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Com voto do próprio Toffoli, STF anula delação de Cabral que colocaria o ministro na mira da PF

Tribunal acatou argumento da PGR, que não concordou com o acerto. Participação na votação de ministro, que nega suspeita de venda de sentenças apontada por ex-governador, foi criticada por colega

Dias Toffoli, ministro do STF, em julho de 2020.
Dias Toffoli, ministro do STF, em julho de 2020.ADRIANO MACHADO (Reuters)
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O Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria para anular a delação premiada do ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral, em acordo que estava fechado com a Polícia Federal. Por 7 votos a 4 proferidos nesta quinta-feira (27), o tribunal aceitou um recurso da Procuradoria-Geral da República (PGR) que alegou a ausência de seu aval para o acordo —que chegou a ser homologado no próprio STF pelo ministro Edson Fachin em fevereiro de 2020. A reversão da validade do acerto ocorre semanas depois da notícia de que a PF, com base na delação de Cabral, pediu a abertura de uma investigação contra um dos ministros da corte, Dias Toffoli, acusado pelo ex-governador de vender sentenças enquanto era presidente do Tribunal Superior Eleitoral em processos envolvendo prefeitos do Rio de Janeiro em 2015. O ministro afirma que “jamais recebeu os supostos valores ilegais”.

Toffoli foi um dos que votaram pela anulação da delação, assim como o próprio Fachin e os ministros Gilmar Mendes, Kassio Nunes Marques, Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski e Luiz Fux. Em seus votos, os magistrados defenderam que a concordância da PGR é fundamental para que o depoimento tenha validade. Fachin, que aceitara a delação havia mais de um ano, foi o primeiro a votar e levantar o argumento, sendo seguido pelos outros seis. Toffoli escreveu que “a manifestação favorável do Ministério Público ao acordo —quando dele não for parte— é condição para sua homologação”. Embora todos os ministros já tenham votado, o julgamento no plenário virtual do Supremo vai até às 23h59 (horário de Brasília) desta sexta-feira (28) —uma eventual alteração nos votos é possível, mas improvável.

Segundo publicou o jornal Folha de S.Paulo no dia 11 de maio, Cabral disse em suas delações que o ministro recebeu quatro milhões de reais em troca de duas decisões favoráveis enquanto presidia o TSE. Numa delas, ele teria recebido três milhões de reais para absolver o prefeito de Volta Redonda, Antônio Francisco Neto (MDB), alvo de cassação entre 2013 e 2015. O restante do pagamento ilegal, segundo Cabral, teria vindo após Toffoli dar uma liminar favorável, também em 2015, à prefeita de Bom Jesus da Itabapoana, Branca Motta (então no MDB, hoje no PSL). O ex-governador afirma que Toffoli e sua mulher, a advogada Roberta Rangel, tiveram como intermediário nas negociações José Luiz Solheiro, ex-policial militar e integrante da equipe de segurança pública nos Governos de Cabral e seu sucessor, Luiz Fernando Pezão.

No mesmo dia da publicação da reportagem, a Polícia Federal solicitou ao STF a abertura de um inquérito para investigar as alegações contra Toffoli. Anexou ao relatório enviado e-mails e mensagens por aplicativo entre os citados, agendas e anotações do ex-governador que consistiriam “elementos preliminares existentes” suficientes para investigar o ministro. Fachin indeferiu a solicitação com base no parecer contrário da PGR e abriu o julgamento no STF para discutir a sua homologação.

Participação questionada

Caso os ministros tivessem decidido por manter a validade da delação, ao contrário do que ocorreu, os depoimentos de Cabral poderiam tornar Toffoli o primeiro membro do STF a ser investigado por corrupção na história do órgão. Após o julgamento, o ministro Marco Aurélio Mello, que discordou da maioria, criticou o fato de o colega ter votado. “Eu, no lugar dele, teria me declarado impedido, porque a comunidade jurídica e os leigos não entendem isso. Julgar em causa própria é a pior coisa para o juiz”, disse o ministro. “Por isso é que o Supremo hoje em dia quase não é levado a sério. Isso é péssimo em termos institucionais”, completou.

Na opinião de Davi Tangerino, professor de Direito da Fundação Getulio Vargas e da UERJ e ex-assessor de Lewandowski no STF, o ministro Dias Toffoli não deveria ter participado do julgamento. “Ainda que o depoimento de Cabral fosse totalmente mentiroso, Toffoli não deveria ter participado por ter o nome citado. O resultado seria o mesmo e a decisão ficaria mais legítima”, afirma. Tangerino explica que a invalidação do acordo impede a abertura de qualquer investigação com base no que Cabral contou à Polícia Federal, independente do que a PF já tenha apurado. “É como se a delação nunca tivesse existido”, exemplifica. “A única possibilidade dessa pauta voltar é o Cabral oferecer novas provas ou novos relatos, se é que ele tem, que justificassem um novo acordo de delação que seja também aprovado pela PGR.”

