Pandemia de coronavírus
Coluna
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Não se deve simplificar a relação entre a vacinação contra a covid-19 e a economia

Na maior parte dos países, se não em todos, não temos como mensurar o comportamento de risco da população entre doses, o que dificulta qualquer formulação de cenários

Em Bangkok, taxistas sinalizam nos carros que já receberam as vacinas contra a covid-19. Até esta segunda-feira, 24 de maio. cerca de 3.000 veículos contavam com esta sinalização na capital da Tailândia.
Em Bangkok, taxistas sinalizam nos carros que já receberam as vacinas contra a covid-19. Até esta segunda-feira, 24 de maio. cerca de 3.000 veículos contavam com esta sinalização na capital da Tailândia.NARONG SANGNAK (EFE)
Monica de Bolle
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O que não falta atualmente são artigos ou análises de economistas tentando inferir em quanto tempo e de qual tamanho será a retomada econômica a partir de diferentes cenários para a vacinação contra covid-19. Até o momento, não consegui encontrar qualquer trabalho sério, elaborado de maneira interdisciplinar, que trate da questão —mas, confesso que posso ter deixado de ver algo com maior rigor científico. A maior parte do que li —e não foram apenas análises sobre a situação do Brasil, como também sobre a situação de outros países ou mesmo da economia global— se baseia em cenários rudimentares, trata as diferentes vacinas como mais ou menos equivalentes e não leva em consideração complicações como a hesitação vacinal, a evasão da segunda dose para as vacinas dessa categoria, o comportamento de maior risco de algumas pessoas que não compreendem como a imunização funciona, para citar apenas alguns fatores de complexidade.

Mas, primeiramente devo enfatizar: há um consenso na literatura acadêmica sobre o tema da vacinação e de como ela ajuda as economias. A questão já foi estudada individualmente para vacinas específicas da infância, como a vacina contra o sarampo, bem como para vacinas tomadas na adolescência, como a vacina contra o HPV. De forma mais geral, campanhas como a Década de Vacinas patrocinadas pela Fundação Bill e Melinda Gates, entre outras iniciativas, já foram amplamente estudadas pela Organização Mundial da Saúde e por acadêmicos. Os resultados dessas pesquisas mostram com clareza que as vacinas, ao melhorar as condições de saúde da população, ajudam a economia de diversas formas. Entre elas, mulheres, sobretudo de renda mais baixa, que perderiam dias de trabalho para cuidar de filhos enfermos não fossem os imunizantes; crianças que não desenvolveriam sequelas prejudiciais ao aprendizado; custos que não sobrecarregariam sistemas de saúde; aumentos de produtividade devidos a uma população mais saudável. A natureza preventiva das vacinas garante que seus benefícios em termos de saúde pública e dos efeitos sobre a economia sejam equivalentes em importância aos do saneamento básico, do acesso a fontes de água limpa. Portanto, é mais do que razoável que se formule uma relação positiva entre a vacinação contra covid-19 e a retomada econômica dos diferentes países.

A parte complicada é estabelecer como, quão rapidamente e com que intensidade as vacinas contra covid-19 haverão de afetar as diferentes economias. São muitas as variáveis que influenciam a resposta a essas perguntas. De um lado, há a questão das doses disponíveis: a não ser que se esteja falando de boa parte do Hemisfério Norte, o restante do planeta não tem doses suficientes para vacinar um contingente minimamente razoável da população. A desigualdade vacinal tem sido objeto de diversas análises e de propostas como a quebra de patentes e de direitos à propriedade intelectual. Como escrevi em artigo recente publicado pelo Peterson Institute for International Economics em parceria com meu colega Maurice Obstfeld, a quebra de patentes e a transferência de propriedade intelectual não dariam conta de resolver a situação de emergência que hoje testemunhamos mundo afora.

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Por outro lado, há uma série de outras complicações. Boa parte do mundo depende da Índia e da China para o suprimento de insumos e de vacinas. A tragédia indiana atual bem como disputas de ordem geopolítica têm afetado o calendário de entregas de insumos e doses, como assistimos no Brasil. Trabalhar sob a hipótese de que não ocorrerão mais atrasos é, no mínimo, uma ingenuidade. Outra complicação é o próprio comportamento da população, sobretudo no que diz respeito às vacinas de duas doses: muitas pessoas deixam de tomar a segunda dose achando equivocadamente que já estão protegidas com a primeira, ou tomam riscos desmesurados se valendo da mesma suposição errada. Na maior parte dos países, se não em todos, não temos como mensurar o comportamento de risco da população entre doses, o que dificulta qualquer formulação de cenários. No âmbito do comportamento da população está, também, a hesitação vacinal. Em todos os países do mundo há grupos de pessoas que já optam por “esperar para ver” como as vacinas funcionam, ou mesmo as que se recusam a serem imunizadas. Esse comportamento não é de todo estático: a depender do que aconteça, a hesitação vacinal pode variar bastante em um mesmo país. Já vimos isso acontecer na Europa quando dos relatos de coagulopatias possivelmente associados a vacina da AstraZeneca. Algo semelhante ocorreu nos Estados Unidos em relação à vacina da Johnson & Johnson.

Para além desses e de outros temas, há algo importantíssimo que poucos se dão ao trabalho de analisar. A desigualdade vacinal no mundo, hoje, não ocorre apenas por causa da distribuição assimétrica de doses entre países avançados e países de renda baixa ou média. Ela ocorre também porque há países que têm acesso a vacinas que não apenas protegem contra a doença, mas contra a própria infecção, reduzindo o risco de transmissão. Estudos populacionais diversos já mostram que as vacinas gênicas, como as da Pfizer-BioNTech e da Moderna, não apenas previnem hospitalizações, mas têm a capacidade de impedir infecções, ou, de conferir aquilo que se chama de imunidade esterilizante. É claro que não há impedimento completo —algumas pessoas, mesmo vacinadas, se infectam. Contudo, a capacidade dessas pessoas de transmitir covid-19 para outros é muito reduzida. Por esse motivo, somente as vacinas de mRNA, hoje, podem permitir que se vislumbre a imunidade de rebanho caso grande parte da população seja imunizada com elas. Essa não é a realidade da maior parte dos países. Essa, certamente, não é a realidade do Brasil.

O Brasil tem boas vacinas e, apesar do Governo Bolsonaro, a campanha de vacinação está caminhando lentamente. Contudo, as vacinas de que o Brasil dispõe, inclusive por omissão do Governo, não são as que nesse momento sabemos ser as mais efetivas. Por essa razão, não é possível extrapolar cenários de forte retomada econômica ainda que a imunização no Brasil estivesse mais acelerada do que de fato está. Para que se possa falar em retomada sustentável e inclusiva será necessário, para além dos outros fatores apontados nesse artigo, que o país tenha acesso às vacinas gênicas. Para tanto, precisaríamos de um Governo que trabalhasse a favor da população, e não contra a sociedade, além de um setor financeiro que enxergasse além do próprio umbigo. São muito poucos os que podem comprar um pacote de turismo vacinal nos EUA. Por mais dinheiro que tenham, não são essas pessoas que haverão de proteger as dezenas de milhões de outras que provavelmente jamais sentirão o alívio de ter uma vacina segura e de elevada efetividade injetada em seus braços. Quem sabe não possamos mudar esse quadro em 2022.

Monica de Bolle é economista, PhD pela London School of Economics e especializada em medicina pela Harvard Medical School. É professora da Universidade Johns Hopkins, pesquisadora-Sênior do Peterson Institute for International Economics e mestranda em Imunologia e Microbiologia na Georgetown University.

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