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Jungmann: “Não punir Pazuello no Exército incentiva a anarquia. Não tem meio-termo”

Ex-ministro da Defesa e da Segurança Pública de Temer afirma, em entrevista ao EL PAÍS, que o Congresso não assume o controle civil sobre as Forças Armadas e critica Bolsonaro: “O presidente tem jogado no sentido contrário à ordem pública e à democracia”

O ex-ministro da Defesa, Raul Jungmann.
O ex-ministro da Defesa, Raul Jungmann.Marcelo Camargo (Ag. Brasil)
Felipe Betim

Raul Jungmann (Recife, 1952) conhece os militares de perto. Durante o Governo de Michel Temer (2016-2018), ocupou o cargo de ministro da Defesa e, posteriormente —quando o general Joaquim Luna e Silva assumiu seu lugar—, a pasta da Segurança Pública. Agora, se diz preocupado pela ofensiva do presidente Jair Bolsonaro sobre as Forças Armadas, em particular o Exército, que deixou o general Eduardo Pazuello sem punição por participar de uma manifestação política ao lado do mandatário. “A falta de punição é indefensável, porque feriu o regimento disciplinar do Exército e também o estatuto dos militares”, explica ao EL PAÍS. “Ou se fica com hierarquia e a disciplina, ou se fica com anarquia, com desrespeito ao código disciplinar. Por isso é grave”, completa. Também afirma que o Congresso “não vem assumindo suas responsabilidades de fazer o controle civil sobre as Forças Armadas” e termina fazendo um alerta, que vale tanto para o Exército quanto para as polícias militares: “Quando a política entra pela porta da frente nos quartéis, a hierarquia sai pela porta dos fundos”.

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Pergunta. Ao não punir Pazuello, o Exército cedeu às ambições autoritárias de Bolsonaro?

Resposta. A falta de punição é indefensável, porque feriu o regimento disciplinar do Exército e também o estatuto dos militares. Uma força armada em qualquer momento da história, em qualquer lugar do mundo, tem por fundamento a hierarquia e a disciplina. Ao não punir Pazuello, se está, obviamente, incentivando a anarquia nos quartéis. Não há um meio-termo, não há uma meia escolha. Ou se fica com hierarquia e a disciplina, ou se fica, evidentemente, com anarquia, com desrespeito ao código disciplinar de uma força armada. Por isso é grave. Agora, o presidente vinha fazendo continuamente pressões e constrangendo as Forças Armadas para que endossassem os atos de constrangimento, de ameaça aos demais poderes, sobretudo ao Supremo Tribunal Federal, mas também ao Congresso e aos governadores. E, por não concordarem e não cederem, os comandantes da Marinha, do Exército, da Aeronáutica e o ministro da Defesa foram demitidos há dois meses. Mas essa falta de punição, mesmo achando que não possa ser defendida, não significa dizer que as Forças Armadas estão endossando o projeto do presidente Jair Bolsonaro. Não dá para você confundir a árvore com a floresta propriamente dita. Eu continuo acreditando que as Forças Armadas permanecem alinhadas com a Constituição e também na defesa da democracia.

P. O senhor conhece o general Paulo Sérgio? Quando escolhido para comandar o Exército, ele foi apontado como uma pessoa de perfil moderado, que seguiu à risca dentro dos quartéis o que os cientistas haviam recomendando no combate à pandemia. Como interpreta essa decisão pessoal dele?

R. O general Paulo Sérgio trabalhou conosco quando fui ministro da Defesa. Ele é um profissional, um técnico, e não alguém que tenha um perfil político. É um sujeito moderado, que tem liderança dentro das Forças Armadas. Agora, ele, efetivamente, lidou com a escolha, né? Pelo que eu ouvi de colegas dele ―e deixando claro que eu não falo pelas Forças Armadas, nem as represento― foi que ele teria feito essa opção para não dar motivo ao presidente para demitir em dois meses o segundo comandante do Exército, o que agravaria bastante a crise que já estava ocorrendo. Ele fez uma reunião consultiva na quarta-feira passada com o Alto Comando, que majoritariamente teria se posicionado pela punição. Paulo Sérgio então teria explicado os motivos pelos quais ele não pretendia punir, e então o Alto Comando fechou com ele. Tenho minha discordância com a decisão, porque cria a possibilidade de que outros se manifestem. E isso é um risco elevadíssimo para a unidade de uma força armada que tem por razão de ser a defesa da nação, e não deste ou daquele governo.

