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Tribuna
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Lina Bo Bardi e Zé Celso contra Paulo Maluf

Leia capítulo de ‘Lina, uma biografia’ (Todavia), onde autor Francesco Perrota-Bosch conta que ponte entre a arquiteta e Zé Celso foi feita por Glauber Rocha

Da esq. para dir., Paulo Gil Soares, Waldemar Lima, Glauber Rocha, Lina Bo Bardi, Walter Lima Jr. e Sante Scaldaferri em Monte Santo, Bahia, 1963. Imagem do livro 'Lina, uma biografia', de Francesco Perrota Bosch.
Da esq. para dir., Paulo Gil Soares, Waldemar Lima, Glauber Rocha, Lina Bo Bardi, Walter Lima Jr. e Sante Scaldaferri em Monte Santo, Bahia, 1963. Imagem do livro 'Lina, uma biografia', de Francesco Perrota Bosch.

Encenando com escombros

1 de setembro de 1969

Lina e Zé Celso encontraram-se pela primeira vez no Rio de Janeiro. Aconteceu por acaso no início do ano de 1962. José Celso Martinez Corrêa tinha saído da Faculdade de Direito da USP, mas seguia usando colete, terno e gravata. Nem completara 25 anos de idade e já capitaneava os trabalhos na companhia teatral Oficina. Ele viajara para a Guanabara com o intuito de conversar com Martim Gonçalves, que detinha os direitos autorais no Brasil da peça Um bonde chamado desejo, escrita por Tennessee Williams.

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Em algum fim de tarde de verão, Zé Celso foi ao encontro de Martim num boteco carioca. Com o ex-diretor da Escola de Teatro da Universidade da Bahia estava Lina Bardi, então diretora do MAM de Salvador, tomando um drinque. O dramaturgo do Oficina, jovem e ainda tímido à época, não teve coragem de sentar à mesa dos amigos de anos soteropolitanos. De pé, os dois homens do teatro trocaram breves palavras, momento em que Zé Celso se sentiu observado de cima a baixo por Lina, como se ela tivesse sacado de pronto como ele era ingênuo. Zé Celso a achou tão linda e atraente que se sentiu um tanto intimidado, constrangido, envergonhado. Enrubesceu. Foi embora do bar e passou seis anos sem vê-la.

Quem promoveu o reencontro (ou melhor, a primeira conversa) foi Glauber Rocha.2 O cineasta baiano tornara-se amigo de Zé Celso e, quando ia a São Paulo no final dos anos 1960, dormia no chão da sala do pequeno apartamento que o diretor de teatro dividia com o ator Renato Borghi. O Oficina estava encenando a peça Galileu Galilei e iniciava os preparativos para Na selva das cidades, de Bertolt Brecht. Glauber havia visto a “arquitetura cênica” de dona Lina para A ópera de três tostões, também de autoria do dramaturgo alemão, e sugeriu a Zé Celso que trabalhasse com a arquiteta na sua nova montagem. Não foi uma simples sugestão por parte do representante maior do Cinema Novo, mas sim um incentivo veemente e insistente. Dias depois, Lina recebeu Glauber e Zé Celso na Casa de Vidro. Tomaram uísque, conversaram e começaram a trabalhar juntos.

Na selva das cidades entrou em cartaz às nove horas da noite do dia 1o de setembro de 1969 no número 520 da rua Jaceguai, no bairro do Bixiga.

À época, o prédio do Teatro Oficina não era parecido com o atual. Também não tinha mais a concepção original projetada por Joaquim Guedes no começo daquela década e destruída em um incêndio em maio de 1966. O desastre motivou o convite a Flávio Império e Rodrigo Lefèvre para fazerem, em 1967, o segundo projeto arquitetônico da edificação.4 Era um teatro com palco italiano. O auditório tinha uma arquibancada de concreto inclinada, na qual o público se acomodava. O ponto mais alto da plateia ficava junto à fachada, e os espectadores entravam por um pequeno foyer abaixo dessa estrutura oblíqua. Uma característica daquela versão arquitetônica do Oficina foi a preservação do casarão original na metade posterior da edificação, com todos os velhos aposentos convertidos em camarins, salas de ensaio e acervo de figurinos. Outra peculiaridade era a plataforma giratória no centro do palco.

