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Busca por atestados falsos para vacinar contra covid-19 preocupa médicos: “Não é só uma receitinha, é fraude”

Municípios passaram a vacinar indivíduos com comorbidades, mas profissionais da saúde relatam procura por receitas mesmo entre pessoas saudáveis. Prática atrasa imunização com pessoas mais expostas a riscos de desenvolver a forma grave da doença

Uma pessoa recebe uma dose da vacina contra a covid-19 em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, em 21 de abril. Menos de 20% da população brasileira recebeu a primeira dose do imunizante.
Uma pessoa recebe uma dose da vacina contra a covid-19 em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, em 21 de abril. Menos de 20% da população brasileira recebeu a primeira dose do imunizante.RICARDO MORAES (Reuters)
Felipe Betim

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O Brasil passou a observar, nas últimas semanas, uma nova estratégia para furar a fila da vacinação contra a covid-19. No momento em que Estados e municípios brasileiros começaram finalmente a imunizar as pessoas com comorbidades (que podem agravar o quadro de quem contrai o coronavírus), muitos médicos relatam uma corrida por atestados que provem a existência de uma das enfermidades —como hipertensão, diabetes ou insuficiência cardíaca, por exemplo― mesmo entre pessoas completamente saudáveis. “Acordei no último sábado e havia três mensagens de pessoas que conheço. Uma delas queria cinco receitas, para ela, para os irmãos e as cunhadas. E ainda teve a capacidade de mandar a foto de uma receita com o medicamento que ela queria”, conta a clínica geral J. K*,que atende em consultório particular em São Paulo. “Eu fiquei muito brava e nem respondi. Eu não fiz nem para meus irmãos, que acham errado e então esperando na fila a vez deles”, disse.

O EL PAÍS contactou seis médicos que asseguram ter passado pelo mesmo tipo de situação (ou ouvido de colegas da área relatos como este), sempre com o objetivo de burlar a fila da vacinação, que no Brasil segue em ritmo lento. Até esta sexta-feira, pouco mais de 41 milhões de pessoas haviam recebido a primeira dose do imunizante contra a covid-19 no Brasil (menos de 20% da população) e, destes, 20 milhões receberam a segunda dose (menos de 10% dos brasileiros). Para o médico Gerson Salvador, especialista em infectologia e saúde pública, afirma que “a palavra certa é fraude”, já que são pessoas que “buscam fraudar um documento com o objetivo de obter uma vantagem.”

Não se trata de algo totalmente novo. No Brasil, é comum que pessoas peçam receitas para conseguir remédios de tarja preta ou atestados para abonar falta no trabalho, por exemplo, mesmo sem passar por consultas médicas que comprovem essas necessidades. Valem-se de relações pessoais para pedir um “atestadozinho” ou uma “receitinha”, sempre no diminutivo, como forma de suavizar a situação, enfatiza Salvador. Entretanto, é absolutamente vedado, acrescenta ele, que um profissional escreva uma receita ou atestado sem que haja atendimento médico ou registro no prontuário. Fora desse contexto, trata-se de uma infração ética por parte do profissional.

O problema é que isso agora acontece em meio a uma pandemia que já matou mais de 444.000 pessoas, segundo dados do Ministério da Saúde. “É grave em qualquer situação, mas quando acontece para a pessoa furar a fila da vacinação, isso tem uma gravidade ainda maior. Impacta não só a vida daquele indivíduo, mas sim o conjunto da sociedade”, argumenta o médico.

A campanha de imunização contra a covid-19 não é igual a outras em que toda uma família pode se vacinar num mesmo dia. Não há doses suficientes para imunizar toda a população brasileira e critérios para vacinar quem tem mais risco de morrer são necessários. Assim, um indivíduo saudável que recebe a vacina que deveria ir para alguém com comorbidades está automaticamente colocando alguém para trás da fila. “Se isso acontece de maneira mais frequente, tem um impacto grande na campanha.”

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O médico R. M.*, que atende no SUS, afirma que não vem recebendo esse tipo de pedido. “Mas entre meus colegas, todos recebem. As pessoas recebem. Já vi um familiar e uma amiga que conseguiram se vacinar desse jeito”, conta. Segundo o médico, existe um recorte de classe e racial muito claro nesse debate sobre os atestados e receitas falsas: geralmente, são pessoas brancas e da classe média e alta, com médicos na família ou em grupos de amizade. “O perfil é de quem tem dinheiro para pagar um particular ou um plano de saúde bom e tenta tirar proveito dessas coisas”, explica.

Já a médica H. M.*, que trabalha num posto de saúde na zona sul de São Paulo aplicando vacinas contra a covid-19 ―e que atende tanto uma elite do Morumbi como cidadãos que vivem nas favelas do entorno―, afirma que esse recorte social é muito evidente desde o início da campanha de vacinação. Por exemplo, os mais pobres têm mais dificuldade de acesso à informação. “Há pessoas com mais de 60 anos que ainda não foram vacinadas por dificuldade de chegar à unidade de saúde ou por pouca informação”, diz.