P. Mas o senhor entende que o comandante estava diante de uma escolha difícil, e que ambas gerariam uma crise?

R. Olha, isso é uma narrativa que existe por parte dos generais da reserva. Mas acho que é uma história crível, porque o presidente vinha pressionando (e deixou isso claro) pela não punição de Pazuello. Ele vinha constrangendo a força nesse sentido. Então, eu acho que é plausível, embora eu não possa dizer que essa é a inteira verdade do que se passou.

P. Além de abrir a possibilidade para outras manifestações de cunho político, acredita que podem haver decisões de demonstrações de força de militares insubordinados, isto é, sem autorização superior?

R. Acho que prevalece o princípio de que não é aceitável essa quebra de hierarquia. E por isso é grave o que aconteceu com Pazuello. Mas a nossa expectativa é que prevaleça, sim, a hierarquia, que esse seja um caso isolado, embora esse caso seja indefensável.

P. Além de Bolsonaro, quem são os outros responsáveis por essa crise nas Forças Armadas?

R. Parte da responsabilidade é do Congresso Nacional. Como tenho sempre alertado, o Congresso tem o poder de regulamentar a não-presença de militares da ativa para o Governo. As Forças Armadas são instituições permanentes, nacionais e de Estado. Não se confundem com o Governo. Por isso mesmo a impessoalidade da atuação das forças e de seus membros é fundamental. Um general da ativa é a instituição, representa a instituição, ele está na instituição. Então de forma alguma poderia participar do Governo. Mas essa responsabilidade tem que ser colocada no colo do Congresso Nacional, que não regulamenta esse tema e, portanto, tem responsabilidade nessa crise. Há um projeto de emenda constitucional que está tramitando e espero que isso se resolva. Se pode ter militar da ativa apoiando o Governo, vai ter um outro que vai se expressar a favor da oposição. E aí rompeu a hierarquia e a disciplina de uma força armada, o que é absolutamente inaceitável.

P. Algumas análises apontam que o Governo Temer, ao fazer a intervenção federal no Rio de Janeiro e ao escolher o primeiro militar desde o presidente Fernando Henrique Cardoso para o Ministério da Defesa, abriu uma caixa de pandora. O senhor concorda, faz alguma autocrítica com relação a isso?

R. Eu já tive uma posição de que o ministro da Defesa deveria ser civil. Mas eu tenho mudado. Em primeiro lugar, porque nações democráticas, com democracia consolidada, escolhem militares para o posto de ministro da Defesa. Nos Estados Unidos, por exemplo, o secretário da Defesa era um fuzileiro, o James Mattis. Eu estive com ele. Alguém levanta a questão de que não há um controle civil ou do poder político sobre as Forças Armadas dos Estados Unidos? Ninguém coloca...

P. Mas os Estados Unidos não tiveram uma ditadura militar até 1985...

R. Olha, quem faz o controle das Forças Armadas é o Congresso. Não é possível você botar um civil lá dentro e simplesmente achar que ele vai estabelecer o controle. O Congresso não vem assumindo suas responsabilidades de fazer o controle civil sobre as Forças Armadas. Vou dar um exemplo muito claro disso. Quando eu era deputado federal, fui relator da lei complementar 136, na época em que o ministro da Defesa era Nelson Jobim. Eu coloquei uma emenda que diz que a política nacional de defesa e a estratégia nacional de defesa deveriam passar a cada quatro anos, quando elas fossem revisadas, pelo Congresso Nacional. Então o Congresso Nacional, veja bem, tem nas mãos exatamente a política e a estratégia nacional de defesa. Isso quer dizer que ele pode convocar as Forças Armadas para debater e discutir, se informar sobre o seu orçamento, seu sistema de promoção, seu sistema de estudo, seus cenários de guerra, seus equipamentos, enfim, tudo. E sabe o que que o Congresso faz? Nada. Então, não adianta você colocar um civil indicado pelo presidente.