Entretanto, Lina não seguiu a configuração de Império e Lefèvre para Na selva das cidades. O palco foi substituído por um ringue de boxe. Uma arquibancada mambembe de madeira foi erguida na parede de fundo da sala de espetáculo, de modo a que uma plateia ficasse em frente à outra, tendo a arena da encenação ao centro.

O enredo da peça se passa em Chicago no ano de 1912. Brecht nos apresenta a luta entre dois homens: Shlink, um milionário oriental negociante de madeira, papel desempenhado por Othon Bastos, e George Garga, um jovem livreiro interpretado por Renato Borghi. O conflito começa na livraria, quando Shlink anuncia sua vontade de comprar a opinião de Garga e lhe propõe um preço. Segue-se uma discussão, o grande comerciante aumenta seu valor, já o rapaz diz que vende livros com as ideias de Arthur Rimbaud e outros autores, mas sua opinião não está à venda. A situação torna-se progressivamente mais belicosa até a destruição da livraria.

No seu todo, a peça consiste em sucessivas destruições. O diretor teatral, Zé Celso, declarava à imprensa no dia da abertura que a montagem era catártica, apocalíptica, catastrófica, caótica, entre outros adjetivos. “O cenário no ringue representa a metáfora da luta”, disse ele. Substituir o palco por um ringue de boxe foi uma sacada de Lina. Assim, os onze atos se converteram em onze rounds. Em cada round, uma instituição se desmantelava. Na própria adaptação do texto, havia entrecruzamentos entre a narrativa de Brecht e a realidade daqueles meses que se seguiram à decretação do AI-5. Todavia, um outro fato atravessava literalmente a rua do Oficina e foi incorporado naquela montagem de Na selva das cidades, sobretudo na “arquitetura cênica” de Lina Bardi.

Em 1969, um novo prefeito de São Paulo havia sido nomeado pela ditadura militar: o engenheiro Paulo Maluf assumira com um megalômano projeto como vitrine de sua gestão. Era um conjunto de vias expressas de carros: um elevado sobre a avenida São João e a rua Amaral Gurgel, seguido por um mergulhão sob a praça Roosevelt, cujas pistas se converteriam no viaduto Júlio de Mesquita Filho até se transformarem no viaduto Jaceguai, que passa bem em frente ao Teatro Oficina — esta sequência de autopistas é mais conhecida pela alcunha Minhocão. Para dar lugar ao novo caminho rodoviário, dezenas de quarteirões do Bixiga foram arrasados, centenas de sobrados, postos abaixo, milhares de vizinhos, desalojados. Cindia-se o bairro popular de origem quilombola e habitado majoritariamente por imigrantes italianos e migrantes nordestinos. Em frente ao teatro, a paisagem urbana não distinguia demolição de construção.

Entulho, escombros e destroços foram enxergados por Lina como matéria-prima para confeccionar o ringue da peça. A arquiteta saía pelo canteiro de obras catando tábuas de madeira de casas que não mais existiam.Dessas moradias também coletava porta-retratos, utensílios de cozinha, tecidos de cortina e toalhas, objetos pessoais que antigos moradores tiveram de deixar para trás. Ela trazia para dentro do Oficina o que se pressupunha lixo, mas, no fundo, eram vestígios da memória de uma comunidade que brutalmente deixava de existir.

“São Paulo, a cidade que se humaniza”, o cínico slogan daquela gestão de Maluf no município, foi pichado na parede de fundo. Zé Celso sintetizava o sentimento do bairro naquele momento com uma fala proferida na peça:

— Destas cidades só vai restar o vento que passa por elas.

Durante as cinco horas de apresentação (no meio da temporada, a encenação foi abreviada para três horas, o que suscitou até uma notinha no Estadão), o mobiliário para ambientar as diferentes locações da história era colocado no ringue e destroçado pelos atores. Como o escritório de Shlink, que oferecia a Garga um livro de contabilidade, lançando-o sobre a mesa concebida por Lina e diariamente refeita — afinal, o móvel era despedaçado a cada exibição.