Padronização e busca ativa por pacientes com comorbidade

Pessoas que chegam com relatórios médicos mais detalhados, conta a médica, geralmente são de classe alta. “E alguns temos dúvida se são verdadeiros ou não. Tivemos uma discussão na equipe sobre como deveríamos lidar. Não somos polícia, mas, por outro lado, estamos numa situação de escassez de vacina e é ruim ver essa desigualdade no acesso”. Uma forma de amenizar essa situação é que sua equipe, a partir do programa de saúde da família, vem acessando os prontuários de pacientes e convocando as pessoas com registros de doença. “Mas sabemos que tem muitas pessoas que não se enquadrariam nos critérios e estão vacinando, enquanto pessoas do território mais pobre ficam sem vacina por não ter parente médico ou acesso a clínica particular.”

Estado e municípios podem exigir diferentes tipos de documento que comprovem a existência de comorbidades. Essa falta de homogeneização e de critérios claros, segundo explica Salvador, pode inclusive atrapalhar a interpretação dos profissionais da saúde na linha de frente da vacinação, já que nem todos são médicos ou enfermeiros. Isso abre uma brecha maior para quem busca subverter as regras, assim como pode criar obstáculos para quem realmente tem uma doença pré-existente e precisa apresentar comprovantes.

No caso da cidade de São Paulo, pede-se como comprovante “receitas/relatórios físicos ou digitais, fotografia em celular, e demais formas desde que com identificação do paciente, CRM e na validade de 02 anos de emissão”. De acordo com a Secretaria Municipal da Saúde, até agora não houve denúncia de fraude de documentos, mas todas as unidades estão orientadas a comunicar a pasta caso apareça alguma suspeita. Os profissionais da saúde devem verificar “todos os laudos, atestados e receitas médicas apresentadas”, assim como aferir “assinatura do médico; CRM; CID (Código Internacional de Doença) da doença; nome do paciente e a data de emissão.”

A médica H. M. relata a pressão cotidiana nos profissionais de saúde na hora de analisar a documentação. Sua equipe já barrou pessoas que vieram com prescrição de medicação que não condizia com o que estava escrito no relatório médico. Mas há casos mais sutis ou inconsistências que dificultam a tomada de decisão. “Às vezes acontece de uma pessoa chegar de manhã, entender melhor quais são os critérios, e voltar no mesmo dia com o relatório médico que cabe exatamente no que é pedido. Então, ficamos meio sem saber o que fazer e constrangidos”, conta. “Mesmo sendo duvidoso, muita vezes acaba passando. E essa sensação de que ocorreu uma injustiça fica na equipe”.

*Os médicos que pediram para não terem seus nomes divulgados foram identificados apenas com iniciais.

“Pacientes resolveram aparecer depois de três anos sem ir ao consultório”

Além dos pedidos por atestados e receitas falsas, a vacinação de pessoas com comorbidades gerou outro efeito: aqueles que negligenciam a saúde resolveram, agora, buscar cuidados médicos. “Tenho recebido uma enxurrada de pedidos de pacientes que não aparecem no consultório há três anos para que eu refaça uma receita”, conta a clínica geral e endocrinologista M. V., que atende em São Paulo. Nesse grupo estão pessoas que, de fato, se encaixam no grupo prioritário para receber a imunização. Outros não. “Hoje, por exemplo, entrou em contato uma pessoa com 33 anos. Ela já teve uma alteração leve de glicose e, na época, prescrevi um remédio por um tempo. Mas depois ela ficou bem e parou de tomar”. Sempre que se depara com esse tipo de situação, M. V. pede para agendar uma consulta, já que não se sente confortável para dar uma receita sem antes ver a pessoa.

A clínica geral e cardiologista Deborah Luz, que atende em Niterói (RJ), também conta ter notado uma preocupação maior de pessoas que sempre negligenciaram a saúde. “Por mais que soubessem que a pressão está alta ou que são obesas, nunca assumiram isso. Mas, agora, muita gente quer verificar se ficou hipertenso ou tem me pedido indicação de endócrino ou cirurgião bariátrico." Ela diz que jamais daria um atestado ou receita falsos, mas que apoia essas pessoas nos grupos de risco e que sempre “deixavam para amanhã”.

Porém, ambas opinam que não se trata de um maior consciência da saúde, mas sim de uma conveniência. “O objetivo é ‘vai que eu consigo me beneficiar e tomar a vacina logo’”, explica Luz. A endocrinologista M. V. completa: “De repente virou conveniente ter diabetes ou hipertensão. A pessoa que não vem há três anos, sabe que obesidade e diabetes é fator de risco desde o ano passado. Ela não quer se tratar, ela quer atestado ou receita para tomar a vacina. Como profissional da saúde me sinto desvalorizada”.

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