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Exército assegura que produziu cloroquina a mando da Defesa e da Saúde, mas ministérios não admitem que ordem partiu deles

Medicamento está no centro de um jogo de empurra e de contradições entre Defesa, Saúde e o Laboratório do Exército. Órgão técnico, Conitec informa à CPI que não recebeu nenhum pedido para análise da incorporação desse medicamento para tratamento da covid-19

Medicamentos no Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército (LQFEx).
Medicamentos no Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército (LQFEx). Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército (LQFEx)

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Quem deu a ordem para que o laboratório do Exército brasileiro aumentasse a produção de cloroquina no ano passado? A cada dia que aumenta a certeza de que a gestão da pandemia foi caótica no Brasil, o jogo de empurra entre os ministérios da Saúde e Defesa e o Exército sobre quem mandou produzir os milhares de comprimidos do medicamento fica mais evidente. À reportagem, o Exército reafirmou que produziu o medicamento a partir da demanda externa dos dois ministérios. “O Centro de Comunicação Social do Exército informa que o Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército (LQFEx) produziu cloroquina em atendimento às demandas do Ministério da Defesa e do Ministério da Saúde”, diz nota enviada ao EL PAÍS no último final de semana.

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AME8423. BRASILIA (BRASIL), 27/03/2020.- Trabajadores del Laboratorio Central de Salud Pública de Brasilia estudian pruebas de COVID-19 este viernes, en Brasilia (Brasil). El laboratorio en la capital brasileña comenzará a trabajar 24 horas por día a partir del lunes para disminuir el tiempo de divulgación de los exámenes de pacientes con sospecha de coronavirus. La Fundación Oswaldo Cruz (Fiocruz), el mayor centro de investigación en salud de América Latina, informó este viernes que espera iniciar "muy pronto" los ensayos clínicos en Brasil contra el COVID-19, en el marco de una acción global coordinada por la Organización Mundial de la Salud (OMS). EFE/ Joédson Alves
Produção de cloroquina pelo Exército aumenta 80 vezes, mesmo sem conclusão de sua eficácia contra a covid-19

Porém, reportagem do EL PAÍS de 6 de julho mostrou que, ao menos oficialmente, ninguém pediu para o Laboratório do Exército produzir o medicamento. Em documentos enviados à CPI da Pandemia, o Ministério da Saúde afirma que a ordem para a produção do medicamento não partiu de lá. “Informamos que não houve envio, por parte do Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos (DAF), de nenhum ofício ao Ministério da Defesa solicitando a produção de cloroquina e hidroxicloroquina”, diz o documento.

A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) ―responsável por assessorar o Ministério da Saúde quanto à incorporação de tecnologias pelo Sistema Único de Saúde (SUS)― informou à CPI que não foi feito nenhum pedido de “incorporação da cloroquina ou hidroxicloroquina para tratamento da covid-19″. À comissão foram solicitadas análises das vacinas Fiocruz-AstraZeneca e Pfizer-Wyeth, bem como à utilização do ECMO ―uma espécie de bomba para fazer circular o sangue por um pulmão artificial fora do corpo― em pacientes com síndrome respiratória aguda grave decorrente de infecções virais. O Ministério da Saúde também pediu à Conitec a incorporação de medicamentos específicos, como casirivimabe e imdevimabe, que tiveram o uso emergencial aprovado pela Anvisa. Também foi solicitado a elaboração de diretrizes para tratamento da covid-19.

“Alguns medicamentos foram testados e não mostraram benefícios clínicos na população de pacientes hospitalizados, não devendo ser utilizados, sendo eles: hidroxicloroquina ou cloroquina, azitromicina, lopinavir/ritonavir, colchicina e plasma convalescente. A ivermectina e a associação de casirivimabe + imdevimabe não possuem evidência que justifiquem seu uso em pacientes hospitalizados, não devendo ser utilizados nessa população”, informou a Conitec em nota. Hidroxicloroquina ou cloroquina são usadas para combater a malária.