À arquiteta também coube a concepção da indumentária dos personagens, como Maria Garga, irmã de George, interpretada por Ítala Nandi.Em sua primeira cena, a atriz aparece com o figurino de menina de colégio, católica, uma virgem Maria. Porém, ao se apaixonar por Shlink, ele a usa como isca nesse vale-tudo. Conforme a peça se desenrola, sua submissão aumenta na mesma proporção em que é rejeitada. Paulatinamente, sua roupa de carola vai se transformando na de prostituta, no round passado no bordel. Lina montou uma ambiência de prostíbulo com tecidos translúcidos que desciam do urdimento, poltronas estofadas e colchões encontrados nas ruas do Bixiga. Nesse clima foi que Ítala Nandi protagonizou o primeiro nu frontal feminino do teatro brasileiro.

As cenas no lago Michigan utilizavam uma passarela que partia do ringue e avançava sobre a plateia. Em um memorável round, troncos de árvores cortadas de antigos quintais dos arredores desciam do teto do Oficina, folhas e flores de setembro eram jogadas ao chão, a iluminação emulava uma noite de luar em que Maria Garga e Shlink conversavam.

Outro round se passava na casa da família Garga: uma festa de casamento para George e sua namorada Jane. Lina concebeu uma bela mesa para a celebração, mas os pratos eram de pedra para mostrar que se tratava de gente muito pobre. Ela insistiu que os pratos deveriam ser feitos por Edinízio Ribeiro Primo, artista plástico baiano com cerca de 25 anos, que veio a se tornar o braço direito da arquiteta para a montagem diária do cenário e para a costura do figurino em Na selva das cidades. Lina estabeleceu uma forte parceria de trabalho e um genuíno laço de amizade com Edinízio; por sua vez, ele colocava uma mesinha para que ela se acomodasse a cada apresentação. Sobre o tampo, Lina sempre punha uma flor que havia catado no caminho para o teatro.

Todas as cenas terminavam em conflito. Batalha atrás de batalha, tudo se estraçalhava. Ao fim, até o ringue era destruído, e os atores terminavam a peça escavando o próprio solo sob o Teatro Oficina. Seguindo o espírito das manifestações de 1968, Lina proclamava:

— Se tirar o cimento, vira sertão.

Terminada a apresentação, reconstruía-se o ringue com mais escombros do Bixiga. Assim foi, dia após dia, ao longo da breve temporada de seis semanas da peça em São Paulo.

A parceria de Lina Bardi com Zé Celso prosseguiu no filme Prata Palomares em 1970. Ela fez a cenografia e o figurino. Ele foi um dos autores do roteiro, assinado em conjunto com o diretor da película, André Faria. Entre os protagonistas do elenco estavam, mais uma vez, Ítala Nandi e Renato Borghi. Os sets de filmagem eram em Florianópolis, sendo a locação principal a igreja de Nossa Senhora da Conceição da Lagoa, uma capela colonial do século XVIII.

Na ficção, o pequeno templo estava abandonado. Na vida real, havia algum tempo estava fechado aos fiéis. Na gravação, as imagens de santos e todo o mobiliário, como as fileiras de bancos, não eram da construção original, mas feitos especificamente para o filme, pois, ao fim, todos eram destruídos. Lina concebera uma estatueta de Nossa Senhora das Dores que chamava particular atenção: era negra, estava grávida, portava um vestido de renda branca e tinha consigo um Coração de Jesus alvejado por um punhal. Esse não foi o único signo católico ali subvertido por Lina: em determinada cena, a cruz do altar principal foi transformada em pau de arara para a tortura de um personagem. Mesmo a indumentária do coroinha tinha uma aparência grotesca e ambígua, um tanto escoteiro, um tanto açougueiro. A concepção dos figurinos, muito provavelmente, foi o campo em que Lina teve maior abertura de trabalho em Prata Palomares. Notável, por exemplo, eram os policiais carregando armas lança-chamas e vestindo uniformes cujo tecido escuro remetia aos camicie nere que ela vira na infância em Roma, e o corte se assemelhava ao dos soldados nazistas com que se deparara na juventude em Milão. A repulsa ganhava outros contornos em cenas como a refeição de urubus assados, na qual os dois párocos comiam e vomitavam num ambiente de luz parca e caravaggesca.

