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Governo Bolsonaro
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

O escasso debate técnico na construção da reforma administrativa

Audiências na Câmara mostram equipe econômica do Governo amparada em números incompletos e projeções irreais, enquanto categorias do funcionalismo batem cabeça para resguardar especificidades

Prédio do Congresso Nacional visto do Supremo Tribunal Federal.
Prédio do Congresso Nacional visto do Supremo Tribunal Federal.Ueslei Marcelino (Reuters)
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Caminha na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda à Constituição 32/2020, apresentada pelo Governo federal com a promessa de construção de uma administração pública menos onerosa e mais eficaz. Desde que o projeto chegou ao Parlamento, em setembro de 2020, muito se falou sobre erros e acertos, mas o fato é que o debate ainda carece de um bom aprofundamento técnico.

A reforma é uma oportunidade de oferecer à população brasileira o atendimento célere, eficiente e de qualidade que ela merece. Entretanto, após a série de audiências públicas na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara e na comissão especial, o que se percebe é, de um lado, a equipe econômica do Governo amparada em números incompletos e projeções irreais; de outro, categorias do funcionalismo batendo cabeça para resguardar especificidades.

Uma mudança na administração pública não pode se limitar a essa polarização: ela precisa estar amparada na Constituição Federal, fundamentada em dados reais e em objetivos claros. Afinal, qual serviço público queremos? Um serviço eficiente que ampare o Estado no combate às mazelas brasileiras ou um serviço suscetível a interesses escusos? As provocações pretendem a reflexão sobre trechos do texto que violam a Constituição e fragilizam o funcionalismo, precarizando a saúde, a educação e o atendimento à população.

Um dos pontos é o fim da estabilidade —dispositivo imprescindível para a democracia e para o bom funcionamento do Estado. A estabilidade é a garantia da independência. A estabilidade é prerrogativa que não pertence ao servidor, mas ao cargo, à sociedade. Ela é blindagem para que o servidor exerça o seu trabalho sem interferências de ambições ilegítimas.

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Distorções devem, sim, ser combatidas, mas eliminar a estabilidade seria abrir uma perigosa porta para a captura do Estado por interesses de entes políticos e privados, e, consequentemente, para a corrupção. O caminho para punição do mau servidor não está no fim da estabilidade, mas em processos administrativos disciplinares objetivos. O Direito Administrativo dispõe de meios para aferir eficiência e desempenho impondo sanções, inclusive, demissão para os profissionais.

Outro ponto essencial é o vínculo de experiência. Será extremamente prejudicial para o Estado admitir que um servidor ainda não aprovado em concurso público tenha acesso a informações estratégicas. Como alguém com vínculo precário desenvolverá atividades típicas de Estado como a de um auditor, um procurador do estado, um advogado da União? Isso viola frontalmente o princípio da segurança jurídica.

E ter pessoas sem vínculo em cargos de liderança? A criação dos “cargos de liderança” é apenas um eufemismo para o aparelhamento do Estado —o popular cabide de emprego. Estudo divulgado pela Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle do Senado Federal estima que a reforma proposta permite que quase um milhão de cargos sejam ocupados por indicações políticas. Funções estratégicas e técnicas não podem ser delegadas a investiduras transitórias. Elas devem ser ocupadas única e exclusivamente por servidores públicos aprovados em concursos de prova e títulos.

Importante ressaltar a alteração feita pelo relator Darci de Matos (PSD-SC) na CCJ, por meio da emenda supressiva, para retirar do texto a proibição do exercício de qualquer outra atividade remunerada por parte dos servidores. A dedicação exclusiva proposta na PEC é inconstitucional e representa um enorme retrocesso para os atuais e futuros servidores.

A livre iniciativa do trabalho é cláusula pétrea. É inconcebível que um servidor ao escrever um livro, por exemplo, não possa receber direitos autorais. Temos que resgatar aqueles servidores que estão desestimulados e não os jogar em uma vala da acomodação. É fundamental que a comissão especial mantenha a alteração proposta.

O Congresso está debruçado na análise de uma proposta alheia à realidade e, aprovada como está, a eficácia certamente será comprometida. Uma mudança constitucional não pode nascer de uma proposta que, além de não promover alterações significativas na redução de gastos públicos, traz inconsistências, inconstitucionalidades e sucateamento do atendimento à população.

Os debates precisam se amparar em dados reais e não em falácias. É o que se espera da análise do mérito na comissão especial e do relatório do deputado Arthur Maia (DEM-BA). O Brasil tem um dos menores serviços públicos do mundo. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), atualmente, o país tem 12,1 milhões de servidores, considerando todos os poderes, entes federados, militares e estatutários. Isso representa 5,6% da população. Nos países nórdicos —os melhores Índices de Desenvolvimento Humano— mais de 20% da população é composta por servidores públicos. Nos Estados Unidos, 16%.

Uma reforma administrativa tem de ser forjada em um tripé fundamental de eficiência: boas leis; vontade política para o cumprimento delas; e a criação de uma cultura de eficiência e prestação de contas à sociedade. Uma nova administração pública precisa nascer ancorada e inspirada pelos valores e princípios da República, da democracia e do desenvolvimento nacional.

As instituições são permanentes e nós, servidores públicos, passageiros. A pandemia nos mostrou milhares de brasileiros que dependem da mão do Estado e quem move esta mão são os servidores. A reforma do Estado é fundamental, mas o compromisso tem de ser pela melhoria da qualidade de vida dos cidadãos. Esse é o legado que queremos deixar às futuras gerações.

Vicente Martins Prata Braga é presidente da Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do DF (Anape), procurador do Estado do Ceará e doutor em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo (USP).

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