A Conitec analisa neste momento a incorporação do medicamento remdesivir, da empresa Gilead Sciences Farmacêutica. Trata-se de um processo complexo que passa por reuniões, consulta pública, análise técnica antes de uma decisão final. A cloroquina, por outro lado, não passou por nenhum crivo para ter sua produção ampliada e sua distribuição realizada pelo SUS. O Ministério da Defesa, também nos documentos enviados à CPI, diz que atendeu “à orientação e à demanda do Ministério da Saúde para a produção de cloroquina” no Laboratório Químico Farmacêutico do Exército. O EL PAÍS procurou então o Exército, que só respondeu aos questionamentos depois de já publicada a reportagem. A pergunta sobre quem mandou produzir e distribuir os milhares de comprimidos de cloroquina ainda segue com respostas desencontradas.

Esse jogo de empurra levanta mais suspeitas sobre o medicamento. Defendido sistematicamente pelo presidente Bolsonaro e seus aliados no tratamento da covid-19, a eficácia da cloroquina para a doença até hoje não foi comprovada cientificamente, pelo contrário. Estudos descartam recomendar seu uso. Em outubro do ano passado, a Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou a ineficácia da droga no tratamento da covid-19, embora desde maio estudos já apontassem que o medicamento não funcionava contra a doença. Mesmo assim, o laboratório do Exército, que desde 2000 tem licença junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para produzir o medicamento justamente para auxiliar no combate da malária no país, sintetizou 3,2 milhões de comprimidos da droga em 2020, segundo reportagem da Agência Pública. A média de produção até 2019 era de 250.000 comprimidos a cada dois anos.

Desde o ano passado, o Exército já afirmava que apenas responde às demandas externas. Em maio de 2020, a corporação afirmou a este jornal que “recebe demandas do Ministério da Saúde, por meio de Termos de Execução Descentralizada”. E que “nestes casos, após produzido o medicamento, o mesmo é distribuído às Secretarias Estaduais de Saúde e ao Estoque Regulador, conforme pauta definida pelo próprio demandante (Ministério da Saúde)”. Por fim, informou também que a destinação do material produzido caberia ao Ministério da Defesa, “conforme orientação do Ministério da Saúde”.

O desencontro de informações vai fechando o cerco ao redor de um medicamento que, a despeito de não ter a sua eficácia comprovada no tratamento da covid-19, teve sua produção multiplicada no Laboratório do Exército e, no setor privado, movimentou milhões de reais. Reportagem da Folha de S. Paulo com base nos documentos enviados à CPI mostra que as farmacêuticas faturaram mais de 480 milhões de reais com a venda de medicamentos que formam o kit covid, dentre eles a cloroquina. Em 2019, a comercialização dessas drogas rendeu pouco acima dos 180 milhões de reais.

Fazem parte do kit covid, além da cloroquina, medicamentos como ivermectina, nitazoxanida, azitromicina e vitamina D. Rechaçado por não ter embasamento científico, o kit covid foi uma das bandeiras defendidas pelo presidente Bolsonaro ao longo da pandemia. Ele mesmo afirmou ter se tratado com cloroquina ao contrair a covid-19 em julho do ano passado.

À medida que os documentos da CPI da Pandemia vão sendo revelados, vai ficando mais evidente o esforço do Governo brasileiro pela produção e distribuição da cloroquina, embora ainda não se tenha descoberto a razão real desses esforços. Reportagem de O Globo mostra que o Planalto atuou no exterior pela aquisição de insumos para a produção da droga ao menos 84 vezes. Telegramas do Itamaraty mostram as comunicações feitas, em sua maior parte com o Governo indiano, com o intuito de garantir matéria-prima para sintetizar o medicamento. Bolsonaro chegou a falar pessoalmente com o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, em abril do ano passado. Por telefone, o presidente intercedeu em nome de empresas brasileiras pedindo que a Índia liberasse a exportação dos insumos.

De acordo com a reportagem, o esforço ficou concentrado até junho do ano passado, quando o Brasil recebeu uma doação de 3 milhões de comprimidos de hirdoxicloroquina, medicamento similar, dos Estados Unidos. “Habemus hidroxicloroquina!”, comemorou o embaixador do Brasil em Washington, Nestor Forster, em email ao então secretário de Comércio Exterior do Itamaraty, Norberto Moretti, ao confirmar a doação dos Estados Unidos.

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