Não foi um trabalho plácido para Lina Bardi. Havia conflitos tanto no roteiro quanto na filmagem em si:

— Fizemos o filme Prata Palomares em Santa Catarina e havia três maquinistas fantásticos, formidáveis, de altíssima categoria, que, quando viram uma mulher, começaram a me desrespeitar —recordava Lina. — Não desrespeitar, mas a se olhar entre eles dando risadinhas. Mas, quando eles viram que eu comecei a entrar na iluminação e quando eles fizeram rebatedores, eu perguntei se era ainda o TBC ou a Vera Cruz. Comecei a dizer: “Tirem os rebatedores!”. E dei instruções sobre a iluminação, que eu tinha estudado, claro, pois me ocupei seriamente. Assim, eles fizeram amizade comigo. Nós viramos os maiores amigos do mundo e fizemos um trabalho belíssimo: eu ganhei o Prêmio Candango e devia ter o nome dos três maquinistas também.

Mais hostil foi a briga com Ítala Nandi. A atriz era casada com o diretor André Faria e bateu de frente com Zé Celso —a arquiteta acabou entrando na contenda por tabela. Numa discussão, Ítala chegou a expulsar Lina doset e a mandou para a “puta que pariu”. De fato, Lina e Zé Celso voltara para São Paulo antes da conclusão das filmagens.

Essa parceria seguiu com Gracias, señor, peça montada em 1972, primeiro no Teatro Tereza Rachel, no Rio de Janeiro, depois no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo. A apresentação foi concebida num momento sombrio da ditadura militar, em que a repressão se aproximava de muitos membros do Oficina. A apresentação visava mesclar ficção e realidade, misturar atores e público, e, cenograficamente, suprimir de vez a divisão entre palco e plateia. Os artistas entravam no auditório sem figurinos confeccionados para a ocasião, vestidos à paisana, com suas roupas do dia a dia, até o momento em que Zé Celso chegava com uma arara de roupas com dois conjuntos de vestimentas e perguntava aos espectadores o que eles queriam —a partir desse momento, o público começava a participar ativamente. A peça seguia por quatro horas, divididas em seis partes: a confrontação, a aula de esquizofrenia, a divina comédia, a morte, os sonhos de ressurreição, a lição de voltar a querer.

Gracias, señor era, portanto, uma espécie de resposta direta à trágica conjuntura, buscando o engajamento do público numa experiência teatral e coletiva que, segundo o diretor do Oficina, remetia à lobotomia —o procedimento cirúrgico de corte e retirada de partes cerebrais utilizado em doenças mentais, ao longo do século XX, a fim de impedir a plena experimentação de emoções humanas, assim alterando o comportamento da pessoa. A contundente cena da lobotomia acontecia com dois atores, um de costas para o outro, separados apenas por um repolho entre as suas cabeças, até o momento em que Zé Celso metia a faca e cortava o vegetal.

Para o teatro em Copacabana, Lina criou um ambiente de campo de concentração. No palco, ela ergueu uma torre de controle de estrutura de madeira de 4,5 metros de altura, com uma guarita no topo e um potente refletor de luz voltado para o piso. Esse chão era de areia envolto por arame farpado e enferrujado. Em uma linha do tablado se ergueram trincheiras; ao redor, havia pouquíssimos objetos e um tanto de lixo espalhado. Lina deixara em suas anotações que a “cenografia” deveria somente “estabelecer os ambientes básicos”. O que mais importava era a dinâmica entre os vários atores sempre sob um misto de tensão e agitação numa interação caótica. Para estimular a inquietação do lugar, a arquiteta pensou em algumas placas, faixas, cartazes, bandeiras: ela indicou inscrições coercitivas —ÁREA PROIBIDA! ou PROIBIDO FUMAR— e slogans de direita —nos desenhos, exemplificava com suas lembranças dos anos sob o fascismo sempre escrevendo “Duce Duce Duce Duce Duce”. No figurino de Lina, um elemento era particularmente representativo: a camisa de força, colocada no confronto com as forças repressoras no início da peça, e, ao fim, convertida em vela de navio a navegar pelo mundo, num ato de ressurreição dos lobotomizados e liberação da energia criativa do próprio Teatro Oficina.

Trecho de ‘Lina, uma biografia’, de Francesco Perrota-Bosch (Editora Todavia).

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