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Pela primeira vez, Justiça condena penalmente repressor da ditadura brasileira e abre precedente histórico

Delegado aposentado Carlos Alberto Augusto, conhecido como “Carlinhos Metralha” ou “Carteira Preta”, foi condenado pela 9ª Vara Criminal Federal de São Paulo por sequestro de ex-fuzileiro naval. Ele fez campanha contra a Comissão Nacional da Verdade e foi a atos contra Dilma

Manifestación en Rio de Janeiro en 1968 contra la dictadura militar
Manifestação no Rio de Janeiro em 1968 contra a ditadura militar.Arquivo Nacional/Correio da Manhã
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O delegado aposentado Carlos Alberto Augusto, conhecido como “Carlinhos Metralha” ou “Carteira Preta”, se tornou o primeiro réu a ser condenado criminalmente por atuar na perseguição a opositores do regime militar brasileiro (1964-1985). Sentenciado pela 9ª Vara Criminal Federal de São Paulo a dois anos e 11 meses de prisão, Augusto foi acusado pelo Ministério Público Federal pelo crime de sequestro qualificado do ex-fuzileiro naval Edgar de Aquino Duarte, desaparecido há meio século. A condenação do ex-agente da ditadura militar e colaborador de célebres repressores e torturadores é inédita e resultado de uma denúncia feita em 2012 pelos procuradores. À diferença dos países vizinhos que também viveram governos ditatoriais no século XX, na Justiça brasileira havia até agora feito raras condenações e apenas no âmbito civil. O Judiciário, incluindo o Supremo Tribunal Federal, ainda considera válida a lei de 1979 que anistiou os crimes do regime militar, apesar dos vereditos contrários na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

Em sua decisão, o magistrado Silvio César Arouck Gemaque pontuou que a responsabilidade criminal de Carlos Alberto Augusto foi comprovada ao longo do processo e que em crimes de graves violações a direitos humanos —como é o caso do sequestro de Edgar Aquino de Duarte— aplica-se o mesmo arcabouço jurídico dos crimes contra a humanidade. O juiz destacou que sua decisão não baseou-se somente em prova testemunhal, um “ouvi dizer”, mas sim em um amplo mosaico probatório que aponta para a responsabilidade de “Carlinhos Metralha”. Na sentença, Gemaque também ressaltou que a detenção de pelo menos dois anos do ex-fuzileiro Edgar de Aquino Duarte sem qualquer acusação formal, e que resultou em seu sumiço, ocorreu no contexto de um “sistema de terror” implantado pelo Estado, que “prendia sem mandado, sequestrava, torturava, desaparecia e matava pessoas por suas posições políticas”.

No processo, o MPF acusa “Carlinhos Metralha” de sequestro, tortura, execução e ocultação de cadáver. Na decisão, o magistrado afirma que o desaparecimento da vítima até os dias de hoje impede que o crime seja considerado prescrito, uma vez que segue em prática. O juiz acatou a tese do MPF de que o desaparecimento forçado de Duarte pode ser enquadrado em um contexto de ataques e perseguição política do Estado, com uma sistemática de operações repressivas que configuram crimes contra a humanidade, e portanto, imprescritíveis e insuscetíveis de anistia.

O veredito foi comemorado por procuradores, ativistas e historiadores. Em sua página oficial, o MPF informa que a maioria das mais de 50 ações penais propostas pelo órgão sobre crimes cometidos na ditadura foi rejeitada ou está paralisada em varas federais de todo o país. Na sentença, o magistrado Gemaque reiterou que o Brasil é signatário de tratados internacionais sobre o tema e já foi condenado em ações da Corte Interamericana de Direitos Humanos que o obrigam a investigar, processar e punir ex-agentes envolvidos na repressão política durante a ditadura. A sentença contra Carlos Alberto Augusto estaria em consonância com decisões sobre casos como o de Gomes Lund e Herzog feitas pela corte internacional. O Supremo Tribunal Federal, no entanto, ratificou a validade da Lei da Anistia e ainda ignora essas decisões da CIDH. Em 2018, a então procuradora-geral, Raquel Dodge, pediu ao STF que reavaliasse seu posicionamento em ação pela reabertura do caso Rubens Paiva, deputado morto pelo regime também em 1971. O caso ainda não foi analisado pelo plenário. Em fevereiro deste ano, o MPF anunciou a intenção de reencaminhar o caso de Rubens Paiva para o STF.