P. O que mais poderia ser feito para garantir esse controle?

R. Nós até hoje nunca fizemos um concurso para um analista em defesa, um gestor em defesa. Nós somos talvez o único ministério da Defesa do mundo que não tem especialistas civis em questão de defesa. São os militares que estão lá dentro. Então, veja, se o Congresso Nacional, que pela Constituição tem o poder de fazer a guerra e de declarar a paz, não é capaz de regular a não presença de militares na ativa em ministérios, e não faz uma análise da política e da estratégia nacional de defesa... Você acha que é um ministro civil que vai controlar as Forças Armadas? O Congresso se aliena de suas responsabilidades. É ao poder político que cabe liderar os militares, mas para liderar você precisa ter um projeto. Vá no site dos partidos políticos e veja o que estão dizendo sobre defesa e Forças Armadas... Platitudes. Quem hoje dentro do Congresso entende, dialoga, lidera e tem projetos para elas? Se você não tem, as Forças Armadas então dizem: “Muito bem, se o poder político da minha nação se aliena da defesa nacional, pela qual nós estamos a morrer, cabe a mim a tutela da nação”.

P. Mas o general Braga Netto foi interventor no Rio e hoje é braço direito de Bolsonaro. Voltando à questão, colocar militares na linha de frente da política deu um protagonismo inédito a eles desde a época da ditadura? Não pode ter sido uma alavanca para que mais militares, como Pazuello, ocupassem postos políticos?

R. Eu acho que não. O que é fundamental nessa questão é que o presidente seja democrata. Podemos discutir que o presidente Temer tornou os militares mais visíveis, fez a intervenção no Rio... Mas isso não significa dizer que esse protagonismo, como você diz, fosse resvalar para um desrespeito à Constituição e à democracia. Temer é um democrata. Não era como é hoje. E está aí a gravidade da situação que vivemos.

P. O Exército impôs um sigilo de 100 anos sobre o caso Pazuello. O que achou?

R. Eu precisaria ler as motivações da decisão. Mas eu considero excessivo, acho que não é necessário esse tempo inteiro. Segundo eu li pelos jornais, isso contrariaria a norma da Controladoria-Geral da União de que o sigilo só deve ser imposto enquanto durar a apuração de um caso.

P. Como fica a imagem do Brasil internacionalmente? O país passa a impressão de ser um ator instável e imprevisível para a Comunidade Internacional?

R. Sem sombra de dúvidas. Se para nós é um mau exemplo, evidentemente que também para a Comunidade Internacional isso não pode ser visto como um bom exemplo. Apenas chamo atenção pra se fazer uma diferenciação deste caso específico, que eu já critiquei e continuarei criticando, com o comportamento das Forças Armadas, que não endossarão nenhuma atitude antidemocrática.

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P. Mesmo que não haja a intenção das Forças Armadas, acredita que Bolsonaro tem a intenção de repetir o que aconteceu em 6 de janeiro, quando apoiadores de Trump, incentivados por ele, tentaram tomar o Capitólio e dar um golpe?