Em defesa de Dias Toffoli, a assessoria do STF justificou que não há “qualquer impedimento” à participação do ministro uma vez que o objeto do julgamento é um recurso feito pela PGR contra a homologação da delação de Cabral, “muito anterior a qualquer declaração relativa ao ministro”. Ela reforça que o pedido de investigação feito pela PF contra Toffoli já havia sido indeferido por Fachin “em razão da ausência de sequer mínimos elementos de corroboração” e, portanto, não há conflito de interesse no voto do ministro do Supremo.


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O que disse Cabral

Francisco Neto, que é do mesmo partido de Cabral, foi cassado pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE) do Rio de Janeiro por abuso de poder político e econômico sob acusação de veicular propagandas de sua campanha no site da Prefeitura, outdoors e placas pela cidade nos meses próximos à eleição municipal de Volta Redonda em 2012, o que é proibido pela lei eleitoral. Após perder em todas as instâncias regionais, o prefeito recorreu ao TSE, então presidido por Toffoli, que julgou o processo em 2015.

No dia 7 de abril de 2015, Toffoli votou contra o recurso apresentado por Francisco Neto, desempatou o julgamento (4 a 3) e manteve a cassação do prefeito de Volta Redonda, acompanhando a relatora Maria Thereza de Assis Moura. No entanto, menos de três meses depois, no dia 23 de junho, Toffoli mudou de opinião durante análise do TSE sobre um dos últimos recursos da defesa. O ministro desempatou o julgamento a favor do prefeito, o absolvendo da cassação. Na época, Assis Moura se expressou com surpresa, dizendo que “nós, a meu ver, estamos ‘rejulgando’ o caso”. “De fato não é uma mudança comum a essa altura do processo, mas é possível a depender das contradições reconhecidas nesses embargos [tipo de recurso]. Tem previsão legal, só não acontece muito estatisticamente”, explica Tangerino.

Para mudar esse voto, segundo diz Cabral, Toffoli recebeu três milhões de reais, em pagamentos feitos por Hudson Braga, ex-secretário de Obras do Rio e secretário de Francisco Neto no seu primeiro mandato em Volta Redonda. Braga teria repassado o valor, ainda segundo o ex-governador, através de um escritório da mulher de Toffoli. Em 18 de novembro do mesmo ano, Toffoli teria recebido mais um milhão de reais, com intermédio de Solheiro, da prefeita de Bom Jesus da Itabapoana, Branca Motta, em troca de uma liminar favorável. A prefeita era alvo de cassação por abuso político após realização de obras na cidade num sábado, véspera da eleição municipal de 2012 na qual era candidata. Toffoli a manteve no cargo através de liminar e o TSE reverteu a cassação da prefeita em junho de 2016, por seis votos a um.

Meses depois, em novembro de 2016, o ex-governador Sérgio Cabral foi preso preventivamente na Operação Calicute, um desmembramento da Lava Jato, acusado de liderar um esquema que desviou mais de 220 milhões de reais em contratos com diversas empreiteiras para obras no Estado. Mesmo depois de ver a Lava Jato perder força, com a anulação das condenações de Lula e a soltura de figuras como o ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha, Cabral segue em cárcere privado. Ele tenta, desde 2018, acordos com a justiça. Ao procurar o Ministério Público, não teve sucesso com a justificativa dos órgãos de que ele ainda mantém dinheiro escondido e não apresenta provas suficientes. Conseguiu por fim firmar a delação com a PF —o que o STF acaba de anular.

Toffoli foi nomeado pelo ex-presidente Lula para ocupar uma cadeira do STF em 2009. Ele presidiu o TSE entre 2014 e 2016 e o próprio Supremo entre 2018 e 2020. Em nota, o ministro declara “não ter conhecimento dos fatos mencionados e disse que jamais recebeu os supostos valores ilegais”. Antônio Francisco Neto está no seu quinto mandato na Prefeitura de Volta Redonda. Foram dois mandatos entre 1997 e 2005, mais dois entre 2009 e 2017 e foi eleito para o mais recente no último pleito, em 2020. Branca Motta, por sua vez, foi eleita prefeita de Bom Jesus pelo PMDB em 2012 e ficou em terceiro nas eleições municipais de 2020, já pelo PSL. Francisco Neto negou, em depoimento à Folha de S. Paulo, que seu julgamento tenha envolvido qualquer pagamento ilegal, enquanto Motta não se manifestou. Antes da decisão mais recente do Supremo, os advogados de Cabral defendiam que sua delação estava “rigorosamente dentro da legalidade”.

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