O crime pelo qual “Carlinhos Metralha” foi condenado

Edgar de Aquino Duarte foi preso no dia 13 de junho de 1971, sem qualquer ordem judicial para embasar a ação policial. Na época, o ex-fuzileiro naval, expulso da Marinha em 1964 em decorrência do Ato Institucional nº 1, o primeiro da ditadura, trabalhava como corretor da Bolsa de Valores de São Paulo. Duarte havia deixado a militância política desde que retornara do exílio em 1968, mas entrou no radar das autoridades após ter seu nome citado, dias antes, no depoimento de José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, que estava hospedado no apartamento do ex-colega da Marinha. Preso dias antes de Duarte, o Cabo Anselmo viria a se tornar um agente infiltrado dos órgãos de repressão, sob supervisão de Carlos Alberto Augusto.

Sem qualquer acusação formal ou comunicação judicial, Duarte ficou detido por pelo menos dois anos e durante o período foi transferido sucessivamente entre o Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops/SP) —onde “Carlinhos Metralha” trabalhava e a unidade comandada pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Torturador reconhecido pela Justiça e ex-comandante do Destacamento de Operações de Informações do II Exército (DOI-Codi) em São Paulo, Ustra é tratado como herói por Jair Bolsonaro. Duarte foi visto por testemunhas pela última vez em junho de 1973. Sem provas ou registro de seu óbito nem informações sobre seu paradeiro, o ex-fuzileiro permanece formalmente sequestrado até hoje.

“Carlinhos Metralha” trabalhou como investigador no Deops/SP de 1970 a 1977, sob ordens de Sérgio Paranhos Fleury, outro conhecido agente da repressão. Conhecido pela truculência e espancamentos de presos, seu apelido vem do fato de que Augusto tinha o hábito de andar pelos corredores portando uma metralhadora. Além do desaparecimento de Edgar de Aquino Duarte, é acusado de envolvimento em outros casos de desaparecimentos e torturas e na participação na operação que resultou no chamado Massacre da Chácara São Bento de 1973, em Pernambuco. Na operação, seis militantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) foram executados.

Carlos Alberto Augusto em 2016, durante protestos contra a então presidenta Dilma Rousseff
Carlos Alberto Augusto em 2016, durante protestos contra a então presidenta Dilma Rousseff FOTO: REPRODUÇÃO

Aposentado como delegado de Polícia de 1ª Classe desde 2014, recebe aposentadoria no valor bruto de 21.518,63 reais. À época do anúncio de sua jubilação, o procurador da República Andrey Borges de Mendonça, responsável pela ação que resultou em sua condenação, havia anunciado sobre a possibilidade de pedir a suspensão dos benefícios de Augusto, mesmo depois da aposentadoria. Antes disso, procuradores da República haviam tentado tirar o policial da ativa, mas o pedido havia sido negado pela Justiça e foi reiterado na sentença de Gemaque, já que o ex-delegado, de 77 anos, já encontra-se aposentado.

Além de Carlos Alberto Augusto, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra e o ex-delegado Alcides Singillo também respondiam pelo sequestro de Duarte. Porém, eles deixaram de figurar como réus após falecerem em 2015 e 2019, respectivamente. O caso teve ainda a participação de outras pessoas que permaneciam não identificadas ou também já haviam falecido quando o MPF ofereceu a denúncia, entre elas o ex-delegado Sérgio Paranhos Fleury.

Ativo politicamente, Carlos Alberto Augusto participou de manifestações políticas contra a então presidenta Dilma Rousseff (2011-2016). Era um crítico feroz da Comissão Nacional da Verdade que, com atraso em relação aos vizinhos, elencou as vítimas e os repressores da ditadura brasileira em documento divulgado em 2014. “Carlinhos Metralha” foi condenado em regime inicial semiaberto e poderá recorrer da decisão em liberdade.

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