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Opinião
Texto em que o autor defende ideias e chega a conclusões basadas na sua interpretação dos fatos e dados ao seu dispor

28 mulheres condenadas a enterrar seus filhos em pleno Dia das Mães

Há 15 anos tive meu filho arrancado de mim pelo Estado, uma dor que se estende por toda a vida. Para nós, é uma data de muitas lembranças, sofrimento e luta contra o genocídio da juventude negra

Familiares no funeral de Cleyton da Silva Freitas, 26 anos, um dos mortos na última quinta-feira no Jacarezinho, no cemitério de Inhaúma, no Rio, no sábado.
Familiares no funeral de Cleyton da Silva Freitas, 26 anos, um dos mortos na última quinta-feira no Jacarezinho, no cemitério de Inhaúma, no Rio, no sábado.Bruna Prado (AP)
Monica Cunha
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Quinta-feira, 6 de maio de 2021, 28 vidas foram tiradas, arrancadas de suas mães, esposas, filhos e amigos. Apagaram-se as histórias e sonhos de 28 pessoas em uma operação fracassada, que denuncia a falência de uma política de segurança pública baseada na maldita guerra às drogas.

Enterrar um filho é algo contra a ordem natural das coisas. Gera uma dor insuportável que se estende por toda a vida. Há 15 anos tive meu filho arrancado de mim pelo Estado e essa afirmação é fruto da minha trágica vivência.

Para nós o Dia das Mães é uma data de muitas lembranças e sofrimento. Não por acaso, o movimento de mães de vítimas do Estado escolheu a semana que se segue a esta data como o período de mobilização e luta contra a genocídio da juventude negra e outras formas de violência do Estado.

E é por isso que saber que 28 mães devem enterrar seus filhos neste Dia das Mães me causa tanta dor. Sinto que essas mulheres nunca mais poderão ter um Dia das Mães alegre com seus outros filhos. Se, para mim, que não enterrei meu filho nesta data, ela é acompanhada de dor, para essas mães será quase insuportável, até porque a resposta das autoridades do Governo do Estado foi de legitimação e comemoração desta tragédia.

A chacina do Jacarezinho já é a ação policial mais violenta da história do Estado do Rio de Janeiro. Sob a justificativa de cumprimento de 21 mandados de prisão, a Polícia Civil do Rio matou 27 pessoas e teve um de seus agentes morto numa operação que levou terror a milhares de moradores e colocou o Brasil nas manchetes de jornais ao redor do mundo.

Os registros em vídeos e fotos dos locais em que ocorreram as execuções denunciam a completa desumanização com que o Estado brasileiro genocida trata a população negra, pobre e periférica. Poças de sangue por toda a favela, casas cravejadas por balas de diversos calibres, quartos de crianças que mais pareciam cenário de filme de terror. Cenas que em qualquer lugar do mundo levariam à demissão da cúpula policial e promoveriam uma reforma profunda da polícia, mas que no Brasil são comemoradas pelas autoridades, revelando que estão pouco se lixando para os traumas causados à população e a dor imposta às dezenas de famílias atingidas.

Esse comportamento evidencia que o racismo estrutural, fundado na tradição escravocrata e excludente do Estado brasileiro, impera. Basta olhar para as imagens da porta do IML no dia seguinte à chacina: famílias inteiras, quase todas negras, desesperadas em busca da liberação dos corpos. São os descendentes de pessoas escravizadas que compõem o grupo dos legitimados a morrer e, se tratando do Jacarezinho, é preciso trazer isso à tona, pois seu território abrigou um quilombo urbano. Quando a cúpula da Polícia Civil afirma, antes de qualquer diligência investigativa, que não há execuções em uma operação com 28 mortes em decorrência de intervenção policial, ela manda o recado de que não haverá apuração imparcial e que as mortes de jovens, negros, pobres e periféricos são aceitáveis.

Mas eles não contavam com a reação imediata e efetiva de movimentos sociais, organizações da sociedade civil e instituições que, num mesmo bonde, estiveram no mesmo dia no Jacarezinho e puderam documentar o ocorrido. Da mesma forma, a mobilização puxada pelos movimentos negro e de favelas promoveu uma grande caminhada no Jacarezinho na última sexta, dia seguinte à chacina. Nesta ocasião, liderados pelos movimentos de mães de vítimas deste Estado genocida, gritávamos em uma só voz: NÃO FOI OPERAÇÃO, FOI CHACINA!

O resultado desta ação desastrosa é termos, em pleno Dia das Mães, uma mãe de policial em luto, chorando a perda de seu filho, e outras 27 velando e enterrando os seus.

Monica Cunha é técnica em educação social e faz parte da Coalizão Negra por Direitos e da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia do Rio. Em 2003 foi co-fundadora o Movimento Moleque, uma organização para mães de crianças que foram ameaçadas, atacadas ou mortas pela polícia.

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