presenciais precisa contar com uma estratégia multidisciplinar para dar respostas a todos estes problemas. Além do diagnóstico que precisará ser feito na comunidade para montar políticas que permitam ao aluno recuperar o que ele não aprendeu no ensino remoto e avançar, será necessário intensificar a busca ativa aos que abandonaram os estudos e criar uma rede capaz de apoiar os estudantes emocionalmente. “A escola [na retomada] precisará se colocar também como ponto de segurança para apoiá-los nas dificuldades”, pontua Gotti. “A gente já tinha no Brasil muitos desafios, mas eles foram potencializados na pandemia. Temos um sinal vermelho aí.”

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