R. Olha, me preocupa sobretudo os atos do presidente da República. Não tenho a capacidade de saber a intenção dele. Agora, os atos preocupam. Por exemplo, armar a população quando não existe nenhuma ameaça interna à democracia e quando não temos nenhuma ameaça externa é, sem sombra de dúvida, em primeiro lugar, quebrar o monopólio da violência legal do Estado nacional. Ao quebrar o monopólio da violência, também se está se desfazendo do papel das Forças Armadas, porque elas são a última trincheira da manutenção da nação na sua soberania, em seu território e na defesa do seu povo. E, por fim, armar a população, na história, sempre representou um risco caminhar para genocídios, massacres, golpes e até a possibilidade de uma guerra civil —que não está no horizonte, quero deixar bem claro. E também de formar milícias. Preocupa muito o fato de o presidente, sempre que pode, procurar deslegitimar o sistema de votação eletrônica. Isso é extremamente preocupante. Também me preocupa muito o que aconteceu em Pernambuco, onde a polícia militar agiu de forma selvagem em uma manifestação de oposição ao Governo Bolsonaro, ferindo cidadãos que se manifestavam em via pública de maneira ordeira, o que levou dois deles a perderem a vista. Se isso não for punido (e está sendo punido pelo Governo de Pernambuco), poderia se tornar um exemplo para outras polícias militares de como tratar outras manifestações da oposição. Como tudo indica que em 2022 vamos ter uma eleição muito polarizada e extremamente acirrada, essas são questões que, independentemente das intenções do presidente, preocupam muito, porque ele tem jogado no sentido contrário à ordem pública e à democracia.

P. Também tivemos em Goiás a detenção de manifestantes, tivemos o movimento grevista de policiais no Ceará, vemos Bolsonaro indo à formatura de policiais militares em vários Estados... Acredita ser possível uma adesão de policiais ao projeto bolsonarista, fazendo com que governadores percam o controle de suas polícias?

R. As polícias, com qualquer corporação, têm bolsonaristas e não-bolsonaristas. Isso é da pluralidade do regime democrático. Agora, se existe um incentivo que vem de cima de contestar a legitimidade, e se de baixo tem um exemplo de contestar manifestações pacíficas e ordeiras, então estamos diante de uma situação que traz muita preocupação. Isso precisa ter uma reação imediata das forças democráticas, sejam elas o parlamento, o poder político, os partidos, as elites, a mídia, o empresariado, as corporações... Elas têm que reagir. E os governadores, que são os comandantes dessas polícias, precisam fazer a defesa desde já, de forma permanente, intransigente, da hierarquia e da disciplina nas polícias, para que não se crie um clima de adesão de parte da instituição policial à forma de reagir da polícia de Pernambuco.

P. O que opina sobre o projeto de lei que dá mais autonomia às polícias militares e muda as regras para escolher os comandos?

R. Primeiro, ele é desastroso. Transfere a escolha de um comandante para uma lista tríplice feita dentro das polícias, o que geraria a politização absoluta e terminal das forças. E fatia [o poder sobre a polícia], coloca uma parte para a Assembleia Legislativa, outra para um conselho composto por representantes das polícias e do Ministério da Justiça... Portanto, isso é inconstitucional, um ataque ao poder constitucional dos governadores, e não tem possibilidade de passar pelo Supremo Tribunal Federal. É um projeto que não serve às polícias, nem ao exercício do poder dos governadores, nem à Constituição. É um projeto antidemocrático que não deve sair do jeito que está, embora sejam necessários projetos que modernizem o estatuto das forças de segurança.

P. Mas de que forma uma lista tríplice, como é feita no Ministério Público, pode politizar ainda mais as polícias?

R. Em primeiro lugar, o Ministério Público não tem armas. Quando a sociedade dá o mandato da violência legal a alguns de seus integrantes, ao mesmo tempo estabelece códigos rígidos em termos de hierarquia e disciplina. A função, seja de uma força policial seja de uma força militar, é a defesa da nação, da vida e da ordem pública. Então, não pode haver flexibilizações. No momento em que você autoriza uma lista tríplice, você vai ter uma eleição interna. Ao fazer uma votação dentro de uma força pública, você rachou, acabou com ela. Deixa de ser uma força armada e se transforma num bando. Acabou hierarquia e acabou a disciplina. Quando a política entra pela porta da frente nos quartéis, sejam militares ou policiais, a hierarquia, a disciplina, a ordem e o mérito saem pela porta dos fundos, vão embora. E aí, não resta nada.

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