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Tribuna
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A silenciosa pandemia dos estupros de vulneráveis

Com a população sem acesso às interações comunitárias e às instituições que poderiam funcionar como uma rede de proteção, a dificuldade de identificar o abuso tende a aumentar e seu enfrentamento restar ainda mais prejudicado

ONG Rio de Paz fez manifestação no Museu de Arte de São Paulo (MASP), em 2019, contra estupros.
ONG Rio de Paz fez manifestação no Museu de Arte de São Paulo (MASP), em 2019, contra estupros.SEBASTIÃO MOREIRA (EFE)

A partir do início da pandemia da covid-19 mudanças no comportamento criminal e na incidência de violências foram observadas em diversos contextos, em parte relacionadas à situação de isolamento social determinado como medida de contenção do vírus. Se o isolamento por um lado contribuiu para a redução de alguns crimes rotineiros, como os roubos, uma vez que a menor circulação das pessoas afeta as oportunidades de praticá-los, por outro pode ter favorecido o cometimento de violências contra grupos da população que ficaram ainda mais vulneráveis durante a quarentena. Como o triste caso do menino Henry veio nos lembrar, as crianças são diariamente vítimas de violência doméstica, praticada por pessoas que lhes são próximas e com quem mantêm vínculos, e assim sofrem repetidamente abusos que ficam silenciados até que uma denúncia venha resgatá-las da situação. Sem a denúncia, os casos de agressão podem se agravar até que resultem na morte da vítima, como mostrou o caso do menino em que as evidências não foram suficientes para afastá-lo do agressor e fazer cessar o padrão de agressões que lhe eram infligidas.

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No cenário de violência doméstica outro tipo de agressão que tem como alvo crianças e adolescentes é a de natureza sexual, crime que junto às negligências e violências psicológica e física figura entre as violações mais frequentes registradas pelo Disque 100. Estudo elaborado pelo Instituto Sou da Paz, Unicef e Ministério Público do Estado de São Paulo chamou a atenção para os possíveis impactos do isolamento social na ocorrência e na notificação da violência sexual no Estado de São Paulo, com foco nos casos de estupro de vulnerável. Este ato é praticado contra crianças e adolescentes menores de 14 anos e outras pessoas em situação de vulnerabilidade e os registros alcançaram uma média de 8.500 casos registrados por ano no Estado de São Paulo entre 2017 e 2020.

Frente à redução dos registros policiais de estupro de vulnerável observada no início da pandemia, emergiu a preocupação com o agravamento da invisibilidade deste drama social: com a população sem acesso às interações comunitárias e às instituições que poderiam funcionar como uma rede de proteção, a dificuldade de identificar o abuso tende a aumentar e seu enfrentamento restar ainda mais prejudicado.

É sabido que esse tipo de crime segue um padrão e ocorre majoritariamente em ambientes domésticos. No primeiro semestre de 2020 os abusos cometidos em casa representaram 84% das ocorrências registradas, valor superior ao verificado no mesmo período dos anos anteriores, em que representavam cerca de 79%. Mensalmente, entre abril e junho de 2020, essa proporção chegou a variar entre 85% e 88%, sinalizando fortemente para a dificuldade de denunciar esses crimes e não a sua efetiva diminuição. Mais de 80% das vítimas são meninas e o pico dos abusos, que as atingem em todas as faixas etárias, ocorre aos 13 anos. Já os meninos são vitimados mais precocemente, com maior frequência por volta dos 4 anos. Sofrem abusos de parentes e pessoas conhecidas, visto que em 79% dos boletins é registrada a autoria conhecida.

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Mais recentemente, temos que no primeiro trimestre de 2021 houve aumento de 9,8% nos registros de estupro de vulnerável em relação ao mesmo período em 2020. Nesses três meses, os estupros de vulneráveis representaram 75,5% do total de casos de estupro registrados no estado, observando-se que houve também um crescimento dessa proporção em comparação com o mesmo período em 2020, quando correspondiam a 73,7%. Vale notar que este aumento se dá em cenário de queda de todos os outros indicadores criminais monitorados no Estado de São Paulo, como homicídio e roubos, entre outros.

Qual seria o significado deste aumento, lembrando que no primeiro trimestre de 2020 não havia ainda isolamento social? E considerando ainda que a comparação entre os primeiros trimestres dos anos anteriores (2018 e 2019) indica redução, e não aumento, neste período?

Passado mais de um ano de pandemia, tivemos períodos mais ou menos flexíveis em relação às medidas de isolamento. A diminuição dos registros acompanhada do aumento proporcional da vitimização dentro de casa durante o primeiro período de isolamento social em 2020 apontam para a provável subnotificação dos casos frente à dificuldade de denunciá-los, enquanto o crescimento dos registros no primeiro trimestre de 2021, em oposição à tendência observada neste mesmo período nos três anos anteriores, sugere uma retomada da notificação de violências que ficaram ocultas e represadas e agora chegam ao conhecimento das instituições.

É fundamental dar visibilidade ao problema e fortalecer mecanismos de prevenção e proteção às crianças no cenário em que as vítimas ficaram (e ainda estão) privadas de atividades educacionais assim como do contato com outras pessoas e instituições que possam identificar, denunciar e encaminhar as vítimas para o devido atendimento.

Cristina Neme e Rafael Rocha são pesquisadores do Instituto Sou da Paz.

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